Nos dois lados da curta fronteira que separa La Línea, em Espanha, de Gibraltar, pequeno enclave britânico para onde diariamente convergem milhares de trabalhadores, pairam incertezas quanto ao efeito do Brexit na economia e nas relações de boa vizinhança.
O contraste entre as duas comunidades do extremo sul da costa espanhola é evidente: se em La Línea de la Concépcion grassa o desemprego, o tráfico de droga e o contrabando, a península de Gibraltar, conhecida como Rochedo, vive um boom económico que gera emprego para milhares de espanhóis e atrai empresas que procuram alívio fiscal.
À hora de ponta, milhares de pessoas passam aquela pequena fronteira terrestre que cruza a pista do aeroporto de Gibraltar: a maioria a pé, outras de carro, bicicleta ou até trotinete. Sempre que parte um avião, fecham-se cancelas e interrompe-se a circulação: o álibi perfeito para quem chega atrasado ao trabalho.
Quando se passa para o lado britânico é como entrar em Inglaterra, à exceção da condução do lado esquerdo da estrada: os preços estão em libras, os sinais de trânsito e de direção estão todos em inglês e até há na Main Street as famosas antigas cabines telefónicas vermelhas.
Mas depois de um período negro de 13 anos com a fronteira encerrada, até 1982, por ordem do general Franco, há quem receie novas restrições, sobretudo numa altura em que o partido de extrema-direita VOX ganha terreno na mais populosa região espanhola, com a inesperada eleição de 12 deputados para o parlamento andaluz.
A trabalhar como soldador em Gibraltar há 40 anos, Manolo Márquez guarda recordações amargas desses tempos e vê-se agora preocupado com o Brexit, cujo anúncio só por si já lhe baixou o salário — recebe em libras mas consome em euros –, embora confesse que o que assusta é a própria governação espanhola.
“Depois de Franco, continuaram os mesmos políticos e a política contra Gibraltar foi muito severa. Nós chegámos a sofrer oito a nove horas de fila para atravessar uma fronteira que se passa em cinco minutos. E a preocupação é que agora surge novamente a Direita, e aparentemente ainda pior”, prevê.
O trabalhador de 60 anos, que como milhares de outros vive em La Línea, diz mesmo que, com ou sem Brexit, nunca sentiu que Gibraltar fizesse verdadeiramente parte da União Europeia, já que ali “nunca houve uma passagem livre”. Em 1978, quando tinha 20 anos, já a trabalhar em Gibraltar, o pai faleceu do outro lado da fronteira e Manolo não tinha como ir ao velório e ao funeral. Ainda se lançou ao mar, mas era uma noite fria de novembro e não conseguiu continuar.
Desesperado, entregou-se à Guardia Civil espanhola na fronteira, foi detido e levado para os calabouços. O oficial que o deteve era “muito duro” mas um dos sargentos comoveu-se, falou com um superior e Manolo conseguiu que o levassem a casa. “Após o enterro, acompanharam-me até Marrocos e aí voltei para Gibraltar”, conta, entre lágrimas.
Mari Sousa, que ganha a vida a cuidar de idosos e crianças no Rochedo, também passou por algo parecido naquela altura: não conseguiu ir ao funeral da avó. O apelido português ajuda a desvendar a sua história: na década de 1930, a avó caminhou durante dias ao longo desde Olhão, no Algarve, até Gibraltar, com duas crianças pequenas, num grupo de muitos portugueses.
Para esta espanhola na casa dos 60 anos, as incertezas são muitas: “não sabemos como é que as coisas vão ficar, quanto ao Brexit nada sabemos. Estamos a perder bastante dinheiro e estão a dizer que a libra ainda vai baixar mais. Nós vivemos junto ao Rochedo e é o Rochedo que nos dá de comer. Espanha não nos dá nada”.
A verdade é que ambos os lados da fronteira dependem entre si: se os habitantes de La Línea e de outras cidades da zona do Campo de Gibraltar precisam do emprego de Gibraltar, o território também só prospera se tiver força de trabalho disponível.
O presidente da Associação de Trabalhadores Espanhóis em Gibraltar, Juan Jose Uceda, estima que o número de trabalhadores que entram todos os dias em Gibraltar para trabalhar atinja os 16 mil: é que, além dos 10.600 trabalhadores espanhóis que atravessam a fronteira, há muitos outros europeus, incluindo portugueses.
Filipe Silva, um dos cerca de 500 portugueses que residem em La Línea e trabalham em Gibraltar, assume que existe preocupação em torno do Brexit, porque ainda não se sabe como o processo pode afetar as empresas lá instaladas e que geram muito dinheiro, sobretudo as financeiras e de jogo.
Há cinco anos numa empresa de apostas online, Filipe tira partido da vantagem de ganhar um salário mais alto em Gibraltar e arrendar um apartamento relativamente barato em La Línea. “Essa é uma das grandes vantagens de estar aqui”, diz.
O presidente do Grupo Transfronteiriço, Lionel Chipolina, nascido e criado em Gibraltar, mostra-se preocupado que no pós-Brexit o pequeno território não tenha capacidade de empregar a quantidade de pessoas que atualmente emprega do outro lado, o que seria desastroso para ambos.
Eventuais restrições ao livre trânsito de pessoas, já que com o Brexit o acesso a Gibraltar passa a ser uma fronteira fora da UE, podem repetir os cenários de longas filas de espera, causando o “caos” na dinâmica económica e social de toda a área, nota Lorenzo Pérez-Periáñez, presidente da Associação de Pequenas e Médias Empresas de La Línea.
O alcaide de La Línea, Juan Franco, admite que existe preocupação e incerteza relativamente ao Brexit e diz mesmo que já se começa a sentir na cidade um efeito negativo da anunciada retirada do Reino Unido, com a desvalorização da libra, que tem provocado quebras no consumo.
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