A entrevista conjunta do Presidente de Angola aos jornalistas tinha começado há pouco tempo, quando a jornalista da TSF tocou numa ferida que, nas palavras do próprio João Lourenço, ainda não está “completamente cicatrizada”: as vítimas do 27 de maio de 1977. Na audiência estava a órfã de uma das vítimas que interrompeu a entrevista para ler um poema.
A jornalista recordou a entrevista que João Lourenço tinha dado ao Expresso, onde dizia a ferida que se abriu com as mortes e detenções de 27 de maio de 1977 “não está completamente cicatrizada” e que “é um fenómeno que deve merecer um tratamento ponderado”. Depois, falou dos órfãos das vítimas que vivem em Portugal que gostariam de saber se o governo angolano estaria disponível para emitir certidões de óbito das vítimas do massacre e se haveria possibilidade de restituição dos corpos às famílias.
“Peço desculpa, eu sou órfã do 27 de maio”, disse uma cidadã angolana colocando-se de pé logo após a pergunta da jornalista. Ulika da Paixão Coelho dirigiu-se ao “comandante” e lembrou que no dialeto do povo a que pertence Ulika significa sozinha. “E sozinha há 41 anos tenho vindo a atravessar este silêncio ensurdecedor por parte do governo de Angola.” A órfã referia-se ao mesmo massacre de que falava a jornalista, o tal que tinha deixado uma ferida, admitiu Lourenço.
“Vai-me permitir pelo meu pai, Adelino António Ribeiro dos Santos, e pela minha mãe, Umbelina de Jesus Vieira da Paixão Franco dos Santos, que leia um poema do meu pai, dirigente do MPLA, chefe da Juventude Popular do MPLA, que escreveu enquanto esteve preso em São Nicolau, em 1973.” O poema foi escrito depois de ter sido preso pela PIDE, ainda durante a ditadura portuguesa, e falava da necessidade de os angolanos se juntarem. “Posso ler o poema pela alma do meu pai?”
João Lourenço ouviu a intervenção de Ulika da Paixão Coelho sem interromper e iria deixar que falasse tudo o que tinha para dizer, só não a deixou ler o poema. “Estamos numa conferência de imprensa.” Perante a insistência da órfã que disse ter fugido de Angola porque temia pela vida, João Lourenço respondeu: “Podemos fazê-lo fora daqui. Aqui estão os jornalistas para fazer perguntas. E estava uma jornalista no uso da palavra.”
A órfã apelou várias vezes ao “comandante” por ambos terem nascido na província de Benguela. Mas para João Lourenço isso não é o mais importante, o mais importante é que são angolanos, independentemente da província em que tenham nascido.
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Apesar da interrupção, João Lourenço não fugiu à pergunta da jornalista e deu continuidade à entrevista conjunta. “O 27 de maio é um dossier delicado porque naquela ocasião Angola perdeu alguns dos seus melhores filhos. O Estado angolano já reconheceu em diversas ocasiões, a última das quais muito recentemente.” O Presidente referia-se ao facto de o ministro da Justiça e dos Direitos Humanos ter reconhecido, há uns dias e perante o Parlamento, “ter havido excessos por parte do governo naquela altura”. João Lourenço acrescentou que estão “abertos ao diálogo” para ver como se pode “reparar as feridas profundas que ficaram nos corações de muitas famílias” por causa destes “tristes acontecimentos”.
Depois da independência, em 1975, António Agostinho Neto, do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), assumiu a presidência de Angola e assim se manteve apesar da guerra civil que já afetava o país. Mas os conflitos não aconteciam só entre os vários partidos angolanos, como também dentro do próprio partido.
Desde a independência, e ao longo dos anos seguintes, cresceu o descontentamento dentro do partido, sendo Nito Alves um dos rostos dessa oposição interna. A suspeita e acusação de que estaria a ser planeado um golpe de Estado contra Agostinho Neto levou a que, no dia 27 de maio de 1977, vários dos supostos dissidentes fossem presos, torturados e mortos. Uma das vítimas mortais é irmão da ministra da Justiça, Francisca van Dunem, e a mulher do próprio João Lourenço chegou a estar presa.
Ao Expresso, João Loureço disse que alguns dos antigos membros do MPLA acusados de planear o golpe de Estado “estão enquadrados” (reintegrados no partido). “Não direi todos, mas parte deles estão enquadrados de uma forma natural. Não vou citar nomes, mas ao longo de anos muitos deles chegaram a ministros.”