Um coração partido pode ser aproveitado para muitas coisas, ainda mais quando se soma à depressão. Normalmente há um luto inicial. Pode-se comprar caixas de gelados para os derreter na boca. Pode-se, se calhar deve-se, abastecer a despensa de lenços não vá o diabo tecê-las. Pode-se ver todas as séries e filmes que sempre se quis ver e passar uns dias evadido da rua. Também se pode tentar vingar uma relação falhada — como, cada sofredor que decida —, procurar os amigos e as distrações quando o luto chega ao fim (ou antes, fica ao critério de cada um que aqui não há regras). O que normalmente não se faz é pegar no carro, conduzir durante 18 horas até uma cabana no meio de nenhures e gravar um álbum que há-de tornar o seu autor numa indie star.

As dores de coração e cabeça são há muito estímulo para a escrita, para alguns (basta pensar-se em gente como Townes Van Zandt, Nick Drake ou Jackson C. Frank) combustível de toda a carreira, por vezes lamentavelmente curta. Mas nem sempre resultam: o que não faltam por aí são pinga-amores a carpir mágoas em canções que não chegam a lado nenhum. Não foi o que aconteceu com Justin Vernon.

O rapaz quase quarentão (tem hoje 38 anos) nascido em Eau Claire, Wisconsin, começou a formar os Bon Iver há pouco mais de dez anos com o coração partido. Fê-lo isolado, sozinho, numa cabana e num inverno particularmente difícil, que apesar disso deu ao mundo um interessante conjunto de canções íntimas e doridas como “Skinny Love”, “The Wolves”, “Creature Fear” e “re:stacks”.

Muito mudou desde aí: a fama foi crescendo, que nisto de tristezas não falta quem se identifique (sobretudo quando bem tocadas e cantadas); o segundo álbum, homónimo e lançado em 2011, foi elogiado por meio mundo e afirmou-o em definitivo no campeonato pop; o terceiro álbum, “o difícil terceiro álbum” como alguns músicos lhe chamam — atingido um patamar de qualidade elevada no segundo, corresponder às expectativas para o terceiro pode ser tortuoso —, demorou a chegar e, passados cinco anos sem edições, esperava-se uma proposta com mais apelo popular do que 22, A Million.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A última incursão dos Bon Iver pelas canções é mais experimental mas Justin Vernon, o incontestado líder, pode dar-se ao luxo de explorar caminhos paralelos sem acertar nas rádios. O sucesso das primeiras canções já lhe garantiu um lugar nos palcos principais dos grandes festivais e nos corações de uma grande moldura humana, como a que se colocou à sua frente no palco NOS, no Passeio Marítimo de Algés, este sábado, 13 de junho.

O concerto, na verdade, fez até esquecer que as canções do disco anterior — concetualmente relevante, coerente no seu todo mas sem singles que perdurem — passaram algo ao lado das rádios e playlists. Ao longo de cerca de uma hora e meia, os Bon Iver introduziram alguns trunfos dessa pop eletrónica experimental, com Justin Vernon em modo barbudo sensível de phones nos ouvidos e olho na maquinaria eletrónica (além da guitarra que, claro, continua a servir-lhe bem). Mais do que isso: mostraram que as canções novas têm uma força extra ao vivo, que o espetáculo está preparado para que por exemplo o jazz (às vezes meio destrambelhado, como se não o soubessem tocar, claro que sabem) se intrometa graciosamente no final das canções. “____45_____” e “8 (circle)”, por exemplo, foram grandes surpresas: soaram magníficas.

Apesar da revitalização das canções recentes, foi ao passado que os Bon Iver foram buscar os momentos de maior impacto no público, o que não era propriamente inesperado. Com um alinhamento equilibrado entre temas novos e antigos, tocaram uma “Blood Bank” que, estendida no final em jam emotiva, acelerou o ritmo e motivou cantoria. “Skinny Love”, por sua vez, fez erguer telemóveis até mais não — e travou por dois ou três minutos as irritantes conversas que até nas filas da frente impossibilitavam a fruição de um concerto que também vive de intimidade e de alguns silêncios. Haveria ainda tempo para Justin Vernon declarar a sua gratidão a Lisboa, que os recebe” sempre bem”.

Já perto da ponta final ouvir-se-ia “Creature Fear”, “Holocene” (em que um rapaz, ao soar os primeiros acordes, atirou um palavrão e começou a limpar o olho com o indicador, mas afinal era mais poeira que emoção) e “Calgary” de rajada, uma sequência fortíssima de “clássicos” com uma década. “Somos uma banda com 11 anos e vamos voltar atrás, lá mesmo ao início”, dizia Justin Vernon, justificando a revisitação do seu património histórico. No final, sobraram sorrisos rasgados e caras chorosas, solidárias com a beleza do sofrimento alheio: o de Vernon.

Um bom começo no palco secundário e um arranque apagado no principal

Os truques estão todos lá: um baixo, guitarras com fartura (duas elétricas e uma acústica), bateria, os riffs do costume do indie-rock para combater o tédio, a banda em coro a cantar-gritar com força para galvanizar o público e se galvanizar a si mesma. Se não for por diversão isto não tem piada e os australianos Rolling Blackouts Coastal Fever pareciam estar genuinamente contentes no palco Sagres do festival NOS Alive, este sábado à tarde. Das garagens da Austrália, chegaram a Lisboa — e até elogiaram o que descobriram, enaltecendo por exemplo as “recomendações de tostas mistas”.

Austrália tem pergaminhos neste campeonato rock: já exportou para o mundo com sucesso músicos como Nick Cave e Courtney Barnett e bandas como os Dead Can Dance e os Tame Impala. Os Rolling Blackouts Coastal Fever, que lançaram um primeiro álbum no ano passado pela mítica editora indie Sub Pop, são apontados como mais uma banda pronta para refrescar o panorama rock mundial.

Percebe-se o porquê do entusiasmo que existe em seu torno, ainda num pequeno nicho alternativo: o rock é simples o suficiente para ser popular, sem experimentalismo modernaços, capaz de tocar os corações de quem gosta de ouvir solos de guitarra vitaminados ao mesmo tempo que quer ouvir canções que se possam cantar, verso-refrão normalmente certeiros.

“In the Capital”, logo ao início, e “Air Conditioned Man”, mais à frente, foram alguns dos destaques maiores, mas todo o concerto foi certinho, com os cinco rapazes em palco a dosearem bem a altura de se soltarem — acelerados, cada um a brilhar à vez com a bateria a acompanhar — e os momentos de maior acalmia.

Quando os três cantam, tudo ganha outra força e apelo popular, até porque nenhum dos vocalistas (o principal é Frank Keaney, mas os outros também vão cantando aqui e ali) é brilhante. Talvez só falte traquejo na voz e uma composição de canções mais apurada — a sensibilidade pop normalmente chega com o tempo — para seguirem os passos de outras bandas que já passaram por este palco secundário do NOS Alive e estão hoje num patamar de excelência. Deixaram um nome a reter para o futuro e a sensação que voltarão com outro destaque, terminando com uma assistência bem mais volumosa do que início: bom sinal.

9 fotos

No palco principal, os concertos começaram com os portugueses The Gift, que tiveram a tarefa ingrata de tentar aquecer os ânimos até à chegada dos cabeças de cartaz. Com um alinhamento focado no novo álbum de originais, Verão, houve ainda espaço para temas mais antigos, como “Driving You Slow”. Em “Fácil de Entender”, última música do concerto, a vocalista Sónia Tavares e o teclista Nuno Gonçalves saíram do palco para o meio do público. A intenção foi boa, mas não chegou para entusiasmar o público.

Seguiram-se os Vetusta Morla, presença já habitual no festival do Passeio Marítimo de Algés. Ao contrário dos The Gift, os madrilenos conseguiram aquecer os ânimos e acordar o público que parecia meio adormecido durante a atuação dos portugueses uma hora antes. Um grupo que não compromete, os Vetusta Moral deram um bom concerto, mas talvez fizesse mais sentido ter uma outra banda a ocupar o segundo lugar no alinhamento do palco principal no último dia do NOS Alive, que teve os norte-americanos Smashing Pumpkins como cabeças de cartaz e os The Chemical Brothers a encerrar.

Idles fizeram o palco secundário tremer com punk rock e fúria

Os Idles eram, a seguir ao vocalista dos Radiohead, Thom Yorke, a banda mais aguardada do palco secundário no último dia do festival do Passeio Marítimo de Algés. E percebe-se bem porquê — conhecidos pelos concertos explosivos, intensos e sem papas na língua, os ingleses prometiam repetir a lição de música que deram em novembro passado, primeiro no Porto e depois em Lisboa. Não desiludiram. Durante cerca de uma hora, dispararam músicas rápidas, punk rock enfurecido, statements direcionados e até louvaram o serviço nacional de saúde, “a melhor coisa” que aconteceu ao Reino Unido. Agradeceram em português, despediram-se com um “xau” e, pelo meio, mostraram uma atitude de quem não deve nada a ninguém e de quem simplesmente não quer saber.

O concerto deste sábado, que arrancou pelas 20h30, surgiu ainda na sequência da promoção do segundo álbum de originais da banda, Joy as an Act of Resistance, lançado em 2018. O álbum fala de tudo aquilo sobre o qual uma banda de punk rock deve falar em 2019 — a masculinidade tóxica, nacionalismo, imigração e desigualdade de classes —, ainda que o vocalista Joe Talbot tenha dito várias vezes que os Idles não são uma banda de punk. Mas o punk corre-lhes nas veias, na atitude e no som que sai das guitarras de Mark Bowen e Lee Kiernan. Durante a atuação, houve crowd surfing, mosh e mocada a valer, mas também uma “Love Song” para o Alive, que ficou rendido aos Idles e sedento por mais. Muito mais.

21 fotos