Entre 1977 e 1985, foi publicada, no Porto, uma revista chamada Persona. O nome não dirá muito à grande maioria das pessoas, mas a publicação teve um papel fundamental na divulgação e desenvolvimento dos Estudos Pessoanos, que estavam a dar os seus primeiros passos. Passados 34 anos do seu fim, motivado por problemas de financiamento contra os quais o Centro de Estudos Pessoanos, que a editava, sempre lutou, a Persona voltou. A reedição, uma ideia da Casa Fernando Pessoa concretizada pela editora Tinta-da-China, é a primeira de uma revista de comentário crítico e ensaio literário. E isso é já “um acontecimento em si”, como apontou Fernando J.B. Martinho na apresentação, esta quinta-feira.
O processo que levou à republicação da Persona, o “acontecimento editorial mais relevante” deste ano para a Casa Fernando Pessoa, começou no final do Congresso Internacional dedicado ao poeta português, realizado em Lisboa em 2017. O último painel do evento foi dedicado à história dos congressos pessoanos. “O dr. José Blanco voltou a falar da Persona e na construção dos Estudos Pessoanos”, lembrou a diretora da Casa Fernando Pessoa nesta quinta-feira.
Já vários investigadores tinham apontado a Clara Riso “o papel” que a revista “teve, tem e a falta que ainda faz”, e como ela tinha sido esquecida. Atenta a essas queixas, a diretora decidiu assumir “o resgate” da Persona, cuja reedição fac-similada considera ter o investigador “como co-autor”. Esse “resgate” foi concretizado com a ajuda da Tinta-da-China, cuja contribuição Madalena Alfaia considerou “residual”. “Já tínhamos o material todo”, admitiu a editora na apresentação, que contou com a participação de Fernando J. B. Martinho e António Guerreiro.
Fernando Martinho, professor aposentado da Faculdade de Letras de Lisboa, acompanhou “desde muito cedo a Persona” devido ao interesse que já tinha na obra de Fernando Pessoa e chegou mesmo a participar nos primeiros congressos pessoanos. Apontando que a revista publicada pelo Centro de Estudos Pessoanos do Porto consiste num “dos momentos mais representativos da tradição pessoana em Portugal, que começou com a geração da presença”, que redescobriu e divulgou a chamada primeira geração de modernistas portugueses, Martinho classificou esta nova edição como “um acontecimento em si”, digno do “mais eloquente registo” por se tratar da primeira de uma publicação deste género.
A revista, dedicada essencialmente ao “comentário crítico, estudos e ensaios”, começou a ser publicada um ano depois da inauguração do Centro de Estudos Pessoanos, em 1976, e procurou sempre abraçar “outras áreas” e outros escritores. Mário de Sá-Carneiro foi sempre, como não poderia deixar de ser, uma figura muito presente (é até referido no primeiro texto do n.º 1, lido durante a abertura do Centro de Estudos Pessoanos a 26 de abril de 1976), em parte devido à atenção que Arnaldo Saraiva, fundador do centro e da revista, sempre lhe dedicou. Camilo Pessanha teve direito a um número especial — o 10, de julho de 1984 —, mas houve muitos outros que tiveram direito a lugar na publicação.
A revista dos “mais iminentes”
Durante os oito anos que existiu, a Persona reuniu os “mais iminentes especialistas em Pessoa”, em Portugal e no estrangeiro, numa altura em que o nome do autor da Mensagem começava a atravessar fronteiras e a chegar a outros leitores. Isto aconteceu graças ao trabalho de investigadores como Pierre Hourcade, George Rudolf Lind ou Ángel Crespo, que traduziram e divulgaram os poemas de Pessoa nos seus países de origem. “Desde o início que houve uma vertente internacional”, frisou Martinho, lembrando que a Persona publicou muitas vezes textos nas línguas originais dos seus autores, como aconteceu com Crespo, um dos primeiros académicos espanhóis a mostrar interesse na obra de Fernando Pessoa.
Outro aspeto da revista que Fernando Martinho considerou importante foi o da publicação de textos inéditos de Pessoa ou ligados a ele, de que é exemplo a carta de Júlio Dantas, apresentada no n.º 4 (janeiro de 1981) e comentada no n.º 5 (abril de 1981) por Alfredo Margarido. “Este texto do Dantas é muito curioso”, comentou o especialista em poesia portuguesa contemporânea, explicando que, na curta missiva, o então presidente da Academia de Ciências acusava a receção de um exemplar de Mensagem que Pessoa lhe tinha enviado. O comentário de Margarido também não deixa de ter interesse, embora este tivesse uma ideia muito vincada sobre a posição política do poeta, que associava “às políticas do Estado Novo”.
Outro inédito para o qual Martinho chamou a atenção foi o poema “O carro de pau”, apresentado por Arnaldo Saraiva no n.º 8 depois de “gentilmente cedido para publicação pela irmã de Fernando Pessoa, D, Henriqueta Madalena Rosa Dias”, como explicou o fundador do Centro de Estudos Pessoanos numa nota. Trata-se de um texto não assinado, que “tem ligações a outros textos” e “que terá sido inspirado pelo falecimento de uma criança de 14 meses, filha de D. Henriqueta Madalena, que tive o prazer de conhecer no primeiro Congresso de Estudos Pessoanos”, realizado em Portugal, no Porto, em abril de 1978, afirmou o professor aposentado da Faculdade de Letras de Lisboa.
O n.º 8 da Persona, publicado em março de 1983, foi “um número notável porque tem alguns dos ensaios mais espantosos, como o de Leyla Perrone-Moiséis, [‘O lixo/luxo de Bernardo Soares’,] sobre o Livro do Desassossego, e o de [Georg] Rudolf Lind, [‘O Livro do Desassossego — um breviário do decadentismo,] um alemão-austríaco a quem a cultura portuguesa muito deve”. Este livro, “que ainda nos continua a inquietar”, teve alguns dos seus primeiros estudos publicados na Persona, que acompanhou de perto a sua publicação, em 1982.
Depois da Persona, “houve algo que se perdeu”
António Guerreiro, que também participou na apresentação, esteve quase para ter o seu nome impresso na Persona. O professor da Faculdade de Belas Artes de Lisboa enviou uma proposta de ensaio para o n.º 13, só que este nunca chegou a sair. Não havia dinheiro para dar continuidade ao projeto. Dos tempos da revista, Guerreiro recorda sobretudo os últimos números, seus contemporâneos, e foi por essa razão que, esta quinta-feira, analisou o projeto sobretudo do ponto de vista da história da receção de Fernando Pessoa. Para o especialista em literatura portuguesa contemporânea, a Persona “abriu Pessoa”, que tomou “como centro de uma constelação muito mais vasta”, para novos horizontes. Só que, depois de 1985, houve “algo que se perdeu”. “Ficamos com uma noção muito clara [disso] quando revisitamos esta revista”.
Desde então, “os Estudos Pessoanos desenvolveram-se no sentido de privilegiar muito mais as questões filológicas do que as de interpretação”, afirmou Guerreiro, defendendo que as edições mais recentes da obra de Pessoa estão mais preocupadas com a edição do que com a análise. “Quando hoje leio esta revista, fico com a impressão de que havia matérias para serem prosseguidos e que, muitas vezes, não foram.” Isto porque os estudos sobre a obra do poeta português, seguiram “outras vias”. Houve uma mudança que começou com a Persona e que, até hoje, ainda não parou.