Título: Kentukis
Autor: Samanta Schweblin
Editora: Elsinore
Páginas: 215
Preço: 16,59€

O segundo livro da escritora argentina, Kentukis, chegou às livrarias portuguesas neste mês de abril

Com cinco livros publicados, Samanta Schweblin é, aos 40 anos, considerada uma das melhores escritoras de língua castelhana. A sua estreia deu-se em 2002, com El núcleo del disturbio, mas foi com uma segunda coletânea de contos, Pássaros na Boca (2009), que Schweblin se tornou conhecida. O livro ganhou vários prémios, incluindo o Casa de las Americas, e foi, numa primeira fase, nomeado para o Man Booker Internacional Prize de 2019. Foi a segunda vez que ao nome da argentina surgiu entre os candidatos a ganhar o prémio de tradução de língua inglesa, depois de ter sido selecionada em 2017 com Distância de Segurança, o seu primeiro romance.

Kentukis é a sua segunda tentativa na ficção longa. Publicado em 2018, chegou recentemente em Portugal pela Elsinore, que tem vindo a disponibilizar as obras da autora em português. Neste novo livro, Schweblin disseca a atualidade como em nenhum outro. O tema central é o da tecnologia e a forma — complicada — como nos relacionamos com ela. Perturbador e ao mesmo tempo terrivelmente realista, Kentukis passa-se no tempo presente mas parece antecipar um futuro não muito longínquo, onde a barreira entre o público e o privado se esbate definitivamente revelando a triste realidade, as fragilidades de cada um.

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Neste mundo criado por Schweblin, que é também o nosso, surge uma nova invenção japonesa — os kentukis. Estes peluches fofinhos, que podem ter várias formas e cores, servem para ligar pessoas em cantos opostos do globo. Pela módica quantia de 279 dólares, é possível comprar um kentuki e instalá-lo em casa, abrindo as portas da intimidade a alguém que, através de um computador ou de um tablet, o consegue manobrar remotamente. O bicho vem com rodas e tem uma câmara instalada nos olhos, permitindo que, do outro lado, o kentuki-pessoa, selecionado aleatoriamente, possa deslocar-se livremente (ou até onde lho permitirem) e observar tudo em seu redor.

A partir do momento em que a ligação é estabelecida, não é possível ao dono do kentuki (o “amo”) desligar o aparelho. Não existe nenhum botão para isso. A única forma de o fazer é impedir que o peluche chegue ao carregador, onde tem de ser colocado todos os dias, como um telemóvel. Uma vez gasta toda a bateria, o boneco desliga-se e não é possível voltar a ligá-lo. Se o “amo” quiser continuar a experiência, terá de adquirir outro. O kentuki-pessoa tem, contudo, a possibilidade de o fazer através do dispositivo que usa para o manobrar.

Os kentukis, que no início não passam de uma curiosidade tecnológica, vão a pouco e pouco conquistado grande popularidade. São cada vez em maior número, vivem em todo o lado e estão por todo o lado — nas paisagens quentes da América Central, na fria Noruega ou na amena Itália. Bichos independentes, são capazes de passar o dia a seguir os seus “amos” pedindo apenas um pouco de atenção em troca, uma fresta por onde possam ver um pouco das suas vidas. A experiência é semelhante à de ter um animal de estimação, mas sem todas as desvantagens. Os kentukis não precisam de ser alimentados, passeados, e é possível manter uma ligação emocional com eles. Quando “morrem”, os seus “amos” fazem-lhes funerais — enterram-nos num jardim, à sombra de uma árvore bonita, que o seu utilizador talvez tivesse apreciado. A perda de um boneco é sentida como se se tratassem da morte de um membro querido da família.

O romance de Schweblin acompanha as histórias de diferentes “amos” e kentukis, rendidos às maravilhas dos bonecos japoneses. Cada uma é independente e nunca nenhuma se cruza, algo que se manifesta na estrutura — inteligente — do próprio livro. Composto por pequenos capítulos, escritos da perspetiva de cada personagem, este deixa o leitor agarrado da primeira à última página, com um misto de terror e de contentamento. Pois se num primeiro momento a relação parece benigna, com a criação de uma rotina de companheirismo e troca de afetos, esta depressa se transforma em qualquer coisa muito semelhante a um filme de terror. Esse perigo sempre existiu, claro, e é-nos apontado logo nas primeiras páginas quando se conta a história de Robin, uma jovem que é chantageada por um kentuki que, recorrendo a um tabuleiro ouija, lhe diz ter filmagens íntimas dela, da irmã, da mãe e do pai. Para que não as divulgue, pede-lhe dinheiro.

Numa outra história, um pai é obrigado a receber em sua casa um kentuki para fazer companhia ao filho. Enzo, cujo único interesse na vida parece ser tratar do viveiro que conseguiu arrancar à ex-mulher durante o processo de divórcio, vai vivendo alheio ao que se passa em seu redor e não se apercebe de que a relação do kentuki com o filho se transformou em algo doentio. Só quando a ex-mulher, que impingiu o boneco com a ajuda da psicóloga, toma a decisão de levar Luca consigo e de o afastar definitivamente do peluche é que Enzo, com a sua vida virada do avesso e uma obsessão tal pelo kentuki que é incapaz de o destruir, é que compreende finalmente que o seu “companheiro” de todas as tardes, que o avisava sempre que o manjericão precisava de ser regado, é, afinal, um pedófilo.

Oriundas de meios sociais e locais muito diferentes, as personagens de Schweblin têm muito em comum. Sofrem dos mesmos problemas, e é isso que os leva, ainda que por vezes por iniciativa de outros, ao encontro dos kentuki. Os bonecos japoneses tornam-se, para eles, num substituto daquilo que lhes falta na vida — um companheiro, um amigo, uma paixão —, preenchendo uma falha que parece não ser possível preencher. Para Marvin, um jovem de Antígua que perdeu a mãe muito cedo e que nunca recebeu a devida atenção do pai, é uma forma de libertação; para Alina, é o impulso necessário para compreender tudo o que está errado na sua vida. Isso conduz a uma relação obsessiva e, inevitavelmente, à tragédia. A natureza humana, escondida atrás de um boneco ou de um ecrã de computador, acaba por se revelar, mostrando o de que pior existe dentro de cada um de nós.

Quando isso acontece e a ligação é terminada, as personagens são obrigadas a voltar à realidade e a confrontar-se consigo próprias. O que fica é o que havia antes de um boneco com rodas nos pés e uma câmara nos olhos ter entrado nas suas vidas — a prisão que é o vazio sem sentido e a inércia que este parece causar. É a essa conclusão que chega Alina no final do romance, quando se interroga, “pela primeira vez, com um medo tão intenso que quase a poderia despedaçar, se haveria escapatória possível àquele mundo sobre o qual permanecia imóvel”; ou Marvin, quando é arrancado de um sonho de neve pelo pai e pelo “calor de Antígua” enquanto descia as escadas da sua casa nas Caraíbas.

É impossível não fazer um paralelismo entre as histórias criadas por Samanta Schweblin e as redes sociais, “bichos” através dos quais os utilizadores vivem, escondendo a sua verdadeira identidade e criando uma nova. Os kentukis da escritora argentina parecem ser uma metáfora disso mesmo — destes tempos onde, tão próximos uns dos outros, continuamos tão longe de nós próprios. Romance atual e muito inteligente, Kentukis faz-nos pensar sobre o futuro das redes, da tecnologia, o seu papel no mundo moderno, os seus perigos e os novos limites que estes nos impõem.