Estas meninas dançam “mas também leem”, têm saudades de si próprias, faltam-lhes horas para os dias, acusam fadigas várias, e a maior parte do tempo não têm cara-metade, antes “a cara inteira”. Estão em modo negativo, por pura neura ou contestação, como esta Clara Não para quem a felicidade às vezes é só “encontrar a tampa do tupperware” ou decidir a tempo se envia ou não envia aquela mensagem.

A solidão, o desencanto, o amor e a falta dele, e uma série de outras pequenas agruras da vida contemporânea, online e offline, sem esquecer os statements e convicções fortes, levam-nos a receber esta personagem com todo o otimismo. Afinal não faltam injeções de autoestima e nem sempre estamos na mais profunda fossa, apesar de a desilusão ser um poderoso combustível.

“Quando terminei a faculdade senti-me meio perdida. Trabalhava em design durante o dia e à noite desenhava. Na altura enchi muitos cadernos com um desgosto de amor. Foi a minha maneira de lidar com a situação. Comecei a desenhar, a desenhar, a desenhar. Quando dei por isso tinha cinco cadernos. Depois lá continuei”. E ao início só mostrava o resultado aos amigos mais chegados, a verdade é que rapidamente Clara percebeu que não era ela que ali estava, ou pelo menos que não estava sozinha, com “a vida esparramada” aos olhos de todos. “Apercebi-me que não estava a expor-me a mim mas aos sentimentos, comuns a muitas outras pessoas”, descreve, de passagem por Lisboa, onde este sábado estará a ilustrar os problemas dos leitores que passarem pela Feira do Livro e a apresentar “Miga, esquece lá isso”, o feliz compêndio de angústias, com selo da Ideias de Ler, do grupo Porto Editora.

Eis Clara Não, que este fim de semana desce do Porto a Lisboa para apresentar “Miga, esquece lá isso”, sem perder a ironia de vista © DR

“Já passei pela maior parte das coisas sobre as quais escrevo. Às vezes as pessoas só precisam de apoio, não de uma opinião. Digo sempre que isto é apenas o que eu acho, não sou dona da verdade”, define a autora. Entre os grandes temas da humanidade e as dores de cabeça mundanas, como a existência de pelos e a pressão social para debelá-los, as reflexões sucedem-se no seu Instagram, onde a comunidade de seguidores foi crescendo a olhos vistos, depois do pontapé de saída no Facebook. “As pessoas sentem que não estão sozinhas. Às vezes partilham coisas mesmo sérias por mensagem, explicam-me pelo que estão a passar. Muitas vezes são coisas que me ultrapassam. Há relações pouco saudáveis, casos de violência, pessoas que não entendem porque foram deixadas. Já me aconteceu um rapaz pedir ajuda para reconquistar a namorada, para lhe enviar um postal com a ilustração favorita dela. Já me contaram situações de sexismo, pessoas que se identificam com certas questões, como quando abordei a ausência de fraldários na casa de banho dos homens, pessoas com a autoestima muito em baixo que me enviam mensagens a agradecer”.

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Mas quem é esta Clara Não? Chama-se Clara Silva, tem 25 anos, nasceu no Grijó (na Ordem do Carmo, dois dias antes do esperado) e vive no Porto. “Posso dizer como os cantores que cantam desde os três anos que eu desenho desde o infantário. Sempre gostei de desenhar, a minha irmã tirou Arquitetura, o meu pai desenhava nos balões, fazíamos imensos trabalhos manuais. No nono ano as minhas cadeias preferidas eram Física ou Química e Educação Visual. Não sabia o que fazer. O diretor de turma era de Educação Visual, viu que eu tinha aptidão e sugeriu que seguisse Artes. Chegou a ir a minha casa explicar que eu podia ser designer, desenhar logos, interiores. Estava muito indecisa mas lá fui”.

Licenciou-se em Design de Comunicação, pela Faculdade de Belas Artes, no Porto, e fez Erasmus na Willem de Kooning Academie, em Roterdão, na Holanda, experiência que redirecionou o seu trabalho. “Era mais conceptual, fazia coisas simbólicas. Desafiaram-me a contar a história apenas com a ilustração. Depois ao mesmo tempo tive escrita criativa e percebi que podia resultar. Cheguei a fazer raps para a cadeia porque era preciso ter uma parte sonora”. Em 2018, voltou à mesma instituição portuense para se tornar mestre em Desenho e Técnicas de Impressão. Quando saiu da faculdade, em 2015, forjou a personagem que a acompanharia desde então. “O Silva é o apelido mais comum em Portugal. Fiz uma lista de nomes para trocar pelo Silva (queria manter o Clara) e lembro-me de ir cortando um a um, “não, “não”, “não”. Pensei “porque não?”. Dava para fazer brincadeiras, “Clara Não gosta”, Clara Não vai”. Tem a ver com o meu lado mais contestatário, que cresceu com o tempo”, enquadra.

Para Clara Não, que hoje está representada em diversas galerias, como a Senhora Presidenta, Circus Network, Ó! Galeria, Malapata, Apaixonarte e Área 55, tudo o que acontece são ótimos gatilhos, para o bem ou para o mal. “Crio sempre. Não é preciso estar deprimido para criar. A ideia é rir-mo-nos da fase da merda, porque há um depois. A nossa vida não tem que estar 100% fantástica”. Foi um momento de felicidade, e de algum espanto, aquele que acompanhou a notícia do interesse da chancela pela compilação destes episódios ilustrados em livro. “A editora enviou-me uma mensagem mesmo fixe, usaram frases minhas, criam “criar uma relação fabular entre a Porto Editora e a Clara Não”. Foi em novembro de 2018 e lembro-me que estava a montar uma exposição, achava que não podia ser”.

Mas aconteceu mesmo, com a obra a nascer como produto dos malogrados e inspiradores cadernos, nos quais se notava uma linha cronológica, que volta e meia era intercalada, “porque a vida não é uma sequência”.

Os dilemas são como as palavras e as cerejas e parecendo que não ainda há um longo caminho a percorrer. Uma série de batalhas que prometem fazer parte da agenda dos próximos temas. “A sexualidade feminina precisa de ser tratada, mesmo a questão da igualdade. O homem que dorme com várias mulheres é um campeão, a mulher é uma ardida. Preocupa-me o machismo nas mulheres. Estamos a lutar contra nós, assim temos inimigos em casa. É como estar constantemente a marcar auto golos. Como se ganha assim? Não ganhamos”.

Basta prestar atenção às caixas de comentários para avaliar o feedback. Clara não esquece a imagem que partilhou com diferentes balões de falas retiradas de comentários das notícias, na sequência de um caso de violação. “Havia comentários horríveis. ‘Se mostrares um bife a um leão ele também come’, dizia alguém. Quer dizer, uma mulher estava a ser comparada a um naco de carne. Várias pessoas diziam que a culpa era dela”.

E se deu por si a pensar que será feito da pessoa que motivou os cinco cadernos fundadores de toda esta odisseia, Clara Não explica que a amizade prevaleceu e que do outro lado veem tudo isto “bem”. Menos recetivos são outros potenciais leitores, quiçá porque as carapuças quando nascem são para todos. “Já recebi mensagens desagradáveis de pessoas que pensam que os desenhos são para elas. Não são. Mas já recebi coisas como “Eu não te admito!” (risos).