O Amor é o centro das nossas vidas. Há quem o celebre, quem o duvide, quem o tema, quem o escreva, quem o filme, quem julgue que o compra, quem julgue que o vende. Ele está na longínqua Ilíada, no bíblico Cântico dos Cânticos, nos romances de cordel, nos bestsellers, nas obras primas da literatura, da música e do cinema, é o grande tema da poesia desde tempos imemoriais. Está no centro de lutas políticas, nos fundamentos das religiões. No fundo, é de Amor que se trata quando se luta pelos direitos civis, pela natureza, quando se legisla o funcionamento de uma sociedade visando o bem-estar e a felicidade humana na Terra. Tal como é de Amor que falamos quando falamos de conhecimento, de estudo, de Filosofia ou mesmo quando falamos dos objetos aos quais nos afeiçoamos.
Dir-se-ia que se trata de um tema gasto se esse Amor não estivesse sempre a mudar de forma dentro da sua imutabilidade. Porque é dele que se ramificam até ao infinito as relações (ligações) humanas, este deveria ser um livro de leitura obrigatória; chama-se O Banquete, foi escrito por Platão há cerca de 2400 anos e é ele que fixa tudo o que pensamos sobre o Amor. A editora Tinta-da-China acaba de publicar uma nova tradução do grego, feita por Maria Mafalda Viana e com prefácio de José Pacheco Pereira. A saída da obra foi discreta, mas isso não é razão para não ser celebrada, até porque o longo e claro prefácio da tradutora mostra a modernidade das palavras de Platão e como a nossa época tem distorcido e vilipendiado conceitos como erotismo, desejo, diálogo, a memória ou a poesia.
O enredo é simples: Agaton, jovem que ganhou o concurso das tragédias nas festas em honra de Atena, oferece aos amigos um festim, um symposium ou um banquete, para comemorar o feito. Ali se reúnem vários homens sábios, amantes dos prazeres da bebida, da carne e do espírito, que decidem aceitar a proposta de Erixímaco de fazerem discursos em honra de Eros, “um deus tão antigo e poderoso” mas do qual os poetas se têm esquecido. Na reunião há um ilustríssimo convidado, Sócrates, por quem todos os jovens estão apaixonados e cujo discurso é aguardado com excitação. “Os gregos eram um povo de natureza agónica, muito competitivo”, lembra Maria Filomena Molder. Na verdade, estes discursos são compostos em vista de obter o primeiro lugar, ainda que, sem surpresas, sejam de Sócrates as palavras determinantes, até porque ele vai dizê-las pela voz de uma mulher cuja autoridade é incontestável: Diotima, a sacerdotisa de Mantineia, uma estrangeira, não será de mais sublinhar. No final, caberá ao jovem e belo Alcibiades fazer um elogio não de Eros, mas do próprio Sócrates, como se este fosse uma encarnação do Amor.
Falámos com a filósofa Maria Filomena Molder sobre a importância desta obra, o tanto que ela nos ensina sobre os “degraus, ou de-graus que é preciso percorrer” para chegar a entender o que é isso de Amor ou Erotismo, deixando claro, desde já, que neste livro “erotismo” não é sinónimo de “sexualidade” mas sim de relações ou ligações amorosas: ou seja, ligações que buscam o Bom, o Belo, o Bem. “Uma das coisas maravilhosas neste diálogo é a forma como Platão mostra a filosofia a entrar na vida quotidiana através da encenação da palavra dita e ouvida. Contar e ouvir histórias era fundamental para a cultura grega porque só assim se construía e se mantinha a memória das gerações. Por isso, Platão opôs-se tanto à palavra escrita, isto é, enquanto escrevia advertia contra os perigos da palavra escrita. Porque a fixação pela escrita destrói o trabalho da memória, para ele a escrita era o princípio do esquecimento. Daí que tenha inventado um género literário que tentava restituir a atmosfera viva da palavra”, diz-nos Maria Filomena Molder.
“Este texto é uma fonte inesgotável de sabedoria, o génio de Platão está no seu ponto harmónico mais intenso, um milagre estilístico em que humor e graciosidade, leveza e argumentação se misturam de maneira única; a filosofia aparece como delírio, voz oracular, enigma e decifração da vida que se apresenta como uma tensão permanente entre os opostos, de que Eros, um ser intermediário, mensageiro dos deuses, é a configuração suprema, aquele ser que está ‘entre’ a indigência e a fertilidade dos recursos, o desejo de procriar, um ser que não tem eira nem beira, uma imagem insuperável do que seja o filósofo, o amante da filosofia. Ainda estamos a tirar as consequências disto para o pensamento”, explica a filósofa.
Desde logo impunha-se perceber porque é que neste texto o amor entre homens é entendido como superior ao amor entre homens e mulheres ou entre mulheres. “Todos os discursos que ouvimos ao longo do livro assentam numa hierarquia erótica que faz do amor entre homens uma forma superior, talvez porque a mulher está envolta em vários tabus, desde o sangue menstrual, à gestação, ao parto. Esse mundo assustador que o corpo da mulher traz era, por isso mesmo, considerado impuro”. À mulher ficava pois destinada uma forma inferior do amor, que era a gestação e o cuidar das novas gerações. “Apesar disso vai ser uma mulher a ter um maior conhecimento do deus ou, melhor dizendo, do daimon Eros, e é ela que vai ensinar a Sócrates quem é este deus e o que é o amor nos seus vários degraus. Daimon significa uma divindade mensageira, um génio tutelar ou uma voz divina interior.”
“Esta obra, além de firmar as bases da cultura filosófica grega, introduz-nos no coração deste terrível e atraente mundo, que foi muitas vezes arrumado com a frase feita ‘aquilo era coisa dos gregos’, sem nunca nos obrigarmos a pensar seriamente nele, no seu profundo negrume”. Aqui há uma apresentação de Eros e do Amor única em toda a literatura, porque mostra a sua enorme complexidade. Outra das coisas que percebemos neste livro é a relação profunda entre Eros e Dioniso, pois este tem que ver com a mania orgiástica, a embriaguez que intensifica a lucidez, a criatividade. Percebemos que o Amor está ligado ao ato de criar, não apenas filhos, mas poesia, beleza, conhecimento.
Eros entre o corpo e alma
Eros, explicará Diotima a Sócrates, é filho de Poro e Pénia. Ela, a mãe e a penúria e ele, o pai, um ser cheio de recursos, o pensamento industrioso, desejoso do bom e do belo. Assim, Eros está entre a sabedoria e a ignorância. Ele está ligado ao movimento do desejo, da necessidade de algo que não se tem. Esta ideia está já muito presente no discurso de Aristófanes, que Maria Filomena Molder considera um “dos mais importantes e nem sempre lido com a atenção que merece”. Nele é explorada a ideia de que há em nós o pressentimento de que existe algo que nos falta mas que está aí para ser encontrado. Para se compreender isto, Aristófanes conta a história da humanidade, composta de seres com duas caras e oito membros, em que uns eram homens, outros mulheres e outros hermafroditas (repare-se como aqui a coexistência de dois sexos diferentes numa criatura era bastante pacífica) que tinham tamanha força que se tornaram desobedientes aos deuses e foram cortados ao meio.
Ao ficarem sozinhos, tornaram-se fracos e passaram a procurar a sua outra parte a quem se querem unir. Esta ideia da necessidade de responder a uma carência que se sente é reforçada por Diotima ao enumerar os vários estádios do Amor. Primeiro, diz ela, os homens encantam-se por um corpo belo, depois por dois, depois por muitos corpos quando percebem que a beleza se multiplica, não só nos corpos mas nos objetos, na poesia: “Em geral todo o desejo de bens e felicidade é o amor tão forte quanto enganador” diz Diotima. E aqui surge a separação entre o amor carnal, do corpo que visa a procriação. Porque o homem pressente a sua mortalidade ele deseja engendrar a imortalidade e fá-lo gerando filhos. Mas não é nisso que se esgota o desejo provocado por Eros. Ele necessita também de coisas que possam ser dele para sempre, e só os bens da alma são nossos para sempre. Todos os outros, objetos, filhos, amantes e amados podem ser-nos retirados, roubados, e também eles são perecíveis. Por isso, Eros deseja o que é eterno. E o que é eterno, é “gerar no belo”. Ou seja, a filosofia, a poesia, a organização da vida comunitária são assim as formas máximas de erotismo porque são eternas logo verdadeiramente belas. Mas existe um degrau último, que é aquele que dispensa tudo isto, e em que o iniciado nos mistérios do amor já não se distingue do mar da beleza.
Num livro onde predomina a voz masculina e o erotismo entre homens, Platão coloca uma mulher a exprimir as ideias definitivas sobre o amor que persistem até hoje e foram fundamentais na cultura da idade média; a separação do amor entre corpo e alma, sendo que o erotismo carnal é visto como inferior e o erotismo espiritual é visto como superior, como podemos ver em muitas das suas narrativas como Heloisa e Abelardo ou Tristão e Isolda, na lírica trovadoresca. Camões e outros poetas vão tentar superar esta ideia “platónica” mostrando que as almas e os corpos não estão separados. Mas essa ideia, de certa forma, ainda persiste, sendo que hoje, por via o desenvolvimento tecnológico, toda a sociedade está virada para os prazeres corpóreos deixando a alma à mingua do Bom e do Belo, do conhecimento, do estudo, do dialogo, da memória.
“O facto de Platão colocar o discurso principal sobre o Amor na boca de uma mulher mostra que ele sabia que só uma mulher, embora seja uma sacerdotisa, poderia compreender o funcionamento profundo de Eros , pois é no corpo da mulher que se dá um engendrar, um conceber, um procriar idêntico ao de Eros. Que ela seja estrangeira também dá que pensar”, explica Maria Filomena Molder. O corpo da mulher grávida torna-se assim a grande metáfora do erotismo.
A “erótica espectral” do século XXI
A figura do deus Eros tornou-se o Cupido para os romanos e a sua representação na arte passou de ser um jovem esguio com modos efeminados para ser uma criança de arco e fecha até que hoje se tornou uma espécie de bebé gorducho e voador rodeados de corações vermelhos e purpurinas nos postais do dia de S. Valentim, um fraco substituto para um deus tão poderoso. De facto, Platão, “que compreendeu como poucos o poder da linguagem” diz Maria Filomena Molder, mostra-nos, neste livro, que há erotismo sempre que há uma troca e que a linguagem, as palavras, são profundamente eróticas porque nos ligam, nos põem em relação, engendram algo de novo no mundo. O facto de o diálogo se passar num banquete, numa comunidade em que há alguém que fala e os outros ouvem, absorvem, e são permanentemente instigados a pensar, é já uma demonstração de como os gregos viviam de forma profundamente erótica. Posto isto, não deixa de ser terrível que neste tempo que é o nosso, a palavra “erótico” tenha sido reduzida a um género de cinema ou de literatura como As Cinquenta Sombras de Grey e sucedâneos. “O mais aflitivo nestes tempos em que se vive um ‘erotismo espectral’ feito de ligações virtuais, entre corpos ‘sem carne’ e onde o Bom e o Belo são coisas que servem para adjetivar o que se come e o que se compra, as famílias à mesa cada qual a olhar para o seu telemóvel”, desabafa Maria Filomena Molder, “é o facto de as pessoas não se olharem e, pior, não se ouvirem, não se contarem histórias umas às outras, não terem memória do passado, viverem segundo o esquecimento. Um geração que tapa constantemente os ouvidos é uma geração que vai perder a capacidade de estar alerta e ficar à mercê dos perigos. Por outro lado, vai perder a possibilidade de desenvolver a empatia”.
Mas já Diotima alertava: “De facto, a ignorância tem este problema: nada há de belo e de bom, nem de sensato para o que pensa ter disso o suficiente. Ora, e o que não estiver convencido de que tem falta de alguma coisa não o deseja, nem pensa que isso lhe faz falta.” E mais tarde explicará a Sócrates que o ideal é estar como Eros, entre uma coisa e outra e desejar caminhar no sentido de alcançar o Amor que é o gerar no belo. “Na realidade” continua a sacerdotisa, o que é “mais belo é a sabedoria e Eros é o amor pelo belo, de modo que Eros é forçoso que seja um filósofo e, sendo um filosofo, esteja entre o sábio e o ignorante”.
Ligação, conexão, link, nós, redes são palavras que não nos cansamos de usar, viver. Mas parece que perdemos a memória de que todas elas não nasceram para falar de internet, computadores ou telemóveis, mas para falar de Eros, de Amor. Não deixa de dar que pensar a forma como a tecnologia moderna requisitou o velho Eros para se espalhar na nossa cultura e na nossa existência. Hoje vivemos uma cultura forjada numa ditadura das ligações, como analisa José Bragança da Miranda no ensaio Teoria da Cultura. Somos empurrados para estar sempre on e nunca off . Sendo que estar on é como estar vivo, a vida parece só existir dentro das redes virtuais e estar off, desligado, é como estar morto. Na verdade, o on e o off, o ligado e desligado tão modernos, não deixam de se erguer sobre as antiquíssimas figuras de Eros (amor) e Tanatos (morte).