A denúncia foi feita pela própria empresa e resolvida longe dos tribunais. Desde o início dos anos 2000 que funcionários da Fresenius Medical Care (FMC) garantiam, através do pagamento de subornos, contratos que valeram à empresa um lucro ilegal de mais de 140 milhões de dólares (124 milhões de euros). No final de março, a FMC chegou a acordo extrajudicial com o Departamento de Justiça norte-americano e pagou 231 milhões de dólares (205 milhões de euros) para resolver o caso de corrupção que tinha teias em 13 países. Portugal não se encontra entre a dezena de Estados onde os esquemas aconteceram, mas a sucursal portuguesa da multinacional alemã, a Fresenius Portugal, esteve envolvida na rede de subornos a médicos e militares angolanos.

Contactada pelo Observador, a sucursal em Lisboa remeteu quaisquer comentários para a empresa-mãe. Na sua resposta, a FMC garante que, tal como fez “noutros países, Espanha incluída, todos os responsáveis por essa conduta foram removidos da organização”. Na sua nota, a multinacional alemã faz questão de salientar que Portugal não fez parte “da investigação realizada num pequeno número dos mais de 150 países onde a Fresenius Medical Care trata de pacientes em diálise”. Refere ainda que foi a própria empresa, em 2012, a notificar voluntariamente as autoridades norte-americanas, tendo sempre colaborado com a investigação. Quanto ao nome dos envolvidos, quer em Portugal quer em Angola, a multinacional alemã escusa-se a entrar em detalhes, argumentando não poder “mencionar nomes, devido a motivos de privacidade de dados”.

Subornos a nefrologistas de renome e a militares angolanos

Em Angola, a má conduta envolveu diferentes esquemas de suborno como a assinatura de acordos falsos de consultoria ou pagamentos de comissões ilegais da venda de produtos de diálise. Tudo isto é revelado no relatório da SEC — Securities and Exchange Commission, a Comissão de Valores Mobiliários norte-americana — que está disponível online.

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Os primeiros factos remontam a 2004, quando a sucursal da FMC de África do Sul estudou a entrada no mercado angolano de diálise. O relatório, que foi enviado para diversos funcionários da empresa, alertava para várias situações de corrupção no país, dando nota de que “um diretor de serviços militares (Oficial Militar) recebia uma comissão de 20% em todos os kits de diálise vendidos a hospitais militares e que o Revendedor Angolano era parcialmente detido por funcionários do Governo”.

Em 2004, o presidente angolano era José Eduardo dos Santos. Em setembro de 2017, foi precedido no cargo por João Lourenço que, só no seu primeiro ano de mandato, afastou do poder pelo menos 230 governantes, administradores de empresas públicas e altas chefias militares.

João Lourenço: ‘Exonerador implacável’ afastou 230 altos militares e administradores no primeiro ano

Segundo o relatório da SEC, “em 2008, a FMC Portugal começa a vender produtos para Angola através do Revendedor Angolano, que era parcialmente detido pelo Oficial Militar”. Só em 2012, quatro anos volvidos, é que a empresa mãe começou a treinar de forma adequada os seus funcionários em Portugal para lidarem com funcionários do governo de Angola. “Como resultado disso, entre 2008 e 2010, foram pagos subornos na forma de 20% em comissões ao Oficial Militar através do Revendedor Angolano.”

Em 2008, a multinacional alemã criou uma nova sucursal, a FMC Angola, entidade legalmente independente, que tinha como missão realizar vendas naquele país africano, embora a gestão se mantivesse em Portugal. Entretanto, em 2010, as relações com o revendedor angolano azedaram e foi criado um novo esquema para que os negócios continuassem a fluir.

“Em junho de 2010, a FMC Portugal orquestrou um esquema através do qual forneceu uma participação de 35% na FMC Angola a proeminentes nefrologistas angolanos, incluindo o Oficial Militar, bem como ao Doutor Angolano A, nefrologista chave em vários hospitais públicos angolanos”, lê-se no relatório. A transferência de ações efetivou-se no ano seguinte. “Em abril de 2011, a FMC emitiu uma procuração para executar a transferência de ações, assinada por um diretor jurídico da FMC e um membro do Conselho de Administração. Em janeiro de 2012, as ações foram transferidas para os funcionários angolanos sem que estes tenham pago nada em troca.”

O tratamento de doentes renais em Angola tem sido um problema recorrente nos últimos anos por falta de condições nos hospitais, materiais e de recursos humanos. Em 2010, a então vice-presidente da Associação Angolana de Médicos Nefrologistas, Suzana Costa, alertava que os oito especialistas em nefrologia existentes em Angola — dois deles cubanos — eram insuficientes para o atendimento dos inúmeros casos de doentes renais.

De 2012 para a frente, a FMC Angola começa a fazer negócios com um Distribuidor Angolano, detido pelos filhos do Oficial Militar. Desta relação, nascem contratos fictícios. “Primeiro, a FMC Angola pagou 559.972 dólares (499 mil euros) ao Distribuidor Angolano por serviços de armazenamento temporário sem que um contrato ou a prestação de serviços tenham existido”, diz o relatório da SEC. Depois, a sucursal também pagou 77.300 dólares (68.900 euros)por mês ao Distribuidor Angolano por serviços de armazenamento, valor que foi recebido, embora o armazém nunca tenha sido disponibilizado. “De facto, a AMC Angola já tinha um acordo com um outro armazém pelos mesmos serviços e que custava três vezes menos do que o cobrado pelo distribuidor angolano”, conclui o relatório.

Uma auditoria interna, de 2012, detetou aquele problema e foi emitida uma diretiva, em outubro desse mesmo ano, para congelar todos os pagamentos ao Distribuidor Angolano. Durante o período de congelamento, a FMC Angola tornou o Distribuidor Angolano o distribuidor exclusivo de certos produtos e “deu-lhe um dos seus maiores clientes como freguês; o acordo de distribuição deu origem a uma margem significativa, aproximadamente 60% das vendas, que rendeu aos funcionários do governo mais de 433.000 dólares (386 mil euros)em vendas”.

Responsáveis em Portugal falharam

Neste ponto, o relatório dá conta de que tanto os responsáveis em Portugal como os da casa mãe falharam em tomar medidas apropriadas para pôr fim aos numerosos conflitos criados pela relação com o Distribuidor Angolano. “A FMC Portugal enganou a equipa de auditoria interna quando esta tentou determinar que outras relações existiam com o Distribuidor Angolano. Só depois de ter sido instruído em 2013 com um ‘Por favor, congele o contrato” é que um manager sénior da FMC Portugal reportou que o distribuidor angolano estava a distribuir certos produtos sem um contrato escrito”, dá-se conta no relatório.

Só em novembro de 2013, nota o documento da SEC, é que a equipa legal da FMC reviu as suas relações com o Oficial Militar e acionistas minoritários da sucursal angolana, tendo concluído que havia um “problema sério” na empresa e que “uma diretiva clara do conselho de administração não tinha sido seguida”.

“Durante todo o tempo, a FMC Angola também fez pagamentos a outros acionistas minoritários, o Doutor Angolano A e o Doutor Angolano B, ambos funcionários do governo, através de contratos de consultoria. Por cada contrato, o Doutor Angolano A recebeu 7.500 dólares (6.693 euros) por mês enquanto o Doutor Angolano B recebia 3.140 mensais”, lê-se no documento.

Contas totais, o relatório da SEC conclui que os esquemas de corrupção em Angola renderam à FMC mais de 10 milhões de dólares (cerca de 9 milhões de euros).

O Observador contactou a Embaixada de Angola em Lisboa e o atual presidente da Associação Angolana de Nefrologia e do Colégio da Especialidade de Nefrologia da Ordem dos Médicos Angolanos, Matadi Daniel, mas não conseguiu, até à publicação deste texto, qualquer comentário.