O incêndio ainda consumia os quase nove mil hectares de área florestal entre Vila Real e Santarém quando as culpas começaram a ser atiradas em todas as direções. O primeiro-ministro acusou os autarcas, que o acusaram a ele. Um deputado do PSD seguiu-lhes o exemplo, defendendo assim os colegas de partido, mas Rui Rio preferiu manter-se calado. O Bloco não vai tanto pela política e acha que boa parte da culpa está nas alterações climáticas. E os especialistas atribuem culpas a todos os lados, desde ao Governo à população.

António Costa acusa os autarcas

António Costa apontou a culpa dos incêndios de Mação aos autarcas, numa conversa com jornalistas à margem da inauguração de cinco unidades de saúde nos concelhos de Sintra e Amadora, no distrito de Lisboa. O primeiro-ministro começou por afirmar que não faria qualquer “comentário enquanto os incêndios e as operações estão a decorrer”, mas acabou por fazê-lo quando acrescentou: “Sobretudo, não digo aos que são os primeiros responsáveis pela proteção civil em cada concelho, que são os autarcas, o que é que devem fazer para prevenir, através da boa gestão do seu território, os riscos de incêndio”.

Autarcas são os “primeiros responsáveis pela proteção civil” nos seus concelhos

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Autarcas culpam o Estado

Os mesmos autarcas a quem o primeiro-ministro aponta o dedo garantem que “o Estado voltou a falhar” na prevenção do incêndio deste fim de semana, devolve a acusação.

Em Vila de Rei, os autarcas são veementes: “O concelho está farto, como diz o nosso presidente da Câmara. Está farto destes sucessivos incêndios com origem criminosa e está farto de ver o Estado voltar a falhar às populações”, desabafou Paulo César (PSD), vice-presidente da Câmara de Vila de Rei, à Rádio Observador. “O Estado falhou às populações. O país inteiro falhou. Nós falhámos”, opinou.

https://observador.pt/2019/07/20/tres-incendios-em-castelo-branco-mobilizam-mais-de-370-operacionais-e-12-meios-aereos/

Quercus acusa o governo…

No comunicado em que “lamenta os incêndios florestais que têm assolado Portugal continental nos últimos dias”, a Quercus tece críticas ao governo ao “relembrar a baixa execução financeira das medidas florestais do Plano de Desenvolvimento Rural 2014-2020, isto apesar de nos aproximarmos já do fim deste Quadro Comunitário de Apoio”. “Por várias vezes, a Quercus alertou para a baixa execução financeira do PDR 2020 e, agora, consultando os dados reportados a 30 de junho de 2019, confirma-se que os números são desapontantes”, revela.

No que toca aos objetivos delineados nesse plano para Portugal, a Quercus indica que “a prevenção da floresta contra agentes bióticos e abióticos, que inclui os fogos florestais, tem uma execução de apenas 37%”. E que “a melhoria da resiliência e do valor ambiental da floresta, também relacionada com os fogos florestais,  tem uma execução financeira de apenas 22%”. “Perante estes números, e as tragédias relacionadas com os fogos florestais que continuam a ocorrer em Portugal, a Quercus vem mais uma vez chamar a atenção das autoridades nacionais para a necessidade de um maior investimento na floresta”, sublinha a organização.

… e PSD também, mas não todo

A fotografia de três helicópteros Kamov de combate aos incêndios parados em Macedo de Cavaleiros foi a ilustração que Duarte Marques, deputado do PSD, usou para acusar o governo pelas falhas que conduziram ao incêndio de Mação. ” Deveriam estar operacionais desde 1 julho. Não estão parados nem por causa do Tribunal de Contas, nem por causa de contestação do concurso”, escreve o político. Segundo ele, há ainda “mais três helicópteros ligeiros parados pela mesma razão”, embora não elabore sobre que razão é essa.

Mais tarde, em declarações à SIC Notícias, Duarte Marques insistiu que “é uma vergonha” que nem todos os meios aéreos de combate aos incêndios estejam operacionais neste momento do ano: “Mais de metade dos meios aéreos em Portugal não estavam a funcionar na época de incêndios. Nesta imagem, estes Kamov foram alugados pelo Estado português para substituir os que foram destruídos. Mas estão estacionados num heliporto no norte do país. Não estão a ser utilizados, tal como três meios aéreos ligeiros do Estado”, insiste.

E porquê? “Não porque o Tribunal de Contas se atrasou a fazer os contratos, não porque não houve contestação do concurso, simplesmente não têm o certificado da Autoridade Nacional de Aviação Civil”, afirma. E continua: “Ou o governo contratou uma empresa que não tinha meios de qualidade para voar, ou porque a empresa que foi contratada não disse a verdade, ou porque alguém se atrasou a pedir a autorização. É uma vergonha, é uma questão de má gestão”.

Segundo Duarte Marques, um destes Kamov podia ser preponderante no combate às chamas em Vila de Rei porque “um deles devia estar a funcionar em Ferreira do Zêzere, que fica ao lado de Vila de Rei, desde 1 de julho”. Mourato Nunes, presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), concorda que “é desejável” que esses Kamov estejam prontos a ser usados, mas sublinha que aquilo que não foi feito no combate ao incêndio de Vila de Rei e Mação não foi por força da ausência destes helicópteros.

Quanto a Rui Rio, presidente do PSD, preferiu não apontar culpas enquanto os incêndios ainda assolam o centro do país: “Entendo de mau gosto fazê-lo enquanto os incêndios ainda estão a decorrer e todos devemos ajudar a que se apague o incêndio. O balanço para se apurar se há mais ou menos responsabilidade e de quem, nomeadamente do governo, deve ser feito depois” de a situação estar controlada, defendeu.

Proteção Civil acusa o tempo

De resto, Mourato Nunes acrescentou que os Kamov estão parados “por questões de natureza técnica”, mas que devem estar operacionais a partir de esta terça-feira. No entanto, a Proteção Civil já se tinha queixado que até os meios aéreos disponíveis nem sempre podem levantar voo por falta de visibilidade: “A camada limite da atmosfera está muito baixa, o que faz com que o fumo não permita que as aeronaves trabalhem”, explicou o comandante Pedro Nunes na manhã de segunda-feira, quando disse, à semelhança do que aconteceu esta terça-feira, que os fogos de Vila de Rei e Mação estavam “em fase de resolução em 90%”.

No entanto, as condições climatéricas tornaram-se desfavoráveis aos bombeiros durante o dia — por causa das altas temperaturas e do vento — o que levou a uma nova perda de controlo. Esta manhã, no entanto, o comandante Luís Belo Costa da Proteção Civil estava otimista: a chuva que caiu durante a noite ajudou à tarefa dos bombeiros e as previsões meteorológicas durante a manhã eram vantajosas. No entanto, a tarde pode trazer novas complicações: “No que respeita aos indicativos meteorológicas, vai ser semelhante aos últimos, com temperaturas muito elevadas, vento a intensificar à hora de almoço e uma tarde que nos vai trazer dificuldades”.

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Bloco culpa as alterações climáticas

Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda, sugeriu num discurso que os incêndios como os deste fim de semana, que queimaram em dois dias uma área igual à que tinha sido assolada por incêndio desde o início do ano até 15 de julho, são resultado das alterações climáticas. “Portugal pode e deve fazer a sua parte do que diz respeito à sua resposta quanto à emergência climática. Porque não podemos só ver a violência dos incêndios ou os problemas de erosão costeira e dizermos que é uma tragédia. Temos de fazer mais, temos de ser capazes de mudar a nossa economia para respeitarmos o planeta em que vivemos e combatermos essas alterações que colocam a nossa vida em risco”, defendeu.

Os comentários de Catarina Martins alinham-se com o programa eleitoral apresentado pelo Bloco de Esquerda, muito centrado no combate as alterações climáticas. Uma das propostas do Bloco é, por exemplo, a criação do Ministério da Ação Climática. Catarina Martins quer proibir a circulação de carros nas zonas mais centrais de Lisboa e Porto, acabar com o plástico de uso único e redução do IVA da eletricidade e do gás para os 6%.

BE apresenta programa eleitoral centrado no combate as alterações climáticas e propõe criação do Ministério da Ação Climática

Os especialistas apontam dedo ao ICNF…

José Cardoso Pereira, especialista em incêndios e professor catedrático do departamento de engenharia florestal do Instituto Superior de Agronomia, acredita que o problema dos incêndios em Portugal está “na gestão da floresta” — uma função do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. Para ele, é a arborização excessiva e o tipo de espécie que vive na floresta conduzem à insistente dificuldade em combater os fogos: “Criou-se uma mancha contínua, muito extensa, de vegetação bastante suscetível ao fogo, inicialmente de pinhal. Depois, parte foi sendo substituída por eucaliptal, à medida que o pinhal ia ardendo”, disse ele ao Observador.

Domingos Xavier Viegas, especialista em incêndios responsável por um relatório sobre as falhas que conduziram aos grandes incêndios de Pedrogão Grande em 2017, também recorda que “há ainda muito material queimado no terreno de anos anteriores”. E que esse material é “carga combustível”, recorda em entrevista ao Observador.

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… e à população

No entanto, as áreas que não arderam nos anos anteriores também representam um problema — um problema que é responsabilidade da população, aponta Domingos Xavier Viegas: “Tem sido feito um esforço significativo por parte das populações, que estão mais sensibilizadas para a limpeza dos terrenos, mas [esse esforço], infelizmente, ainda não é universal”. E não é, analisa José Cardoso Pereira, porque os proprietários “não têm a expectativa de tirarem qualquer rendimento daquelas plantações”.

Além disso, é demasiado caro, acredita o professor catedrático. Se o dono de um terreno com floresta contratar uma empresa para limpar a área, isso pode custar-lhe 800 euros por hectare. “Se isto for feito de 4 em 4 anos, daria 200 euros por ano. Para muitos proprietários, esse valor é o que recebem de reforma num mês. Não é fácil prescindir do dinheiro que se tem para viver durante um mês para ir gastar na floresta da qual se tem poucas expectativas de rendimento. Entra-se neste ciclo vicioso: como há risco, investe-se pouco. Como se investe pouco, aumenta o risco”, justifica.

Mais de 1.700 contraordenações por falta de limpeza de terrenos

Bombeiro arguido de Pedrogão Grande acusa políticos e civis

Augusto Arnaut, comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrogão Grande constituído arguido após os incêndios de 2017, diz que os incêndios que combateu em Mação foram provocados por falta de limpeza. “Se houvesse limpeza, como devia, o fogo não ardia como ardeu. Estava tudo na mesma”, garante o bombeiro ao Expresso, apontando o dedo às autarquias e às populações. Mas sublinha que “não há comparação possível com os incêndios de 2017”.

Augusto Arnaut é o único operacional constituído arguido pelo incêndio de Pedrógão Grande. Foi chamado no fim de semana para apagar o fogo em Mação e acedeu ao pedido de ajuda, mas confessa que pensou duas vezes: “Estava muito bem no meu sofá, mas fiz o trabalho como sempre fiz e correu tudo bem. Estamos todos de volta e saí de lá com a sensação de dever cumprido e isso é que interessa. Fiz o meu dever como cidadão e como comandante”.

Quanto à relação que mantém com a Proteção Civil, um órgão onde ninguém foi constituído arguido após os incêndios de 2017, Augusto Arnau garante que não guarda rancores: “A Proteção Civil somos todos nós. Voltei a fazer e espero voltar a fazer o meu trabalho enquanto puder”.

Pedrógão. Por que uns vão a julgamento e outros não?

PJ suspeita de mão criminosa

Em entrevista ao Observador, António Carvalho, antigo coordenador de investigação criminal da Polícia Judiciária, sugeriu que as penas para os incendiários podem ser demasiado brandas. Os crimes de fogo posto são castigado com uma pena máxima de 12 anos, mas em muitos casos “a condenação fica muito longe do teto da pena, e acontece que os condenados podem sair a dois terços do cumprimentos da pena”.

“Temos de nos perguntar se as medidas que estão a ser adotadas no sentido de evitar as ignições estão a ser corretas, nomeadamente na parte intencional”, acredita António Carvalho: “Ainda há a visão de que a negligência é um acidente. Mas quando não há gestão, nem medidas coercivas, as pessoas têm comportamentos atípicos. E vão continuar a ter”, avisa o coordenador de investigação criminal agora reformado.

Quanto aos incêndios de este fim de semana, a Polícia Judiciária está a investigar os artefactos incendiários que foram encontrados em várias zonas do concelho de Vila de Rei, em Castelo Branco, confirmou fonte deste órgão policial ao Observador. A mesma fonte adianta que não são artefactos explosivos — o que significa que foram ali colocados para iniciar um fogo. Aumenta assim a suspeita de que estes fogos tiveram origem criminosa.

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Autarca de Mação critica o governo. Eduardo Cabrita responde

Na tarde de terça-feira, Vasco Estrela criticou o Governo por só ter aprovado o Plano de Emergência Municipal do concelho de Mação esta terça-feira e garantiu ter recebido essa informação por SMS do Governo às 12h40. A revelação é importante tendo em conta que o mesmo plano foi submetido “em fevereiro”.

Horas mais tarde, o ministro da Administração Interna foi à RTP atacar diretamente Vasco Estrela. “O senhor presidente da Câmara de Mação […] foi um verdadeiro comentador televisivo” e fez uma “provocação”, em vez de “promover a ativação do Plano Municipal de Emergência” e a “cooperação a favor do esforço da Proteção Civil”, censurou Eduardo Cabrita.

Ministro Eduardo Cabrita abre polémica com presidente da Câmara de Mação

Ao fim da noite, Vasco Estrela veio dizer que foi “com muita surpresa” que recebeu as reações do ministro. “Lamento que tenha estado comigo às 15 horas e não tenha tido a coragem de dizer olhos nos olhos aquilo que foi dizer para a televisão”.

“Acusa-me de não ativar o Plano Municipal de Emergência de Proteção Civil que o Governo aprovou hoje de manhã. São estas coincidências que acontecem e que realmente são de lamentar. É pena que o ministro não diga o que é que o Plano de Emergência que é que alterava o rumo dos acontecimentos. Isso é que era bom que o senhor ministro explicasse”, sublinhou o autarca, acrescentando ainda que Eduardo Cabrita “devia justificar perante os maçaenses e perante os portugueses” a falta de meios no terreno.