O debate já corria há mais de 40 minutos, quando António Costa revirou os olhos ao líder parlamentar do PSD e, em tom provocador, atirou: “Não tem mais nadinha para perguntar? Até eu que sou o primeiro-ministro irritantemente otimista era capaz de imaginar várias perguntas difíceis para pôr ao Governo”. Luís Montenegro estava a explorar as contradições entre os responsáveis das Finanças sobre o papel da Autoridade Tributária na decisão de retirar três paraísos fiscais da lista negra dos offshores e Costa esvaziava o assunto. Recorrer ao desprezo pode ser uma boa arma para fugir a um tema incómodo, verdade, mas também não é menos certo que no debate quinzenal desta quinta-feira foram mesmo os parceiros da esquerda que mais pontapearam as canelas do Governo que apoiam.

Um dos temas era óbvio: as rendas na energia — e correu todos os parceiros (BE, PCP e Verdes). E aqui era também evidente que PSD e CDS (que também geriram estes contratos) teriam pouco para encostar o Governo às cordas. Depois, mais uma bicada na Educação e, por fim, muita impaciência de Jerónimo de Sousa quanto à solução de governação, pedindo a renovação da “esperança” na maioria de esquerda, com um aviso. Quanto a novidades da governação, só mesmo a que António Costa acabou por dar sobre a solução para o crédito malparado — e aqui até foi numa resposta ao PSD –, dizendo que a proposta do Governo já foi apresentada, na segunda-feira, numa reunião entre o Ministério das Finanças, Banco de Portugal e os três principais bancos.

A esquerda a apertar o primeiro-ministro que apoia

A dialética da “geringonça”. Comecemos pelo que chegou mais à frente no debate: o aviso do PCP. Jerónimo de Sousa estava a falar da necessidade de medidas numa área cara ao PCP, os transportes, falando dos problemas que ainda não tiveram resolução na Transtejo, Soflusa e Metropolitano de Lisboa. O líder comunista parecia não ter gostada de ouvir António Costa, logo na intervenção anterior à sua, dizer que “daqui a um ano não teremos os problemas todos resolvidos” e, na recarga, não ficou pela simples insatisfação ou desafio. Desta vez foi mais longe e deixou antes um aviso claro à solução de governação que o PCP integra e à sua capacidade nos dias que correm: “Há condições para tomar algumas medidas para as empresas que referi? A dialética tem este sentido: o que é verdade anteontem pode não ser verdade amanhã. O ambiente de esperança que se abriu no quadro da nova solução política precisa de ser mantido para que esta dialética não funcione e se transforme num outro sentimento”. Costa falou a seguir, mas não tocou neste assunto.

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O verbo de encher na educação. A impaciência bloquista revelou-se em dois pontos, mas comecemos pelo que foi o tema deste debate — estando longe de o dominar, como já se percebeu –, a Educação. Catarina Martins ouviu Costa dizer que a redução de alunos por turma será aplicada no próximo ano letivo a um universo que representa 18% do total dos agrupamentos de escolas, “onde estudam 200 mil alunos”. Mas a líder do Bloco de Esquerda não se convenceu e atirou ao cenário perto do idílico que o primeiro-ministro pintou nesta área a sua convicção que se está “muito longe de recuperar a Escola Pública das maldades que lhe foram feitas nos últimos anos”. Sobre a redução de alunos por turma e também a vinculação de professores mostrou-se especialmente insatisfeita. Sem estes dois pontos concretizados, falar em defesa da Escola Pública “é pouco mais do que um verbo de encher”. O primeiro-ministro socialista, que está inspirado no lema guterrista da “paixão pela Educação” — e até disse neste debate que é tempo de essa paixão ser “consumada” –, não gostou da bicada da sua parceira parlamentar. “Não é verbo de encher aquilo que estamos a fazer”, disse depois de voltar a passar em revista as medidas que o Governo tem avançado na Educação.

EDP, vergonha e escândalo. O ponto mais quente desta tensão? As rendas na energia. Ou como a esquerda teima em lhes chamar, “as rendas excessivas na energia”, que colocaram vários dos responsáveis pelo setor em Portugal a serem chamados à justiça esta semana. Catarina Martins diz que se trata de um “assalto ao país”, Heloísa Apolónia fala em “vergonha nacional”, Jerónimo de Sousa chama a estas garantias dadas às produtoras de eletricidade “um escândalo inaceitável“. Os três reclamaram de Costa uma única resposta: está disponível para acabar com elas? De vez? O primeiro-ministro desdobrou-se em explicações legais para dizer que a única abertura que tem é para renegociar o que existe: “É necessário reduzir os custos de energia. Acontece que há um quadro legal e contratual que temos de respeitar”. A insistência da esquerda foi até ao final do debate, onde António Costa acabou por conceder que “vários operadores, como a EDP” “têm várias manhas com cobertura das entidades reguladoras para contornar” a lei. Por isto, o primeiro-ministro disse que não tem “a menor dúvida que temos de melhorar quadro regulatório e contratual”. Mas rasgar o que há, como quer a esquerda, está fora de hipótese.

Costa não se compromete com fim das rendas energéticas e lembra “manhas” da EDP

A direita entre offshores, Santa Casa e Montepio

O eterno retorno dos paraísos fiscais. A questão que fez Costa revirar os olhos ao PSD foi introduzida por Luís Montenegro, que queria saber se a Autoridade Tributária (AT) foi ou não ouvida na decisão de retirar da lista negra de offshores o Uruguai, a ilha de Man e a Ilha Jersey. O líder parlamentar do PSD queria explorar uma contradição entre o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade, que no Parlamento disse que a AT não foi ouvida e o ministro das Finanças que disse que sim. No que ficamos? Costa embrenhou-se em várias respostas pouco claras, ao que chamou de “jogo de palavras de Montenegro”, e acabou por utilizar o secretário de Estado do Tesouro, Álvaro Novo, que estava sentado ao seu lado, para o citar: “Olhe vou amplificar o que está aqui a dizer-me o secretário de Estado: ‘A AT foi ouvida, pronunciou-se e, com base nisso, o Governo tomou uma decisão’”. A resposta não satisfez Montenegro que insistiu na contradição entre Governantes: “No seu Governo há completa impunidade, cada um diz o que quer?”. Foi aqui que Costa questionou: “Não tem mais nadinha para perguntar? Até eu que sou o primeiro-ministro irritantemente otimista era capaz de imaginar varias perguntas difíceis para pôr ao Governo”. A resposta? “Todas as perguntas são legítimas”.

Uma Santa Casa e um Montepio. No CDS, Assunção Cristas escolheu a Santa Casa e a hipótese de esta entrar no capital do Montepio para apertar o primeiro-ministro. A líder centrista queria saber as razões desta hipótese. E Costa repetiu o que já dissera na noite anterior na entrevista à SIC: “Vemos como positivo que no contexto de estabilização do sistema financeiro exista um banco do sector social, não temos nenhuma objeção a que a Santa Casa possa aderir e participar no capital do Montepio, seria positivo para a estabilização do setor”. Também disse que o provedor da Santa Casa, Pedro Santana Lopes, questionou o Governo sobre esta possibilidade e “o Governo não se opôs“. A preocupação de Cristas era outra: se “ajudar um banco” também “faz parte da ação social da Santa Casa”. Afinal, a instituição responde à tutela, o Ministério da Segurança Social, e a líder do CDS queria saber se a posição do Governo era “pela estabilidade da Santa Casa ou pela estabilização do setor financeiro”. António Costa é que não saiu do que já tinha dito e terminou apenas com uma provocação: Não deposita a confiança no Provedor da Santa Casa [Santana Lopes, ex-líder do PSD] que eu deposito”.

António Costa: “O terceiro Orçamento é mais fácil”

A greve e os exames. De Cristas ainda ouviu uma questão — a única em todo o debate sobre Educação — sobre a greve de professores que (ainda) está prevista para tempo de exames nacionais. A centrista questionou diretamente se Costa “está ou não está em condições de dizer que não haverá greve”? “E havendo”, continua, “todos os alunos vão poder fazer os seus exames?”. Costa foi cauteloso, porque decorrem condições com os sindicatos. Disse apenas ter “muitas esperanças” em evitar a greve e não foi taxativo sobre a requisição de serviços mínimos para que todos os alunos façam exames, no caso de ela se manter. A líder centrista ainda perguntou, a propósito da Saúde, se ia haver demissões nos hospitais por causa do corte de 35% na contratação de médicos tarefeiros. Costa não respondeu. Mas a meio do debate soube-se pela Lusa que a direção clínica do Amadora-Sintra se prepara para apresentar demissão.