Uma semana depois de ter estalado o verniz entre PS e Governo e entre Governo e Bloco de Esquerda sobre a alteração à lei de bases da Saúde, o tema atingiu com estrondo o debate quinzenal desta quinta-feira, deixando evidente aquilo que já se lia nas estrelas: o Governo tinha dado um passo maior do que a perna sobre a abolição das PPP na Saúde e agora vem defender o papel dos privados como supletivos e complementares; Costa tentou convencer os parceiros da esquerda de que não devem “desperdiçar a oportunidade” de aprovar a nova lei, pedindo-lhes que não confundissem “a árvore com a floresta”; mas os parceiros da esquerda não estão para conversas. Depois de um debate muito tenso entre António Costa e Catarina Martins, fica claro que não há entendimento possível na “geringonça” no que à Saúde diz respeito. Foi o primeiro-ministro que tirou a conclusão: se lei de bases não for aprovada à esquerda é por falta de “vontade política” do PCP e BE. E lava daí as suas mãos.

Neste debate, foram mais os confrontos à esquerda do que à direita, mas também os houve. Entre fundos comunitários, “asfixia democrática” e atraso no pagamento de pensões, António Costa e Fernando Negrão também tiveram a sua pega, com o primeiro-ministro a acusar o PSD de, quando está “desesperado”, usar duas velhas fórmulas de argumentação: “José Sócrates e a bancarrota”. Foram estas as dores agudas de um quinzenal que pouco fugiu ao tema central (e ideológico) da lei de bases da Saúde.

“Geringonça” num beco sem saída sobre PPP na saúde

Não é a primeira vez que a “geringonça” desalinha, nestes três anos de convivência e nem sequer houve, esta quinta-feira, uma temperatura alta inédita entre as esquerdas num quinzenal — este, por exemplo, fez mais ruído. Mas a questão da lei de Bases da Saúde está definitivamente num beco sem saída e — esse sim — raramente visto neste arranjo parlamentar de forças. A gestão em PPP de estabelecimentos de saúde não tem entendimento à vista entre as partes e isso ficou muito claro no debate desta quinta-feira. António Costa não se cansou de insistir nas boas intenções do PS nesta matéria e que a ideia é valorizar a prestação de cuidados de saúde públicos. Mas BE e PCP apontaram sempre para o recuo que o PS fez na última semana, permitindo a gestão em parcerias público-privadas de estabelecimentos de saúde desde que de forma “temporária e supletiva”.

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Costa insistiu nesta excecionalidade de recurso aos privados, mas não convenceu o PCP e o Bloco de Esquerda. Ambos os parceiros parlamentares saíram do debate quinzenal com o primeiro-ministro a declarar oposição à proposta final do PS sobre esta matéria. E a conversa azedou, sobretudo da parte de Catarina Martins, que apelava ao coração socialista com inúmeras referências, durante a sua intervenção, a António Arnaut, o socialista considerado pai do SNS.

O primeiro-ministro ia garantindo que a proposta socialista preserva o carácter público do SNS e apontava outras propostas, como a redução das taxas moderadoras, para garantir a boa fé socialista nesta negociação. “Se é possível mais densificação? É, mas não confunda a árvore com a floresta”, pedia a Catarina Martins: “É preciso é acabar com a lei de bases de 1990, acabar com o princípio da concorrencialidade e estabelecer que o SNS é público, sem prejuízo da natureza complementar e supletiva do setor social e privado. É aí que nos devemos centrar se não quisermos desperdiçar esta oportunidade”. Olhos num prémio onde a esquerda não vê prémio nenhum.

Quando o PS coloca aquelas expressões no texto da lei de bases ele “fica igual ao que a direita sempre defendeu”, respondia a líder do BE: “Com o voto do Bloco isso não acontecerá”. Já Jerónimo de Sousa disse ter visto com “surpresa” uma propostas “inaceitável” do PS surgir quando o processo negocial até estava “a dar resultados positivos”. Não houve nada a fazer, os dois parceiros destes três anos saíram a  dizer que com PPP previstas pelo PS, não há volta a dar, nenhum dos dois estará ao lado do PS na Lei de Bases da Saúde se esta ideia das PPP persistir.

Como se mede o “desespero” da direita? Pelas referências à bancarrota e a Sócrates

Foi um momento aceso, protagonizado por Fernando Negrão e José Sócrates. O líder parlamentar do PSD tinha questionado o primeiro-ministro sobre vários temas concretos, desde as queixas de atraso no pagamento de pensões à contabilização dos dias de trabalho dos pescadores, passando depois pela situação do hospital de saúde mental Conde Ferreira, no Porto, ou pelas listas de espera para cirurgias. A tudo, notou Negrão, Costa respondia com um “não sei” ou “foi resolvido ontem”. Uma questão de “estilo”, disse Costa. “O senhor adota a estratégia de fugir do debate geral para as questões concretas porque sabe que na apreciação geral só tem a perder”, acusou Costa, para Negrão responder que se limita a fazer perguntas porque é essa a sua função enquanto garante do escrutínio.

Mas quando os temas acabaram, sobrou o que sobra sempre: a bancarrota. E Negrão lá perguntou: “Foi um governo do PS que levou o país à bancarrota ou não foi?”. E António Costa lá respondeu o que responde sempre que Fernando Negrão lhe atira com aquele fantasma: a situação económica da Câmara de Lisboa que Costa “herdou” da direita em 2007. Foi aí que António Costa se exaltou, acusando o PSD de recorrer sempre àqueles temas quando está “desesperado”. “Há uma boa forma para medir o desespero da direita: falar de bancarrota e de José Sócrates”.

“Asfixia democrática” e Vox. Compatíveis?

O tema era o facto de o Ministério Público ter devolvido ao Ministério da Saúde uma queixa sobre a atuação da Ordem dos Enfermeiros, e o Ministério da Saúde ter decidido enviar esse processo para uma sindicância, e foi aí que Assunção Cristas falou num ambiente de “asfixia democrática” que diz que se sente em Portugal: “Há uma degradação do ambiente da respiração democrática”. “É capaz de indicar as razões para a sindicância, para percebermos que não se trata de uma perseguição pessoal?”.

Costa justificou como pôde: “Quando profissionais violam a lei, devem ser objeto de sindicância. É para apurar se houve ou não violação da lei”. Mas antes de terminar não resistiu a uma farpa à líder do CDS, com quem se exalta amiúde nos debates quinzenais: é irónico que Cristas fale sobre asfixia democrática tendo em conta a “opinião do seu partido sobre o Vox”. A referência era diretamente para o eurodeputado Nuno Melo, que há dias considerou o partido espanhol um partido de direita, não extremista, que poderia vir a estar na mesma família política europeia que o CDS e o PSD.

Fundos comunitários. Quem cortou mais? Quem executou menos?

Com as europeias à porta, os níveis de execução dos fundos comunitários são um tema recorrente, usado muitas vezes para atacar o PS. Desta vez não foi excepção. Assunção Cristas foi quem mais agarrou o tema: pediu a Costa a garantia de que não haverá um corte de 7% na política de coesão e de 15% no segundo pilar da PAC no próximo quadro de fundos comunitários, e criticou também a execução do atual fundo, sobretudo nas áreas da agricultura e da ferrovia. Mas Costa não se esqueceu de que Cristas foi ministra da Agricultura, e devolveu-lhe a acusação: “A senhora deputada é que tirou dinheiro à Agricultura, nós estamos a repor e a executar — dinheiro que a senhora deputada não foi capaz de executar, porque não havia verbas dos fundos nem no Orçamento”.

A troca de acusações foi tensa, com Costa a voltar a garantir que, do leque de países considerados relevantes, Portugal está em primeiro lugar na execução dos fundos. E sobre a atual negociação para o próximo quadro, Costa garantiu que a “preços correntes” não há perdas, saindo depois em defesa de Pedro Marques (que ontem foi confrontado por Paulo Rangel sobre o tema no primeiro sobre as europeias). Foi aí que leu um excerto do acordo assinado com o PSD nesta matéria, onde se lê que a “preços correntes nunca será inferior ao orçamento 2014-2020”. Ou seja, não vale a pena dizerem que vai haver perdas quando assinaram um documento que diz que não há.