A Ordem dos Enfermeiros vai processar a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde depois de ter divulgado um parecer do constitucionalista Paulo Otero que questiona a legalidade da sindicância feita à Ordem e a compara com práticas do Estado Novo.
“Atenta a prática de actos materiais por parte dos senhores sindicantes, designadamente por ordem da senhora Inspectora Geral da IGAS, os quais configuram os crimes de sequestro qualificado, furto qualificado, coação agravada, introdução em lugar vedado ao público, abuso de poder, acesso ilegítimo a dados informáticos, dano, difamação agravada e ofensa a pessoa coletiva agravada, será nesta data apresentada participação ao Ministério Público para os devidos efeitos”, lê-se numa mensagem enviada pela Ordem dos Enfermeiros à ministra Marta Temido e difundida também junto dos meios de comunicação social.
“Vale sempre a pena lutar por um Estado verdadeiramente democrático e pela liberdade, aqui não entram mais sem ordem judicial!”, termina Ana Rita Cavaco.
Antes, a bastonária dos enfermeiros usa o parecer de Paulo Otero para sublinhar que os atos praticados no âmbito da sindicância são nulos, pelo que os autos devem ser arquivados. “Consequentemente deverá V. Exa. e demais agentes administrativos sob a hierarquia do Ministério da Saúde, abster-se de ordenar ou apoiar a práctica de tais actos sob pena de incorrer em responsabilidade criminal que a Ordem dos Enfermeiros não hesitará em promover”, escreve Ana Rita Cavaco.
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Parecer compara sindicância a práticas do Estado Novo
Um parecer do constitucionalista Paulo Otero apresentado esta segunda-feira pela Ordem dos Enfermeiros compara a entrada dos inspetores da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde nas instalações da Ordem no âmbito da sindicância ordenada pelo Ministério da Saúde a práticas do Estado Novo.
“Verdadeiramente, o Ministério da Saúde tem agido sobre a Ordem dos Enfermeiros como se a ordem jurídica vigente fosse semelhante ao modelo corporativo do Estado fascista italiano ou do Estado Novo português: a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde trata a Ordem dos Enfermeiros como se se tratasse de um órgão do Estado, aplica-lhe os diplomas reguladores da atividade inspetiva da Administração central e entra pelas instalações como se se tratasse de um departamento subordinado hierarquicamente ao Ministério da Saúde”, lê-se no parecer, feito pelo professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa a pedido da Ordem dos Enfermeiros.
“O modo como, em 13 de maio de 2019, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde se comportou na sede da Ordem dos Enfermeiros consubstancia um atentado gravíssimo à autonomia da instituição e ao próprio Estado de Direito democrático, verificando-se que nem durante o Estado Novo alguma vez o Governo adotou semelhante conduta face às ordens profissionais”, acrescenta Paulo Otero.
Naquele dia, os inspetores da IGAS chamaram a polícia e forçaram a entrada nas instalações da Ordem dos Enfermeiros. Na altura, a bastonária, Ana Rita Cavaco, acusou os inspetores de sequestro, assinalando que retiveram uma funcionária dentro de uma sala durante uma hora. A Ordem ainda ameaçou em apresentar queixa à polícia, mas acabaria por não o fazer. A IGAS viria a refutar as acusações, dizendo que a bastonária recebeu os inspetores com um “cão preto sem trela”.
No parecer, Paulo Otero questiona mesmo a legalidade da própria sindicância. “Em termos jurídico-administrativos, a Ordem dos Enfermeiros é uma associação pública profissional, enquanto associação pública de entidades privadas, integrando-se na Administração autónoma do Estado, motivo pelo qual, em termos constitucionais, se encontra sujeita a tutela administrativa do Governo, mas não pode ser objeto de ordens, instruções ou orientações governamentais”, lê-se no documento de 84 páginas consultado pelo Observador.
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“Nenhuma associação de entidades privadas pode ter a sua organização interna perturbada por uma concreta intervenção administrativa sem um prévio título judicial habilitante”, acrescenta Paulo Otero.
Nas conclusões do documento, o constitucionalista sublinha que a IGAS “não goza de habilitação legal válida para realizar sindicâncias junto das associações públicas profissionais sujeitas a tutela do Ministério da Saúde: os diplomas legais vigentes não respeitam a reserva de lei parlamentar ou de decreto-lei autorizado estabelecida pela Constituição como garantia da própria autonomia das associações públicas”.
“A realização de buscas no âmbito de sindicâncias a associações públicas profissionais rege-se pelas normas do Código de Processo Penal, exigindo-se, por via de regra, a existência de um despacho de autoridade judiciária competente: a falta de um prévio título judicial habilitante da busca gera uma situação de via de facto, passível de gerar direito de resistência e cujas provas recolhidas são nulas”, diz o especialista.
Paulo Otero considera ainda que “a decisão da Ministra da Saúde que, em 16 de abril de 2019, determinou a realização de uma sindicância à Ordem dos Enfermeiros, revela-se duplamente violadora do princípio da proporcionalidade, por ter na sua base uma excessiva ponderações do interesse público do Estado e uma deficiente (ou ausente) ponderação dos interesses dos profissionais cuja representação e defesa pertence à Ordem dos Enfermeiros, assim como a realização da sindicância se mostra excessivo ou desnessária, isto em termos comparativos a soluções inspetivas menos invasivas ou agressivas da autonomia da associação pública profissional”.
“Por último, a própria a execução da sindicância à Ordem dos Enfermeiros tem revelado graves ilegalidades, salientando-se, desde logo, ante a ausência de título judicial habilitante da sindicância e das buscas, que o Ministério da Saúde tem adotado numa postura típica do modelo corporativo do fascismo italiano ou do Estado Novo português, começando por uma conduta ferida de usurpação de poderes até revelar indícios suscetíveis de gerar responsabilidade criminal dos Inspetores da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde envolvidos”, termina o documento.
A ministra da Saúde ordenou a realização de uma sindicância à Ordem dos Enfermeiros na sequência da complexa discussão à volta das greves cirúrgicas realizadas no final do ano passado e no início deste ano. As greves, de longa duração, foram financiadas através de uma campanha de crowdfunding e coordenadas através de um grupo de Whatsapp que envolvia vários dirigentes da Ordem dos Enfermeiros.
As ordens profissionais, porém, estão proibidas de participar em qualquer tipo de atividade sindical — como viria a sublinhar o primeiro-ministro. “Manifestamente, a Ordem dos Enfermeiros, em particular a senhora bastonária têm violado com essa atuação. Iremos comunicar às autoridades judiciárias aquilo que são os factos apurados e que do nosso ponto de vista configuram uma manifesta violação daquilo que são as proibições resultantes da lei das ordens profissionais”, disse António Costa em fevereiro.