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A juíza Marta de Carvalho, titular do processo Face Oculta, assinou ao início da manhã desta segunda-feira o despacho judicial que ordena a Armando Vara que se apresente no Estabelecimento Prisional de Évora, confirmou ao Observador o presidente do Tribunal Judicial de Aveiro, Paulo Brandão. O ex-ministro tem agora três dias para se apresentar no Estabelecimento Prisional (EP) de Évora para cumprir a pena de 5 anos a que foi condenado por três crimes de tráfico de influência. Outra opção passa por Vara se apresentar noutro estabelecimento prisional ou esquadra da PSP, sendo posteriormente transferido para Évora.

A magistrada judicial invocou a alínea d) do art. 17.º do Código de Execução de Penas para determinar a “apresentação voluntária” em vez de emitir o “mandado de detenção” que a alínea b) da mesma norma também prevê. A juíza Marta de Carvalho não considera assim que exista perigo de fuga.

Caso não se apresente no final desses três dias, a juíza Marta de Carvalho emitirá então um mandado de detenção para Armando Vara ser capturado e entregue no EP de Évora.

A juíza Marta de Carvalho ordenou igualmente que Manuel Guiomar, ex-funcionário da Refer, e João Manuel Tavares, ex-funcionário da Petrogal, se apresentem igualmente perante as autoridades para serem transferidos para os estabelecimentos prisionais respetivos onde cumprirão as penas de prisão a que foram condenados pelo Tribunal Judicial de Aveiro. Guiomar foi condenado a uma pena de prisão de a seis anos e meio de prisão por um crime de corrupção e quatro crimes de burla, enquanto Tavares irá cumprir uma pena de prisão de cinco anos e nove meses de prisão.

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Já Manuel Gomes, ex-funcionário da Lisnave condenado a uma pena de prisão de quatro anos e quatro meses por um crime de corrupção passiva e dois crimes de burla qualificada, viu a juíza Marta de Carvalho confirmar a prescrição de um dos três crimes a que foi condenado Assim, terá de ser feito um novo cúmulo jurídico da sua pena antes de ser ordenada a sua apresentação junto das autoridades.

A razão da prisão de Vara

Depois de cerca de 11 anos, tempo entre o início da investigação e o trânsito em julgado da sentença, este é o epílogo para a participação do ex-ministro e banqueiro no processo Face Oculta — mas não terminam aqui os seus problemas com a Justiça. A Operação Marquês e a investigação à alegada má gestão na Caixa Geral de Depósitos são processos judiciais onde Vara, um dos melhores amigos de José Sócrates, também é um dos principais suspeitos.

Mas afinal, o que está agora na origem da prisão do ex-ministro-adjunto de António Guterres?

O processo Face Oculta está centrado no sucateiro Manuel Godinho, líder do grupo O2 que foi acusado de liderar uma “rede tentacular” que tinha como objetivo assegurar contratos para as suas sociedades de resíduos junto de empresas públicas ou de serviços públicos como a Refer (Rede Ferroviária Nacional), REN (Redes Energéticas Nacionais), EDP, Lisnave, EP — Estradas de Portugal, EMEF, CP ou Petrogal. O então vice-presidente do BCP, assim como outras figuras do Partido Socialista (como José Penedos, então presidente da REN, o seu filho Paulo Penedos, assessor da PT e advogado de Manuel Godinho), fazia parte dessa rede de Godinho e tinha como função exercer a sua influência junto do então Governo de José Sócrates.

Armando Vara foi condenado pela prática de três crimes de tráfico de influência, sendo que dois deles estão relacionados com Mário Lino, então ministro das Obras Públicas. Segundo a sentença, começou por influenciar Lino em 2006 para interceder junto de Luís Pardal, então presidente do Conselho de Administração da Refer, em favor do Grupo O2. Pardal mandou investigar os favorecimentos de diversos funcionários da gestora da rede ferroviária nacional ao Grupo O2, afastando um deles, e colocou o grupo do sucateiro de Ovar em tribunal. Godinho queria resolver o conflito judicial e Vara aceitou ajudá-lo. O sucateiro e o administrador do BCP tinham mesmo um telefone exclusivo para as suas conversas.

Armando Vara e Manuel Godinho tinham um telefone exclusivo para as suas conversas

Como Pardal afastou o Grupo O2 dos concursos da Refer, Manuel Godinho voltou a solicitar os serviços de Vara em 2009. Objetivo? Afastar Ana Paula Vitorino da Secretaria de Estado dos Transportes (que tutelava a Refer) e Luís Pardal da gestora da rede ferroviária nacional.

Finalmente, o terceiro crime de tráfico de influência pelo qual Vara foi condenado prende-se com a influência exercida com sucesso sobre Domingos Paiva Nunes, administrador da EDP Imobiliária (Grupo EDP), para que as empresas de Manuel Godinho fossem contratadas. O que veio a acontecer em 2009.

A lei penal portuguesa não obriga a que a contrapartida patrimonial (dinheiro, bens ou serviços) tenha sido efetivamente concedida ou recebida para que haja condenação, mas o Tribunal Judicial de Aveiro (e os tribunais superiores que confirmaram a sentença da primeira instância) deu como provado que Armando Vara recebeu duas contrapartidas por aqueles favorecimentos ao grupo de Manuel Godinho:

  • Diversas prendas de Natal entregues entre 2004 e 2008 no valor total de 7.473 euros. Entre os bens oferecidos contam-se dois relógios, duas canetas e um decantador;
  • E 25 mil euros em numerário.

Durante o julgamento do processo Face Oculta, nomeadamente durante a apreciação da prova que levou à condenação de Armando Vara, foi ainda referida a possibilidade de o PS ter sido financiado pelo Grupo O2 — matéria sobre a qual não foram encontrados indícios em termos de fluxos financeiros durante a investigação. Quem levantou a questão foi Ana Paula Vitorino, que hoje é ministra do Mar do Governo de António Costa.

Ana Paula Vitorino diz que Mário Lino lhe referiu que a empresa de Manuel Godinho era “amiga do PS”

Ana Paula Vitorino confirmou que Mário Lino a abordou diretamente sobre a rescisão do contrato e as acusações de fraude feitas à O2 pela Refer, tendo enfatizado que a empresa de Manuel Godinho era “amiga do PS”, que havia pessoas importantes no partido muito preocupadas com a matéria (uma referência a Armando Vara) e que Ana Paula Vitorino, enquanto membro do Secretariado Nacional daquele partido, não podia deixar de ter esse facto em consideração. De acordo com o depoimento da ex-secretária de Estado dos Transportes, esta nem quis “falar do assunto” e “estava farta que os partidos tivessem as costas largas”.

Para o coletivo de juízes que julgou o caso Face Oculta, contudo, a expressão “empresa amiga do PS “não pode ter outro significado que não seja o de a mesma [empresa], representada por Manuel Godinho, estar disposta a contribuir com donativos para o Partido Socialista”.

Operação Marquês: a comissão dividida com José Sócrates

Se o processo Face Oculta já está resolvido, no caso da Operação Marquês ainda faltam vários passos para uma condenação ou um arquivamento. Nos autos que têm o seu amigo José Sócrates como principal arguido, Armando Vara foi acusado pelo Ministério Público de um crime de corrupção passiva de titular político, em regime de co-autoria com Sócrates, de dois crimes de branqueamento de capitais — sendo que um deles é em regime de co-autoria com José Sócrates e o outro com em co-autoria com a sua filha Bárbara —, e de dois crimes de fraude fiscal.

A suspeita central imputada ao então administrador da Caixa Geral de Depósitos prende-se com um alegado favorecimento na concessão de crédito a um grupo de investidores liderados por Hélder Bataglia, Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa para adquirirem e expandirem o empreendimento de luxo Vale do Lobo, no Algarve.

Está em causa um valor total de 284 milhões de euros que a Caixa Geral de Depósitos arriscou num financiamento considerado ruinoso pelo Ministério Público. O grupo de investidores apenas entraram com cerca de 6 milhões de euros de capitais próprios, enquanto a Caixa colocou o remanescente, ficando com o risco quase integral de todo o projeto. Resultado: a empresa que comprou o resort deixou de pagar o empréstimo da CGD desde 2009 e a dívida ia, no final de 2016, em 357,8 milhões de euros com os juros de mora.

De acordo com a tese do Ministério Público, Armando Vara seguiu instruções de José Sócrates no alegado favorecimento na cedência do crédito ao grupo de investidores, tendo existido uma comissão de 2 milhões de euros sido dividida entre Sócrates e Vara.

Na Operação Marquês, Armando Vara é suspeito de ter dividido uma comissão com José Sócrates

Pelo meio, aparece um empresário holandês chamado Jerome Van Dooren que diz ter transferido o valor dessa comissão, sem o saber, para uma conta aberta no banco suíço UBS que estava em nome de Joaquim Barroca, então vice-presidente do Grupo Lena. Van Dooren jurou ao procurador Rosário Teixeira, quando depôs nos autos da Operação Marquês, que se limitou a transferir entre janeiro e abril de 2008 tal valor para o número de conta bancária que lhe foi indicado por Diogo Gaspar Ferreira, administrador da empresa Vale do Lobo.

Certo é que Joaquim Barroca veio a confirmar ao Ministério Público que passou ordens de transferência em branco a Carlos Santos Silva, o alegado testa-de-ferro de José Sócrates, tendo declarado que tinha sido Santos Silva a transferir, entre fevereiro e junho de 2008, um milhão de euros para conta da Giffard Finance (uma sociedade offshore de Santos Silva) e outro milhão para a conta da Vama Holdings, uma sociedade offshore detida por Armando Vara e pela sua filha Bárbara.

O ex-ministro adjunto de António Guterres contesta a acusação do Ministério Público e requereu a abertura de instrução para evitar a pronúncia para julgamento. Vara considera que a acusação não tem fundamento e que os autos devem ser arquivados.

O inquérito da CGD e o risco de prescrição

Há ainda um terceiro processo no qual Armando Vara pode vir a ter problemas no futuro: a investigação aberta à alegada má-gestão da Caixa Geral de Depósitos. O inquérito, como noticiou recentemente o Correio da Manhã, não tem arguidos constituídos mas diversos dossiês da administração de Carlos Santos Ferreira (da qual Vara fez parte) são visados pela investigação do Ministério Público.

Armando Vara integrou a administração liderada por Santos Ferreira entre 2005 e 2007 sem qualquer experiência de gestão bancária. Funcionário da Caixa no seu distrito natal de Bragança, Vara era um empregado de balcão numa agência de Mogadouro nos anos 80 antes de pedir licença sem vencimento para se dedicar à política.

Entre os dossiês mais problemáticos do ponto de vista da investigação criminal, e além do já referido caso de Vale do Lobo, encontra-se o financiamento a um grupo de acionistas do BCP para adquirirem ações deste banco privado no meio de uma guerra de poder entre Paulo Teixeira Pinto e Jardim Gonçalves que decorreu entre 2007 e 2008. Na altura, o Público noticiou que a administração da Caixa tinha financiado o grupo de acionistas liderado por Joe Berardo, Manuel Fino, Moniz da Maia e Pedro Teixeira Duarte em cerca de 500 milhões de euros. Só Joe Berardo terá sido financiado em cerca de 280 milhões, segundo uma notícia do Correio da Manhã. Qual a importância destes créditos? O eventual conflito de interesses da parte de Carlos Santos Ferreira e de Armando Vara ao autorizarem empréstimos a acionistas que viriam a indicá-los para a liderança da administração do BCP em 2008: Carlos Santos Ferreira como presidente e Armando Vara como vice-presidente.

Além desse eventual conflito de interesses, sempre negado por Santos Ferreira e Vara, existe ainda a questão financeira: todos esses créditos geraram imparidades de várias centenas de milhões de euros devido à abrupta descida de valor do título BCP.

Armando Vara esteve com Carlos Santos Ferreira nas administrações da Caixa e do BCP

Existem ainda outros dossiês com forte componente política que poderão causar problemas a Armando Vara. Um está relacionado com a aquisição da empresa catalã La Seda e o chamado projeto Artlant — construção de complexo petro-químico na zona de Sines. Os dois dossiês estão inter-ligados, tiveram um forte apoio do Governo de José Sócrates e um financiamento onde a Caixa Geral de Depósitos já foi obrigada a registar, só no caso da Artlant, imparidades de 520 milhões de euros.

O outro está relacionado indiretamente com o BCP. Depois da ida de Armando Vara para o banco fundado por Jardim Gonçalves, foi aprovado o financiamento da construção do Autódromo do Algarve — um investimento que foi declarado pelo Governo Sócrates como um Projeto de Interesse Nacional (PIN). O BCP colocou cerca de 117,4 milhões de créditos neste elefante branco algarvio que foi acarinhado pelo primeiro-ministro José Sócrates e o ministro Manuel Pinho, o que levou ao envolvimento no capital acionista da Parkalgar, a empresa gestora do autódromo, de fundos de capital de risco da AICEP e do Turismo Portugal, duas entidades de capitais públicos tuteladas pelo Executivo.

Todos estes casos, cujas decisões foram tomadas entre 2005 e 2007, podem ter um problema jurídico chamado prescrição — o que, a confirmar-se, obrigará ao arquivamento dos autos.