“O verdadeiro amor vai encontrar-te no fim”, cantava Daniel Johnston no seu tema mais conhecido e popular. Gravado posteriormente por gente do prestígio de Beck e do grupo Wilco — e por portugueses como Luís Nunes (Walter Benjamin e Benjamim), Paulo Furtado (The Legendary Tigerman) e Débora Umbelino (Surma) com Pedro Ribeiro (Captain Boy) —, tornar-se-ia quase um hino do músico e artista visual norte-americano nascido em Sacramento, na Califórnia, que em 2017 anunciou que se iria retirar dos palcos e das digressões e que esta quarta-feira morreu com 58 anos.

A causa de morte mais provável é um ataque cardíaco fulminante. Daniel Johnston, que tinha um historial longo e complicado de doenças e perturbações físicas e mentais, tinha estado recentemente hospitalizado devido a problemas nos rins, mas há muito que estava confinado a casa. Recebeu alta hospitalar na véspera do dia da sua morte, terça-feira, revela o The New York Times. Numa entrevista dada já depois do anúncio da morte de Daniel, o seu irmão Dick Johnston, que era também o seu manager, afirmou, citado pelo jornal norte-americano: “Ainda estava numa fase produtiva, a escrever canções e a desenhar, e estava chateado com o seu estado de saúde, mais do que qualquer outra coisa”.

Era o protótipo do músico de culto, que não tendo por exemplo uma exposição radiofónica de massas, até longe disso, tinha uma influência e um reconhecimento no panorama da música independente que o tornavam figura de relevo na música norte-americana das últimas três décadas. Tudo graças a cantigas que habitualmente compunha sem grandes artifícios ou orquestrações opulentas, através de um método caseiro, com a polidez da produção sonora a ser muitas vezes preterida em detrimento do cuidado que tinha com a melodia e a letra.

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Apesar do longo percurso no circuito independente, que iniciou ao gravar e distribuir cassetes de mão em mão em Austin, no Texas, nos primeiros anos da década de 1980, quando ainda trabalhava na cadeia de fast food McDonald’s, Daniel Johnston teve um flirt temporário com uma editora multinacional, a Atlantic Records. Aconteceu na primeira metade dos anos 1990, devido ao avolumar da sua notoriedade por aqueles tempos, a que não foi alheio uma t-shirt envergada por Kurt Cobain — o mítico vocalista e guitarrista dos Nirvana, incontestável herói do panorama musical do início dos anso 1990 — que fazia referência ao seu álbum Hi, How Are You, editado em 1983.

O músico, compositor, cantor e artista visual num concerto dado na Dinamarca, em 2010 (@ PYMCA/Universal Images Group via Getty Images)

A passagem pela Atlantic, que resultou na edição do álbum Fun (1994), foi breve: a editora percebeu cedo que dificilmente Daniel Johnston poderia tornar-se um músico de alcance pop e que a sua música, embora reverenciada por figuras que atingiram o estrelato como os membros dos Nirvana, não estava destinada a cativar as rádios menos alternativas e ouvintes mais casuais. A fama e a popularidade acrescida eram obviamente temporárias — as composições em que se notabilizou e o método artesanal que utilizava (quer para as compor, quer para a promover até visualmente) destiná-lo-iam a ser ouvido e reverenciado sobretudo pelos pares e por melómanos.

Antes e depois do flirt com uma grande editora, a carreira — palavra a que talvez Daniel Johnston torcesse o nariz — foi desenvolvida longe dos holofotes. Começou com a gravação e edição caseira de um primeiro álbum em cassete, Songs of Pain, que gravou enquanto frequentava o programa de estudos de arte da universidade de Kent State, em Ohio — que não viria a concluir, abandonando-o prematuramente (um hábito que ganhara e desenvolvera antes, em outras instituições de ensino).  Prosseguiria com a edição de mais dez álbuns durante os anos 1980, dos quais se destacam discos como o já citado Hi, How Are You (de 1983) mas também, claro, Retired Boxer, o álbum de 1985 que incluía aquela que viria a tornar-se a sua canção mais conhecida e transformada por versões alheias, “True Love Will Find You In the End”.

Por alturas do final da década de 1980, Daniel Johnston mudou-se para a cidade de Nova Iorque e viveu um dos períodos mais conturbados da sua carreira. Enquanto gravava o álbum 1990 — que seria editado precisamente nesse ano na influente editora alternativa Shimmy Disco, em volta da qual gravitavam bandas como os Galaxie 500 e artistas como Lee Ranaldo e Steve Shelley, dos Sonic Youth —, foi-lhe diagnosticada esquizofrenia e o músico não conseguiu sequer completar o disco em estúdio. Na sequência disso, optou por misturar gravações mais polidas com gravações caseiras e registo de atuações ao vivo.

De 1990 em diante, Daniel Johnston não deixaria de se debater com a deterioração da sua saúde mental, mas continuou a gravar discos e a sua fama no circuito alternativo não diminuiu. Antes pelo contrário, aumentou, também graças a um álbum intitulado The Late Great Daniel Johnston: Discovered Covered (que dificilmente não seria uma referência a The Late Great Townes Van Zandt, disco do cowboy mais desgraçado e genial do country, editado em 1972) e editado em 2004. O álbum juntava músicos como Tom Waits, Beck e Jad Fair e bandas como Death Cab For Cutie, Sparklehorse e TV On The Radio numa espécie de homenagem ao autor de “True Love Will Find You In The End”. Logo aí, Daniel Johnston cimentaria um um estatuto de ícone indie que não viria a perder, consolidando-o pelo contrário com o documentário “The Devil and Daniel Johnston”, que venceu um prémio de cinema documental no prestigiado festival de Sundance.

Até ao final da sua vida e atividade musical, que conta com quatro álbuns editados nos anos 2000, um disco editado em 2010 e um último álbum lançado em 2012, Daniel Johnston ainda formou a sua editora, a Yip Eye. Há dois anos, iniciou aquela que viria a ser a última digressão, fruto da crescente fragilidade da sua saúde física e mental, acompanhado por músicos membros das bandas Fugazi, Built to Spill e Wilco.

[“Some Things Last a Long Time”, tema que Johnston incluiu no seu álbum 1990, teve posteriormente uma versão da cantora e compositora pop Lana Del Rey, que a par do rapper — também já falecido — Mac Miller doou alguns milhares de dólares para a produção de um documentário sobre o músico. “Ele fez diferença na vida das pessoas. Fez a diferença na minha vida”, chegou a dizer Lana, citada pela revista Rolling Stone:]

Alguns dos seus pares já reagiram à morte do cantor e compositor. A norte-americana Zola Jesus lembrou o seu “espírito musical”, que lhe ensinou que devia “seguir os impulsos criativos por mais simples ou confusos que fossem”. Bob Nastanovic, membro da banda Pavement, agradeceu-lhe “a inspiração”. Kevin Morby considerou-o “uma fonte constante de alegria e inspiração para todos nós” e descreveu-o como “uma faísca mágica”. E os Dead Cab For Cutie, que integraram o álbum de homenagem a Daniel Johnston editado em 2004, enalteceram-lhe “a sua voz única na escrita de canções, tão pura e tão direta”, que “falou connosco profundamente”.

É bastante seguro dizer que nunca haverá outro como ele e felizmente a sua música continuará a ser tocada”, concluem os elemenentos dos Death Cab For Cutie, numa mensagem publicada na rede social Twitter.

Daniel Johnston cantou sobre o amor, a morte, a religião (ele que cresceu numa família profundamente crente), o sexo, o desespero, a frustração e a depressão “maníaca” que lhe foi diagnosticada. Terá tentado gravar um último álbum chamado “If.”, que não terá conseguido completar. Quem revela esta última informação é o The New York Times, jornal ao qual o músico e artista visual de culto que morreu esta quarta-feira disse há dois anos o seguinte: “Não posso parar de escrever. Se parasse, poderia sobrar só o vazio. Talvez tudo parasse. Portanto, não vou parar. Tenho de continuar”.

(Atualizado às 12h17 do dia 12/09/2019)