O juiz Joaquim Neto de Moura, autor de acórdãos polémicos que relativizaram casos de violência doméstica e agressão contra mulheres, vai processar pelo menos “oito ou nove” das cerca de 20 pessoas e empresas cujas declarações — que terão configurado o título de “ofensa” no entendimento do juiz — estão a ser analisadas pela sua equipa de advogados. Entre elas estão figuras públicas como os humoristas Ricardo Araújo Pereira e Bruno Nogueira ou as políticas Mariana Mortágua e Joana Amaral Dias.

Isso mesmo foi avançado ao Observador pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, que considera que pelo menos os casos mais mediáticos que têm sido falados “têm hipóteses” de ser bem sucedidos em tribunal, em ações cíveis. Nos restantes casos, explicou Serrano Vieira, ainda está a ser avaliado se existe responsabilidade civil ou não.

Para o jurista, contudo, não há dúvidas de que declarações como as de Bruno Nogueira ou Mariana Mortágua configuram ofensas que podem vir a ser responsabilizadas em tribunal. “Chamar animal a um juiz ou dizer que ele não tem competência porque é contra as mulheres é completamente ofensivo”, afirma o advogado.

O que está em causa não são as críticas aos acórdãos do senhor doutor juiz, nós respeitamos quem tem um entendimento diferente do dele. Estamos a falar de factos que consubstanciam ofensas”, argumenta o jurista.

Em causa estão declarações como a de Bruno Nogueira, que no programa humorístico Tubo de Ensaio se perguntou “como é que um animal irracional de um juiz destes anda à solta num tribunal? Precisa é de uma coleira e de uma trela e açaime”, ou a da deputada Mariana Mortágua, que escreveu no Twitter que “a presença de Neto de Moura nos tribunais é uma ameaça à segurança das mulheres”.

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Sentença onde se afirmava que “adultério da mulher é gravíssimo atentado à honra do homem” levou a advertência escrita a juiz

As reações surgiram na sequência das notícias a propósito de um acórdão assinado pelo juiz, em outubro de 2017, onde se justificava a agressão de um homem à companheira com uma moca com pregos pelo facto de esta ter sido infiel, afirmando que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem” e que em algumas sociedades “a mulher adúltera é alvo de lapidação até a morte”. “Na Bíblia podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”, podia ainda ler-se no acórdão.

O conteúdo do acórdão foi de tal forma questionado que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) acabou por abrir um inquérito disciplinar a Neto de Moura que terminou com uma condenação. O vice-presidente do órgão, Mário Belo Morgado, justificou a decisão com o facto de “a fundamentação das sentenças” não poder resvalar para o campo “da discussão moral, ideológica, religiosa ou panfletária”, sobretudo quando contrastantes “com valores essenciais da ordem jurídico-constitucional — mormente, de tipo racista, xenófobo, sexista, homofóbico, etc.” A pena aplicada ao juiz foi uma advertência escrita.

Em janeiro deste ano, Neto de Moura voltou a estar no centro de uma nova polémica por ter retirado a pulseira eletrónica a um homem condenado por violência doméstica agravada — a mulher tinha sido várias vezes agredida, insultada e perseguida, tendo inclusivamente ficado com um tímpano furado na sequência de uma das agressões.

Liberdade de expressão não “serve para tudo”, diz advogado

O advogado Ricardo Serrano Vieira afirma ao Observador estar confiante de que as ações cíveis por ofensa podem ser bem sucedidas em tribunal, com base “em alguns acórdãos que temos presente em termos de jurisprudência, que vêm acabar com aquela ideia de que o principio de liberdade de expressão serve para tudo”.

Questionado pelo Observador sobre que acórdãos de tribunais portugueses poderiam servir de exemplo para este caso, o advogado sublinhou que “não são casos de figuras públicas”, mas que são casos em que os tribunais têm estabelecido uma diferença entre direito à liberdade de expressão e ofensa. “A teoria que, de acordo com o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tudo estaria validado ao abrigo da liberdade de expressão não é bem assim”. Caso contrário, afirma, “teríamos de rever a legislação”.

De acordo com o jurista, as ações devem ser instauradas em tribunal até ao final de março. Até lá, a equipa do juiz conta analisar e transcrever todas as “intervenções públicas em televisão e na rádio” que considera poderem servir de prova, bem como pronunciamentos nas redes sociais.