Estão há 22 anos a fazer cafuné nos nossos ouvidos e agora vão fazê-lo pela primeira vez com uma banda em palco. O motivo? As noites Movimento, projecto da curadoria de Maze que quer recentrar a palavra no coração do hip-hop. Entrámos no mundo dos Dealema e fomos ao Túnel para assistir ao primeiro ensaio que antevê a grande estreia no Pérola Negra.

“Nada dura para sempre” ouve-se no Túnel, o anexo de casa de Sérgio Alves que entre 82 e 97 foi um bar de rock, disco, funk, house da zona de Fânzeres, Gondomar. Há posters dos Beatles e de Dizzy Gillespie nas paredes da antiga pista de dança, edições da revista Jazzwise pousadas numa pequena mesa de centro, uma prateleira cheia de vinis com o Bitches Brew de Miles Davis ou Hunter Head de Herbie Hancock desarrumados entre teclados no espaço da régie, a antiga cabine do DJ.

O bar fazia furor nas noites de sexta e sábado, mas também nas matinés, tão ou mais populares que as primeiras. “Isto era dos meus pais, cheguei a passar música aqui”, diz o músico de 37 anos responsável pelos arranjos que vão dar uma nova dimensão aos temas que os Dealema se preparam para rodar na noite de sábado, no Pérola Negra. “Queríamos criar um movimento, algo que fosse forte” continua Sérgio que ao lado de Ricardo Danin e Bruno Macedo (de projectos como Pedro Abrunhosa, Capicua ou Marta Ren & The Groovelvets) são o núcleo duro da banda que sustentará o Movimento de Maze.

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“Isto surgiu de um convite do Jonathan Tavares”, conta Maze sobre a proposta dirigida pelo gestor do Pérola Negra, ainda antes do ensaio começar e com Mundo e Guze a caminho. “O Expeão está no Alentejo, foi lá passar o Natal”. Fuse teve um imprevisto de última hora, estávamos a contar com ele, mas não deu para aparecer. Juntar os cinco nunca foi tarefa fácil, “raramente estamos juntos”, dizem. “Fazemos o nosso trabalho, cada um por si, e quando nos juntamos a química é muito grande. É quase missão impossível apanhar os cinco…mas até cria uma certa mística”.

Sobre o desafio de abraçar a curadoria numa das vertentes da programação do renovado Pérola Negra, antigo clube de striptease e renascido como espaço de inclusão e diversidade artística, onde a electrónica cruza o house, o techno, o disco e agora o hip-hop, Maze fala de um convite relativamente recente, com “cerca de dois meses” e com perspetivas de crescer em vários campos. “O Pérola Negra abriu uma porta para que estas ideias acontecessem lá, para inovar e pôr as ideias a mexer de uma forma onde a fusão estará sempre presente. Não me quero formatar, quero ter uma liberdade muito grande em casa sessão”, diz com a improvisação a correr-lhe no sangue e a criatividade inquieta na alma.

Maze, o rapper dos Dealema, vai agora iniciar um ciclo de programação de hip-hop no bar-discoteca de concertos Pérola Negra, no Porto. A ideia é recuperar um hip-hop ancorado na palavra, contrário “à tendência do novo rap” que a trata “quase como um som, uma onomatopeia, um fluir de sílabas. Isso é uma regressão, é como se o ser humano voltasse a comunicar por grunhos e gestos” (Ricardo Castelo / OBSERVADOR)

Este Movimento é assim uma ode à cultura hip-hop nas suas múltiplas expressões, com alguns pontos definidos que Maze quer explorar. “Estou a pensar sair mesmo da caixa”, diz o MC e produtor que antes de se juntar a Factor X (Mundo e Dj Guze) e Fullashit (Fuse e Expeão) no Segundo Piso das Campinas (a casa de Fuse que acabou por ditar a fusão destes cinco elementos e o nascimento dos Dealema), rasurava textos em blocos que só mostrava a alguns amigos chegados.

A palavra é a génese de tudo e é uma parte fundamental da minha vida. Era inevitável que ela tivesse um papel preponderante num projeto meu e tratando-se do movimento e da cultura hip-hop, a palavra é essencial. Ao contrário da tendência do novo rap, em que a palavra é desvalorizada. É tratada quase como um som, uma onomatopeia, um fluir de sílabas. Isso é uma regressão, é como se o ser humano voltasse a comunicar por grunhos e gestos. Com as noites Movimento quero tentar contrariar essa tendência e criar algum interesse nesta nova geração, que tem estado desatenta quanto ao poder da palavra. Não precisamos de regredir, podemos continuar a divertir-nos com palavras e a construir pensamentos”, refere o rapper dos Dealema.

A fórmula para a diversão, segundo Maze – que não se compromete com um formato fechado replicado de sessão em sessão – passará por momentos de slam poetry (competição de poesia e spoken word) a abrir as noites, em que os protagonistas serão pessoas ligadas à palavra dita, mas fora da cultura rap. “Quero levá-las para um espaço em que não estão habituadas a atuar. Os públicos da slam poetry e do rap gostam ambos dos mesmos universos, simplesmente não se juntam porque estas duas coisas não acontecem no mesmo espaço, costumam andar separadas. Mas isso não faz sentido, porque estamos a falar da palavra.”

Segue-se o ponto central da noite, o concerto de um MC a reinterpretar clássicos em conjunto com a banda residente do Pérola Negra, abrindo caminho para novos cruzamentos linguísticos dentro da elasticidade musical que o hip-hop pode alcançar. “Esta vertente interessou-me logo muito. A minha entrada na música foi pelo rap, mas depois comecei a escavar e a fazer uma pesquisa de toda a música criada para trás, nas décadas anteriores, e fui dar exatamente ao jazz, ao soul e ao funk.” Por fim a noite é entregue a um Dj convidado que poderá ter a seu lado b-boys e b-girls (bailarinos de hip-hop) responsáveis por trazer o crivo do breakdance para a pista.

“Daí o nome movimento”, conclui Maze sobre estas noites que terão uma periodicidade bimestral. “É um movimento que quer abranger toda a cultura rap e que se tem desenvolvido a cada dia na minha cabeça.”

Maze: “Queria abrir estas noites em grande”

Para a primeira sessão, ainda com vários esboços do grande projeto em curso, Maze não teve dúvidas que juntar os cinco dialéticos em palco com um trio de teclado, baixo e bateria era o tiro de partida que haveria de soltar a pólvora do Movimento. O desejo de tocar com banda já era antigo, mas a complicada logística impediu que se materializasse mais cedo. “O problema é que nós somos cinco e temos uma infraestrutura que chega às 10, 11 pessoas. Se levarmos uma banda com quatro, cinco elementos, somos uma equipa de futebol mais suplentes! Fica um bocado complicado para os promotores albergarem tanta gente”, dizia Mundo há uma semana quando nos encontrámos com ele, Fuse, Expeão e Guze no estúdio do Segundo Piso, hoje sediado na Galeria Soares dos Reis em Vila Nova de Gaia, outrora itinerante de espaço em espaço. “Já existiram quatro ou cinco segundos pisos”, deixa escapar Mundo antes de abrir a porta para futuros concertos neste formato, “talvez numa sala maior, até com uma banda maior, é algo que já está há alguns anos nas nossas cabeças.”

No concerto de sábado, os Dealema revisitarão os 22 anos de carreira num alinhamento que contará com mais de uma dúzia de temas. “Não quero estragar a surpresa”, diz Maze já de micro na mão. Ainda assim, dá-nos espaço para revelar algumas cartas do baralho.

[O relato fotográfico do primeiro ensaio para o concerto, registado pelo Observador:]

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“Verdadeiros Amigos” está “diferente do original, mas fica com um sentimento do caralho” atira depois de soltar os versos que se lhe desenrolam na língua sem a ajuda de nenhum papel ou auxiliar de memória. Mesmo Guze, sentado a pensar nos scratches com que vai rematar cada um dos arranjos, não mostra qualquer dificuldade em sibilar as partes dos outros quatro elementos, “sabemos as letras uns dos outros”, é nestes detalhes que se vê a tal química. Segue-se a “Sala 101” e o “Fado Vadio”, uma das faixas em que Sérgio mais puxou pela elasticidade dos arranjos. “Está fixe, está muito fixe. Está a soar mesmo bem!” comentava Maze enquanto Mundo dava alguns retoques, “começa com aquele tac tac tac para ajudar na entrada” pedia a Ricardo na bateria, gesticulando com baquetas imaginárias nas mãos; “faz o sample do órgão”, lembrava a Sérgio concentrado nos acordes, “mantém só o baixo nesta parte” comentava com Bruno debruçado sobre o seu baixo, “depois entramos todos. Quando a cena cai, ainda fica com mais power!”.

À 1h30, e depois de quase duas horas a passar temas, apagaram-se as luzes do Túnel. Foi apenas o primeiro ensaio, “amanhã definimos o alinhamento”, despede-se Mundo. Os três estão descontraídos, não entram em pânico com a pressão do primeiro concerto com banda de sempre e desvalorizam o pouco tempo que lhes resta para deixar tudo impecavelmente ensaiado. “Na música que fazemos é tudo espontâneo e genuíno. Tudo aquilo que são imprevistos na vida e que acontecem naturalmente sem estares à espera é o que te faz mais feliz. Se fores para um sítio e se já souberes o que vai acontecer, não há surpresa, não há emoção, não há nada. E se há coisa que não rima com Dealema é previsibilidade, somos criativos hiperativos.” No Pérola Negra eles vão-nos querer dar tudo.

Maze (nas sombras, à esquerda da imagem) e Mundo Segundo (à direita) nos ensaios para o primeiro concerto dos Dealema com banda, no Pérola Negra, no Porto (@ Ricardo Castelo / OBSERVADOR)

Entrevista rápida: “Não gostamos de facilitar. (…) É assim que se fazem os clássicos”

A par dos Mind da Gap, são referências absolutas do hip-hop do Porto. Lançaram o primeiro EP (ou mini-álbum) em 1996, um ano depois de os Da Weasel editarem Dou-lhe Com a Alma  e de General D editar Pé Na Tchôn,Karapinha Na Céu, um ano antes de os Mind da Gap lançarem Sem Cerimónias e dois anos antes de Boss AC editar Mandachuva. O primeiro álbum (homónimo) foi lançado apenas sete anos depois, em 2003 — e o mais recente, o quarto, dez anos depois, em 2013 (Alvorada da Alma). Neste momento, os Dealema estão em estúdio a compor temas novos, mas não têm ainda em vista o lançamento de um novo disco. Eis cinco perguntas que se impõem à banda portuense: 

A palavra continua a ter um papel preponderante na vossa criação…
Mundo Segundo (MS): Um dos princípios do rap – hoje em dia se calhar nem tanto – é que cada um escreve as suas próprias letras. Atualmente há muitos ghostwriters, mas no rap leva-se muito a sério o facto de seres tu a escrever a tua própria letra. Nós somos todos autónomos, eventualmente escrevemos refrões em conjunto, mas cada um escreve as suas partes.

E essas letras sempre foram bem recebidas?
MS:
Temos muitas vezes esta conversa…como não facilitamos naquilo que escrevemos, o primeiro impacto nunca é aquele que nós desejamos. Normalmente os nossos discos são assimilados dois ou três anos depois. Aconteceu-nos isso com o disco de 2013 ou com o V Império. Lembro-me perfeitamente de no primeiro concerto do V Império estarmos a tocar a “Sala 101” e a “Escola dos Noventa” e de não haver uma reação efusiva. Passados três ou quatro anos, tocamos essas músicas e toda a gente canta aquilo em uníssono como se fosse o hino nacional!

Porque é que acham que isso acontece?
MS:
Tem a ver se calhar com o nosso tipo de escrita. Pessoalmente não acho que seja um tipo de escrita fácil, porque nós também não gostamos muito de facilitar, se não não tinha piada. E percebemos que no geral as pessoas precisam de mais algum tempo para assimilar as letras. Até nós, muitas vezes, precisamos de mais algum tempo para assimilarmos as letras uns dos outros. É mais do que normal.

Fuse (F): Quando bate, bate a sério! Ou gostas ou detestas. Tenho andado com a nossa discografia no carro, a revisitar tudo e estou-me sempre a passar! É curioso que quando consegues fazer música e passado dez anos ainda ouves e pensas “nós eramos mesmo fora da caixa, estávamos mesmo à frente naquela altura”, isso é mesmo muito forte. Acho que é assim que se fazem os clássicos, quando não te preocupas em fazer o hit de Verão de 2018, quando simplesmente fazes a música que acompanha a tua adolescência, a tua vida.

Como vêem a transição do hip-hop para o grande público?
F:
Essa transição para o grande público já aconteceu no rock e em muitos géneros musicais. O hip-hop é um género que agora podemos dizer que já tem uma grande longevidade, mas até há bem pouco tempo não, era uma cultura recente, era uma cultura que ainda estava a crescer, a descobrir-se e a expandir-se. Era inevitável como cultura, como movimento, chegar às grandes massas e tornar-se o género musical mais ouvido em todo o planeta. Está mais presente do que as pessoas imaginam, não só pela musicalidade, mas pela maneira de estar, maneira de vestir, a forma gestual, o calão. As pessoas hoje em dia em Portugal – nós levamos tudo com atraso – utilizam pequenos traços da cultura hip-hop que vem da cultura street. Já usam streetwear sem gostarem sequer de hip-hop, sem saberem de onde vem essa forma de vestir. Isso é giro. Vem tudo dessa cultura. Ninguém se apercebe, mas já esta vincado na sociedade.

Vamos ter novidades dos Dealema em breve? Algum trabalho novo em vista?
MS: Estamos a trabalhar em material novo, mas daí a vir a ser um disco ainda não sabemos. Para já temos umas letras, instrumentais, logo se verá.

Os Dealema, grupo referencial do hip-hop do Porto (Ricardo Castelo / OBSERVADOR)