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Gamma-Keystone via Getty Images

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"Portugueses na Lista Negra de Hitler." A história dos 19 sefarditas em Bergen-Belsen que Portugal não quis salvar

Durante dez anos, Miriam Assor seguiu o rasto dos 19 indivíduos com nacionalidade portuguesa que foram deportados para Bergen-Belsan por inação do Governo português. Falámos com a autora.

Entre 1912 e 1913, no contexto das Guerras dos Balcãs, vários súbditos judaicos do Império Otomano na Grécia obtiveram títulos provisórios de nacionalidade portuguesa por serem descendentes de judeus expulsos de Portugal no século XV. A grande maioria residia em Salónica, onde existia uma importante comunidade judaica sefardita. Eram pessoas com ligações afetivas e emocionais a Portugal, que nalguns casos preservavam os costumes e a língua dos seus antepassados. Quando Salónica foi conquistada pelos alemães, em abril de 1941, e principalmente quando os judeus começaram a ser perseguidos e deportados, um ano depois, muitos optaram por mudar-se para a capital grega, Atenas, onde era ainda possível viver com alguma normalidade. A situação mudou no início de 1943, quando a comunidade judaica ateniense foi segregada em duas áreas da cidade e obrigada a usar a Estrela de David. As deportações para os campos de concentração começaram em março desse ano.

Entre os judeus que foram enviados para Bergen-Belsen, encontrava-se um grupo de 19 indivíduos com nacionalidade portuguesa. Estes passaram um ano no Bloco Neutro do campo de concentração no norte da Alemanha, aguardando que Portugal respondesse aos seus apelos e os libertasse. Mas tal não aconteceu — apesar das muitas cartas escritas e enviadas e dos apelos de diferentes associações judaicas em Portugal, os judeus sefarditas Nino, Marguerite e Elie Barzilai, Elie, Ester e Jacques Benveniste; Vital, Rebeca, Nina e Jacques Benveniste; Maurice Dosti, Elie, Ketty, Humberto e Maurice Levy; e Elie, Flora, Joseph e Lea Salmona, só encontraram a liberdade por que tanto desejaram depois do final da guerra, a bordo de um “comboio perdido” com destino à atual República Checa. Antes de chegarem a meio do caminho, foram descobertos por soldados norte-americanos. Depois de terem atravessado meia Europa, puderam finalmente regressar a casa.

Portugueses na Lista Negra de Hitler, de Miriam Assor, chegou às livrarias esta semana

Até à publicação, esta semana, de Portugueses na Lista Negra de Hitler, da jornalista e investigadora Miriam Assor, pouco ou nada se sabia sobre esses 19 judeus. “Sabia-se que eles existiam, qual foi o seu destino, o que lhes tinha acontecido”, mas não se sabia quem eram, explicou a autora. E foi precisamente isso que motivou a escritora a descobrir quem eram e como tinham sido as suas vidas. “Quando vejo nomes, preciso saber quem são essas pessoas. Preciso saber um bocadinho sobre elas. Foi por isso que demorei tanto tempo [a terminar o livro]”, admitiu ao Observador, relatando como, há mais de dez anos, descobriu, “por acaso”, a sua história.

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“Estava a acabar o livro sobre o Aristides de Sousa Mendes [Aristides de Sousa Mendes — Um Justo Contra a Corrente] e, no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros [Em Lisboa], encontrei, de repente, um dossiê, que não devia estar no dossiê do Aristides, que dizia ‘judeus portugueses levantinos’.” Curiosa, abriu-o. “Vi uma carta de 1940 de um judeu a pedir que lhe renovassem o passaporte; depois outra… Mas não me podia entusiasmar, porque tinha de acabar o outro livro. Mas fiquei com aquilo na cabeça.” A descoberta aconteceu em 2009, mas a pesquisa só arrancou verdadeiramente dois anos depois, em 2011. O livro foi apenas dado como terminado em 2022. “Demorou este tempo todo porque o mundo é muito grande para encontrar pessoas”, esclareceu a jornalista. “Curiosamente, quando se apanha uma pista, parece que o mundo começa a encolher e que tudo tem uma lógica.”

Tropas alemãs junto ao edifício governamental em Atenas no início da ocupação da Grécia, em maio de 1941

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Dando como exemplo o caso de Nino Barzilai, Miriam Assor detalhou como conseguiu encontrar os seus descendentes. “Em 1946, quando deu uma entrevista, estava em França e era ali que ia ficar. Talvez em Paris. Pela data de nascimento, percebi que o filho podia estar vivo. Em França, Barzilai é como Silva aqui. Andei a ver páginas brancas francesas. Todos os dias ligava para dez. E houve um dia em que liguei e atendeu uma mulher a quem pedi para falar com Elie Barzilai. Quando ouvi a voz dele, pensei que aquele francês era espanholado. Disse que estava a fazer um trabalho sobre a Segunda Guerra Mundial e que gostava de falar com o filho do senhor Nino Barzilai. ‘Nino Barzilai é o meu pai. A minha mãe era Marguerite Barzilai. Eu sou o Elie Barzilai.’ Entretanto ele morreu. Estava doente, tinha tido um AVC. Morreu com 80 anos. Ainda comunicámos mais duas vezes.”

Com a morte de Elie Barzilai, o único sobrevivente do grupo de 19 judeus portugueses é Maurice Levy. Filho de Ketty e Elie Levy, tinha seis anos quando foi deportado para Bergen-Belsen com os pais e o irmão, Alberto. O sobrevivente ainda se recorda da madrugada de março de 1944 em que o pai foi detido em Atenas e a família informada de que se devia juntar a ele no dia seguinte na sinagoga. Passaram um dia no templo, onde estavam outras famílias de judeus, sem água ou comida. De noite, foram levados para Haidari, “um campo militar grego abandonado” em Atenas. “E dali, para dentro de vagões de animais, com um contentor para dejetos humanos, sem comida; apenas nos davam água, alguma, pouca. A viagem para Bergen-Belsen foi horrenda”, contou. O pior, porém, ainda estava para vir. No campo de concentração, viu “muitas pessoas morrerem, ou serem mortas”. “Vivíamos em modo de sobrevivência, dia a dia.”

“São histórias tristes, mas há uma força que não sei explicar. Estiveram em campos de concentração, tinham de estar horas e horas de pé ao frio, comiam uma sopa por dia e dizem-me que aprenderam inglês. Entre eles, havia um sentido de sobrevivência. Enquanto estavam ali, a cabeça tinha de continuar a funcionar, porque o corpo estava a falir. Descobres isto e depois tens de saber quem eram estas pessoas.”
Miriam Assor

O destino dos 19 judeus portugueses que Portugal não quis ajudar

Em Atenas, o inevitável destino dos 19 judeus portugueses, dez dos quais nascidos e criados em Salónica, foi sendo adiado. Como tinham passaportes emitidos por um país que tinha assumido uma posição de neutralidade na Segunda Guerra Mundial, a Alemanha não podia, teoricamente, encarcerá-los. Foram primeiro levados para um campo de trânsito nos subúrbios de Haidari, em Atenas, que era operado pelas SS, e só depois transportados para a Alemanha. O campo de Haidari funcionou de setembro de 1943 até ao mesmo mês do ano seguinte. Durante um ano, terão por ali passado cerca de 21 mil pessoas, incluindo judeus, prisioneiros de guerra italianos e presos políticos gregos. A maioria dos judeus foi levada para Auschwitz, na Polónia. Numa entrevista concedida n<o final da guerra, Nino Barzilei relatou o dia a dia em Haidari: os prisioneiros eram obrigados a transportar pedras e areia durante todo o dia de um sítio para o outro. “Era um trabalho bastante duro e eles castigavam-nos muito e espacavam-nos”, contou. “Era um trabalho que eles inventaram para nos cansar, pois transportávamos as pedras de um sítio para o outro e, no dia seguinte, mandavam-nos carregar as pedras de volta para o mesmo sítio. Não havia obras de fortificação, bem obras para nada, mas somente este transporte que nos obrigavam a fazer todos os dias.”

Depois de cerca de dois meses em Haidari, os 19 judeus portugueses, juntamente com outros de outras nacionalidades, foram deportados a 12 de abril de 1944 para Bergen-Belsen, onde ficaram alojados no chamado Bloco Neutro, juntamente com cerca de 155 espanhóis que foram posteriormente resgatados pelas autoridades de Espanha. Um grupo mais pequeno de turcos, que deveria ter tido o mesmo destino, foi recolhido junto à fronteira grega, não tendo chegado a pisar solo alemão. Apenas os portugueses foram deixados para trás. “Não sei porquê”, lamentou Miriam Assor, que tem ainda dificuldades em perceber a inação do Governo português, que se recusou a prestar ajuda, apesar dos apelos feitos pelos próprios encarcerados e pela comunidade judaica em Portugal. Entre os documentos consultados pela jornalista, encontra-se uma carta remetida pela Comunidade Israelita de Lisboa ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, pedindo que auxiliasse o “pequeno grupo de portugueses israelitas” na Grécia. A missiva é de 10 de maio, numa altura em que estes já se encontravam em Bergen-Belsen sem que a associação tivesse conhecimento disso.

O campo de concentração de Bergen-Belsen, no norte da Alemanha, depois da libertação. Foi neste campo que os 19 portugueses estiveram durante um ano

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As cartas foram-se seguindo umas às outras. Um outro documento, guardado no arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, chegou a Portugal por intermédio do cônsul em Barcelona e a este através da delegação espanhola em Atenas, porque o consulado português tinha sido encerrado. Na missiva, escrita em espanhol, Nino Barzilai contou que estava inscrito no consulado de Portugal há 20 anos e que, por não ter como renovar a documentação em Atenas, apelava ao consulado em Barcelona que tratasse disso. Barzilai rogou “encarecidamente” que lhe fosse enviada a documentação necessária e que as autoridades em Espanha tivessem “a bondade de fazer o dito envio com a maior rapidez possível”. A carta é datada de 18 de novembro de 1943, mas só chegou a Barcelona a 7 de fevereiro de 1944.

Por estarem detidos no Bloco Neutro, os judeus portugueses não tinham de trabalhar. Mas isso não significava que a vida fosse mais fácil ou a experiência menos horrível e traumática. “Não trabalhavam, mas tinham de estar em pé horas e horas ao frio. Comiam uma sopa ao dia, as condições sanitárias eram inexistentes — o pátio era a sanita. Havia doenças, tragédias”, apontou Miriam Assor. Maurice Levy, o único sobrevivente do grupo, relatou à jornalista a dura realidade do Bloco Neutro, onde viu muitas pessoas morrerem por “desnutrição e doença”. “Estávamos sempre com fome. A comida dada servia para sobreviver. Tenho a sensação de que estávamos resignados a viver numa situação em que os alemães tinham o poder de matar arbitrariamente qualquer um de nós. Então, vivíamos em modo de sobrevivência, dia a dia, sem fazer suposições de que viveríamos outro dia”. Maurice Levy viu “muitas pessoas morrerem, ou serem mortas”. O sobrevivente admitiu não se recordar de algum dia ter visto algum funcionário português no campo e disse ter provas documentais em como Portugal não estava interessado no destino das famílias ali detidas.

"Não sei até que ponto Portugal não queria agradar. Há cartas que mostram que as pessoas não queriam tomar responsabilidades, apesar de os nazis dizerem em carta para tratarem deles [dos judeus] porque não os queriam lá. Andaram a trocar cartas durante dois anos. Só começaram a pensar no que é que haviam de fazer em maio de 1944, quando os portugueses estavam presos desde março.”
Miriam Assor

A 7 de abril de 1945, percebendo que não havia forma de reverter o rumo da guerra, oficiais alemães escoltaram os judeus de Bergen-Belsen para dentro de três comboios com destino ao campo de concentração de Theresienstadt, na atual República Checa. As pessoas com documentos emitidos por países neutros foram metidas dentro do terceiro comboio, que acabou por ser o primeiro a deixar o campo. Este percorreu cerca de 150 quilómetros até que foi abandonado pelos alemães, que temiam ser atacados pelas forças aliadas. Os seus ocupantes foram libertados a 13 de abril por soldados norte-americanos. Depois de uma temporada numa localidade alemã, foram repatriados, primeiro para Magdeburg e depois para Bruxelas, Marselha e Bari. Eventualmente regressaram à Grécia, mas, com o início da guerra civil, muitos acabaram por abandonar o país e nunca mais regressaram.

Segundo um documento divulgado pelo investigador e jornalista António Melo, citado por Miriam Assor, o Estado português foi informado de que as deportações iam começar na Grécia em dezembro de 1943, mas nada fez a esse respeito, apesar dos muitos pedidos de ajuda que foram sendo remetidos para o Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa. A resposta foi sendo empurrada até ao final do conflito. “Aquelas pessoas ficaram ao deus-dará. Pediram ajuda, mas não foram ouvidos”, disse a jornalista. Miriam Assor tem a certeza de que não foi por antissemitismo, mas por “medo de tomar uma decisão”, talvez porque “a Alemanha estava a ganhar a guerra”. “Não sei até que ponto Portugal não queria agradar. Há cartas que mostram que as pessoas não queriam tomar responsabilidades, apesar de os nazis dizerem em carta para tratarem deles [dos judeus] porque não os queriam lá”, disse a investigadora. “Andaram a trocar cartas durante dois anos. Só começaram a pensar no que é que haviam de fazer em maio de 1944, quando os portugueses estavam presos desde março. Foram deportados para Bergen-Belsen a 12 de abril de 1944. Ficaram ali um ano.”

Três mulheres carregam o corpo de uma vítima em Bergen-Belsen, após a libertação do campo de concentração pelas forças norte-americanas, em abril de 1945

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Constatando que o rumo da guerra mudou radicalmente depois da invasão da Normandia, a 6 de junho de 1944, e que Portugal podia ter feito nessa altura alguma coisa para ajudar os cidadãos em Bergen-Belsen, a jornalista lembrou que foi só após o final da Segunda Guerra Mundial que as autoridades portuguesas se “mexeram” e que houve foi mostrado algum “cuidado”. “Estas pessoas foram repatriadas e aí sim, [os oficiais portugueses] dizem que estavam em estado muito crítico de saúde e que lhe vão dar tudo e mais alguma coisa. Mas enquanto estiveram a definhar, ninguém os foi buscar.”

Caso muito diferente é o dos trabalhadores portugueses escravizados pelos nazis. A partir de 1942, quando foi necessário enviar mais alemães para a frente de batalha, a Alemanha decidiu recorrer a mão de obra escrava para “evitar o colapso económico”, explicou Miriam Assor no seu livro. Estima-se que 13 milhões de pessoas tenham sido obrigadas a trabalhar para a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, entre as quais cidadãos de países ocupados e também de países neutros, como Portugal. Ao contrário do que aconteceu com os judeus portugueses, Portugal procurou saber junto do governo alemão porque é que a neutralidade não estava a ser respeitada e por que razão as autoridades alemãs continuavam a requisitar, sequestrar e deportar portugueses residentes em França. Os alemães não se dignaram a responder a Portugal. “A Alemanha ignorou [Portugal] porque tinha mão de obra especializada que trabalhava gratuitamente para o Estado. Estas pessoas tinham saído de Portugal à procura de uma vida melhor. Foram para França e, coitados, foram raptados para ir para a Alemanha”, disse a investigadora e jornalista. “Por outro lado, havia portugueses que eram levados porque tinham outros ideais sem serem fascistas. Alguns eram anarquistas e outros tinham estado em Espanha durante a Guerra Civil”, que decorreu entre 1936 e 1939.

"É um livro que me comove. Ainda nem o consegui ler. Fiz as provas de forma mecânica, porque há ali histórias horríveis. Há coisas que não consigo compreender. Isto passou-se numa altura em que poucas pessoas tiveram coragem. Conta-se pelos dedos as pessoas que tiveram atitudes de salvamento.”
Miriam Assor

“São histórias tristes, mas há uma força que não sei explicar”, afirmou Miriam Assor. “Estiveram em campos de concentração, tinham de estar horas e horas de pé ao frio, comiam uma sopa por dia e dizem-me que aprenderam inglês. Entre eles, havia um sentido de sobrevivência. Enquanto estavam ali, a cabeça tinha de continuar a funcionar, porque o corpo estava a falir. Descobres isto e depois tens de saber quem eram estas pessoas.” Refletindo sobre a história do Holocausto, a jornalista afirmou que não foram apenas as pessoas que morreram, mas também a sua história. “As pessoas não eram só o número que tinham no braço. Os judeus tinham uma história”, disse. “No gueto de Varsóvia, havia uma orquestra. Faziam-se festas de Shabat, Bar Mitzvahs. Há sobrevivência e há uma história dentro de tudo isto, que o Holocausto nos veio tirar.”

Os “cônsules excecionais” que agiram por sua “conta e risco” e contra o Ministério dos Negócios Estrangeiros

Os oficiais portugueses que tentaram ajudar os portugueses apanhados pela Segunda Guerra Mundial, fizeram-no por sua conta e risco e à revelia do Ministério dos Negócios Estrangeiros, então liderado por António de Oliveira Salazar, ao qual tinham de pedir autorização para conceder passaportes. A 14 de dezembro de 1940, uma circular expedida pelo ministério tornou ainda mais difícil a ação dos cônsules portugueses nas regiões ocupadas. De acordo com a Circular Telegráfica n.º 29, a emissão de vistos e passaportes estava dependente de “consulta prévia à Polícia de Vigilância e Defesa do Estado” (PVDE), a antecessora da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Não querendo compactuar com as alterações introduzidas, o cônsul de Portugal em Marselha, José Augusto Magalhães, que facilitou a saída de França de vários portugueses no país , apresentou a demissão ainda no final desse mês de dezembro. A carta “brutal”, como a descreveu Miriam Assor, é reveladora do caráter do cônsul e dos constrangimentos impostos pelo Governo português aos seus diplomatas.

O documento de identificação de Mário Molho de Almosnino, que regressou a França para ajudar os portugueses apanhados pela guerra

Lembrando que a circular retirou “por completo, aos funcionários consulares o direito de apreciação de casos, que merecem, por vezes serem considerados sob um ponto de vista mais liberal e menos policial”, Augusto Magalhães lamentou na carta que Portugal, “a única porta aberta sobre o resto do mundo”,  não estivesse disponível para prestar auxílio às vítimas “das perseguições políticas e religiosas”, questionando se o Governo português devia, “neste difícil momento histórico que a humanidade atravessa, intercetar o mundo e impedir a salvação dos que precisam de sair deste Velho Mundo em convulsão”. “Foi-me sempre penoso dizer — Não — e hoje ainda mais do que nunca, impondo-se, por isso, a minha rápida e urgente substituição e, se possível, por um colega que sinta prazer em pronunciar aquele vocábulo e em criar dificuldades mesmo às legítimas pretensões”, declarou.

“Há criaturas que nascem para fazer mal e outras que sentem prazer em fazer bem: aquelas (as primeiras) são consideradas por muitos, de fortes, e as últimas são consideradas como fracas. Por um sentimento de lealdade, devo declarar que pertenço ao número dos últimos. E (…) não desejo prejudicar ou embaraçar pelas minhas fraquezas, resultantes de um caráter que já não pode ser modificado, dada a idade a que cheguei”, afirmou.  

Em conversa com o Observador, Miriam Assor lembrou também o caso de Bento Lencastre de Menezes, cônsul honorário de Portugal em Atenas até maio de 1934, quando foi afastado do cargo por ter emitido cerca de 200 passaportes a judeus foragidos contra o pagamento de somas elevadas, baseando-se para isso na disposição de 1913 que permitiu aos sefarditas optarem pela nacionalidade portuguesa. Lencastre de Menezes ficou com “má fama” por ter recebido dinheiro em troca dos vistos, mas, na opinião de Miriam Assor, essa “má fama converteu-se em boa fama, porque carimbando vistos salvou ou tentou salvar pessoas”. Estima-se que os vistos emitidos pelo cônsul antes da Segunda Guerra Mundial tenham salvado da morte dezenas de pessoas. “Portugal teve cônsules excecionais”, comentou a jornalista e investigadora. “Nunca teve uma atitude oficial de dar uma lição à humanidade. Não o fez. Foram os diplomatas que o fizeram, por sua conta e risco.”

Miriam Assor é autora de "Aristides de Sousa Mendes — Um Justo Contra a Corrente" e "Judeus Ilustres de Portugal". "Portugueses na Lista Negra de Hitler" é o seu mais recente livro

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Houve também cidadãos comuns que não olharam aos perigos para ajudar quem mais precisava. Foi o caso de Mário Molho de Almosnino, cuja história excecional foi contada por Miriam Assor no terceiro capítulo do seu livro. Um “caso de estudo”, Molho de Almosnino nasceu em 1909, em Salónica, no seio de uma família tradicional judaica. Em 1927, emigrou para França. Estabeleceu-se primeiro em Marselha e depois em Paris, onde casou com Alice Benveniste, em 1932. Em 1940, após a capital ter sido tomada pelos nazis, Molho de Almosnino regressou a Marselha com a mulher e as duas filhas. O cônsul José Augusto Magalhães aprovou-lhe um passaporte e a família saiu de França para Portugal, mais precisamente para Lisboa. Pouco depois, Molho de Almosnino decidiu regressar a França, contactando para isso a Cruz Vermelha de Portugal e propondo a organização de uma delegação temporária para ajudar os portugueses desempregados e crianças e também aqueles que tinham sido presos em campos de concentração. O comerciante suportou grande parte das despesas, usando para isso os lucros da perfumaria que tinha criado em França e que transferiu para Portugal. A delegação funcionou de 1941 até ao final da Segunda Guerra Mundial.

Sentada na sala de casa, folheando as dezenas de documentos que recolheu ao longo de dez anos, Miriam Assor admitiu que Portugueses na Lista Negra de Hitler é um livro que a “comove”. “Ainda nem o consegui ler”, confessou. “Fiz as provas de forma mecânica, porque há ali histórias horríveis. Há coisas que não consigo compreender. Isto passou-se numa altura em que poucas pessoas tiveram coragem. Conta-se pelos dedos as pessoas que tiveram atitudes de salvamento.” Apesar de a pesquisa ter sido dada como terminada e o livro concluído e publicado, a autora ainda não está pronta para deixar a história. Acho que não cheguei a tudo. Há mais pessoas a que tenho de ir. Este tema [dos 19 judeus portugueses de Salónica] está fechado, mas há mais coisas, mais gente para encontrar. Há mais assuntos para serem abordados e resolvidos.”

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