190 milhões de euros. É este o valor do grande prémio do Euromilhões desta sexta-feira. Uma (grande) quantia que mudaria a vida de qualquer pessoa. Mas receber este dinheiro, do dia para a noite, pode ser complicado e levantar diversas questões: como faço para receber o prémio? Quanto dinheiro fica para o Estado? Devo ou não devo contar a outras pessoas?
O Portal dos Jogos da Santa Casa explica que o vencedor do primeiro prémio do Euromilhões deve preencher um formulário que se encontra na área “Receber os Meus Prémios” no site e depois dirigir-se ao Departamento de Jogos para se identificar e receber o prémio. O dinheiro, contudo, só estará disponível entre o 13º e o 90º dias após o sorteio.
Suponhamos que está em casa e percebe que tem uma chave vencedora. Pode sempre optar por ligar diretamente para a Linha Direta Jogos 808 20 33 77.
Mas vamos supor outro cenário: imagine que se dirige ao mediador, local onde comprou o boletim e lhe foi dado um recibo, para confirmar se é ou não um dos sortudos. Fonte da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) explica ao Observador que, caso o prémio seja superior a cinco mil euros, o apostador recebe logo uma indicação no terminal do mediador que tem de contactar o Departamento de Jogos da SCML e é-lhe fornecido o número de telefone. Nesta altura, nem o mediador nem o apostador sabem qual o valor do prémio.
Na noite em que é feito o sorteio do Euromilhões (à terça-feira ou à sexta-feira), o Departamento de Jogos fica a saber, pouco tempo depois, quantas apostas foram colocadas para o sorteio, onde foram registadas as apostas vencedoras e quanto cada pessoa apostou. Por exemplo, se o primeiro prémio do Euromilhões sair em Portugal na noite desta sexta-feira, o departamento consegue saber onde foi registada a aposta, qual foi o seu valor, se se tratou de uma aposta manual ou automática — ou seja, se foi a pessoa a escolher os números ou se foi uma aposta automática do terminal — e a data em que foi feita.
Quando o apostador liga para o número que foi fornecido, é atendido por um contact centre. Nessa altura, são pedidas diversas informações que constam no recibo, nomeadamente o código do mediador onde foi feita a aposta. No momento em que o funcionário do contact centre percebe que se trata de um recibo vencedor, fica com o contacto do apostador e desliga a chamada, refere fonte da SCML ao Observador.
No caso de se tratar de um prémio superior a um milhão de euros, que é o caso do grande prémio desta noite, o vencedor é contactado por um representante do alto apostador da Unidade de Prémios que nunca revela a identidade dos premiados. Antigamente, esta função cabia a um membro do Grupo de Apoio ao Alto Premiado (GAAP), que entretanto já não existe. Este representante é a pessoa que gere todos os vencedores de prémios acima de um milhão de euros e que fornece todo o tipo de aconselhamento que o premiado precisar — apesar de não existirem psicólogos e conselheiros financeiros no departamento, este representante pode encaminhar o apostador para a ajuda que precisar.
É ele quem informa o vencedor qual o valor do prémio e lhe diz que tem de se dirigir presencialmente ao Departamento de Jogos, seja à sede em Lisboa ou à delegação do Porto. Essa reunião é logo combinada entre as duas partes e não tem de ocorrer logo no dia seguinte. Uma vez que o prémio pode ser entregue até 90 dias após o dia do sorteio, esse encontro pode ser combinado para semanas depois — aliás, fonte da SCML explica ao Observador que, muitas vezes, quanto maior é o valor do prémio, mais afastada é a data da reclamação do prémio relativamente à data do sorteio. Esta questão das datas é importante porque, se o prémio não for reclamado neste prazo, é entregue à Santa Casa para ser usado na sua obra social.
Ainda durante a chamada telefónica, o representante avisa o apostador que tem de ir ao Departamento de Jogos, de preferência acompanhado, com o recibo vencedor, pelo que é importante guardá-lo num local seguro, com um documento de identificação civil (pode ser o Cartão de Cidadão ou o passaporte) e com o NIB e comprovativo da titularidade de uma conta sediada em Portugal — o pagamento é feito por transferência bancária. O representante sublinha ainda a importância da discrição, ou seja, de não contar a todos que foi um dos sortudos do Euromilhões, até para sua segurança.
E atenção às condições em que se encontra o recibo: tem de estar legível, não pode ter números apagados ou rasurados, pode estar dobrado e até um pouco amachucado, mas não pode estar rasgado.
Na reunião entre o vencedor e o representante da Unidade de Prémios, o apostador entrega o recibo vencedor e é dado início ao processo burocrático para a transferência do prémio, no qual a SCML emite um documento que comprova que aquela pessoa foi vencedora de um prémio do Euromilhões num determinado valor.
Fiscalista alerta para importância de documento comprovativo do prémio
O prémio desta sexta-feira é de 190 milhões de euros e, uma vez que se trata de um valor superior a cinco mil euros, está sujeito a 20% de imposto do selo. Ou seja, dos 190 milhões, 152 milhões ficam para o apostador e 38 milhões vão para o Estado.
Luís Leon, fiscalista da Deloitte, adianta que esta é a única tributação de que é alvo o prémio. No entanto, faz uma ressalva: é essencial que o vencedor guarde a declaração da SCML. “De um momento para o outro, essa pessoa tem um acréscimo muito significativo de património, que não está documentado nas declarações de impostos. Isso pode levar a que a Autoridade Tributária espolete uma ação de inspeção“, explica o fiscalista ao Observador.
Daí ser tão importante guardar o documento da Santa Casa, que isenta o apostador de suspeitas de branqueamento de capitais. “A pessoa tem de conseguir provar que foi vencedora de determinado concurso e que recebeu determinado montante e o recibo vencedor não basta.”
“É natural que se fique mais ansioso”: como lidar com esta mudança?
Receber esta quantidade de dinheiro de forma tão inesperada pode ter consequências a nível emocional. Como diz a psicóloga Bárbara Ramos Dias ao Observador, uma situação destas “pode mudar completamente” a vida de uma pessoa, “para melhor ou para pior”.
“Ficar com um prémio monetário (muito) elevado acarreta mudanças pessoais, profissionais e sociais”, acrescenta a psicóloga Fátima Almeida. Ao nível pessoal, uma pessoa “passa a ter acesso a serviços e bens que antes do prémio provavelmente não seriam possíveis“. No universo profissional, a vencedor “poderá deixar o emprego — se for trabalhador por conta própria ou por conta de outrem — para fazer algo que lhe dê prazer — mais do que trabalhar para subsistir, estará mais centrada em trabalhar para ocupar o seu tempo com qualidade e satisfação”. “Ou poderá simplesmente deixar de trabalhar, não sendo, no entanto, o mais recomendável“, acrescenta. “Ao nível social, poderá dedicar-se a várias causas ajudando a sua comunidade ou, pelo contrário, refugiar-se e isolar-se, quebrando laços e ligações, com receio de que as pessoas se aproveitem da sua condição de euromilionária.”
Tendo em conta uma mudança desta natureza, explica Bárbara Ramos Dias, “é natural que se fique mais ansioso e até pode não saber lidar a situação“. “Depende da estrutural emocional de cada, mas isto mexe com qualquer pessoa. É muito dinheiro.”
Para Fátima Almeida, “independentemente da inteligência emocional” de cada um “e das suas estratégias de coping, haverá sempre alterações a curto e a longo prazo. “O facto de uma pessoa ser tornar milionária da noite para o dia não deixa de ser uma alteração abrupta na vida e, como qualquer outra alteração, causa choque e acarreta muitas mudanças. Estas, por sua vez, podem gerar desconforto e ansiedade, que são normais quando saímos da nossa zona de conforto e da nossa rotina diária”, afirma a psicóloga, acrescentando que, uma vez que “a receção do prémio não é imediata”, o vencedor “poderá ser assediado por outras pessoas ou até por instituições”.
“Há relatos de casos em que o stress, a desconfiança e as discussões em torno da forma como se irá ‘gastar’ o dinheiro levaram à rutura das relações íntimas, com familiares, vizinhos e até com a comunidade“, afirma Fátima Almeida.
O que fazer, caso isto aconteça? “Pedir ajuda de um profissional“, reforça Bárbara Ramos Dias. “É importante ter acompanhamento psicológico, especialmente quando há grandes mudanças na vida.”Para a psicóloga, é importante “saber gerir as expectativas, saber lidar com a frustração de que há coisas que o dinheiro não pode comprar, perceber a quem deve ou não contar [que recebeu esta quantia de dinheiro].” “Para reservarem a sua felicidade e bem-estar, as pessoas não deveriam dizer porque vão deixar de ter privacidade”, diz Bárbara Ramos Dias, acrescentando que “é possível ajudar as pessoas sem dizer que ganhou o Euromilhões”.
Ainda assim, a psicóloga sublinha que arrecadar um prémio deste valor não é garantia de maior felicidade. “As pessoas associam muito vencer o Euromilhões à felicidade, mas isso é apenas um fator externo.” Bárbara Ramos Dias explica que há estudos que compravam que a “atitude perante a vida” tem muito mais peso na sensação de felicidade, enquanto que “fatores externos” como o Euromilhões só representam “10%”.
“A longo prazo, há estudos que apontam para o aumento da qualidade e satisfação com a vida, sem evidências de que se dissipem com o tempo, que se podem explicar pelo “conforto económico” e com a realização de atividades para ocupação de tempos livres que outrora não eram financeiramente possíveis”, , diz Fátima Almeida. “No entanto, vários estudos acabaram por demonstrar que de facto o dinheiro não traz felicidade, uma vez que a felicidade inicial de se tornar euromilionário se dissipa a longo prazo — e o nível de felicidade regressa ao nível habitual antes de ganhar o prémio.”
Bárbara Ramos Dias deixa alguns conselhos: evitar “agir por impulso” e “planear e organizar para não entrar em devaneio”. “Acho que uma pessoa se deve isolar com alguém de extrema confiança e elaborar um plano para pensar o que vai fazer, o que vai guardar, etc.”
Fátima Almeida é da mesma opinião: “Num primeiro momento, logo após a notícia, penso que o conselho mais importante é ter calma e manter a cabeça fria. Apesar da euforia, é importante não divulgar ao mundo a novidade, mantendo a discrição”, explica a psicóloga. “No entanto, acreditando que dificilmente se consegue manter o total secretismo acerca do assunto, acho pertinente que a pessoa converse com as pessoas que são da sua confiança, como familiares ou amigos ‘chegados’.
Fátima Almeida acrescenta que, enquanto não se recebe o prémio, o vencedor pode “ir pensando o que fazer com o dinheiro”. “É neste aspeto que surgem grande parte das dúvidas: qual o banco onde poderá depositar o dinheiro, em que modalidade, se fica a render ou numa conta à ordem, se deverá ser investida uma parte, se está disposto a correr riscos ou não para rentabilizar o património.” Por isso, não deve pôr de parte “a ideia de recorrer a um ou vários especialistas — isto é, economistas, consultores financeiros –, para depois comparar a informação recolhida e tomar a melhor decisão”.
Recorde-se que, em 2014, o grande prémio do Euromilhões saiu num boletim registado em Castelo Branco. Foi exatamente o mesmo valor desta sexta-feira: 190 milhões de euros.