Os prémios Nobel da Literatura de 2018 e 2019 foram atribuídos aos escritores Olga Tokarczuk e Peter Handke, respetivamente. O anúncio foi feito ao final da manhã desta quinta-feira, em Estocolmo, na Suécia, seguindo-se uma justificação exaustiva das razões que levaram à escolha de Tokarczuk e Handke por parte do júri, uma novidade que pretende tornar o processo de seleção do vencedor do prémio mais transparente depois da polémica que levou à suspensão do Nobel da Literatura durante um ano.

A escolha para 2018 recaiu sobre a polaca de 57 anos, vencedora do Man Booker Prize International no ano passado, pela sua “imaginação narrativa, que com uma paixão enciclopédica representa o cruzamento de fronteiras como forma de vida”. O júri descreveu-a como uma escritora que está preocupada “com a vida local”, mas que “olha para a Terra de cima”. “O seu trabalho está repleto de inteligência e astúcia.”

Já a atribuição do Nobel da Literatura de 2019 ao austríaco Peter Handke, de 76 anos, foi justificada pelo seu “trabalho influente de engenharia literária” e pela sua capacidade de “explorar a periferia e a especificidade da experiência humana”.

Os dois laureados foram escolhidos a partir de uma shortlist de oito finalistas, que foi apresentada à Academia Sueca e aprovada, revelou Anders Olsson, presidente do Comité do Nobel. Cada um dos autores receberá cerca um prémio de 830 mil euros.

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Esta é a primeira vez que o mais alto galardão literário é entregue a dois autores ao mesmo tempo. Esta decisão, anunciada no início deste ano, surgiu na sequência de um escândalo sexual que abalou a Academia com 233 anos de existência em finais de 2017 e que, nas palavras do presidente da Fundação Nobel, Carl-Henrik Heldin, fez com que o prémio perdesse credibilidade. São aos membros da Academia Sueca que são responsáveis por escolher anualmente o vencedor do Nobel da Literatura.

Isto levou à suspensão temporária do galardão e à decisão de adiar o anúncio do galardoado de 2018. O Nobel da Literatura foi atribuído pela última vez em 2017, ao escritor britânico Kazuo Ishiguro, pelos seus “romances de grande força emocional”e a sua capacidade de “revelar os abismos por trás da ilusória sensação de conexão com o mundo”.

Olga Tokarczuk diz que prémio traz otimismo à Europa Central

Numa primeira reação telefónica, contactada quando estava numa viagem de automóvel na Alemanha, Olga Tokarczuk confessou ter ficado surpreendida com a atribuição do prémio e não saber ainda como reagir aos “milhares de telefonemas e mensagens” que já recebeu: “A Academia ligou-me apenas uns minutos antes [do anúncio]. Fiquei muito surpreendida, ainda estou tão surpreendida que ainda não consegui encontrar as palavras certas para me expressar”. Já questionada sobre a importância do Nobel da Literatura ter sido atribuído a uma autora da Europa central e sobre a diferença entre autores da Europa Ocidental e escritores da Europa central, respondeu:

“Isto daria para uma discussão muito longa, mas acho que temos neste momento um problema democrático na Europa central. Estamos a tentar encontrar uma forma própria de lidarmos com esses problemas e penso que um prémio literário como este vai dar-nos otimismo para acreditarmos que temos algo para dizer ao mundo, que ainda estamos ativos, que temos capacidade de nos expressarmos e que temos algo de profundo para contar ao mundo. É muito, muito especial para mim e sinto-me muito orgulhosa”, referiu ainda.

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Já o editor da Cavalo de Ferro (chancela do Grupo 20|20 Editora), que publicou em Portugal o livro Viagens — obra que deu à autora a vitória no Man Booker Prize Internacional — e que colocará à venda na próxima semana o novo romance de Olga Tokarczuk, sublinhou a “satisfação” mas também a “surpresa” com a distinção. Em declarações à Rádio Observador, Diogo Madredeus contou que “tinha alguma esperança” na entrega do Nobel à escritora mas que não a considerava previsível, “porque é uma autora ainda muito jovem”. “Fiquei muito feliz porque é uma aposta no que de bom os leitores podem encontrar hoje em dia na literatura. Funciona como uma revelação, também, porque muitos leitores portuguesas não a conheciam”, disse ainda.

Olga Tokarczuk “é uma autora que aborda a escrita de forma muito iconoclasta, não tem medo de pôr em questão as fronteiras tradicionais entre a ficção e a não ficção, por exemplo. Tem vários registos literários e mistura-os”, referiu ainda o editor.

(David Levenson/Getty Images)

“Espantado”, Peter Handke enaltece “coragem” da Academia Sueca

O escritor austríaco que venceu o Prémio Nobel da Literatura correspondente ao ano de 2019, Peter Handke, também já reagiu à distinção. Aos jornalistas que o esperavam à porta da sua residência — em Chaville, Paris, onde vive há muitos anos —, afirmou ter ficado “espantado”, face a “todas as discussões”.

O autor não especificou que “discussões” foram essas, mas referir-se-ia à reputação polémica do seu posicionamento político, depois de ter sido acusado de conivência com o regime genocida de Slobodan Milošević por ter ido ao seu funeral e por ter falado durante a cerimónia.

Este tipo de decisão revela muita coragem da parte da Academia Sueca”, apontou ainda o autor, citado pela Agência Lusa.

A “traidora” polaca que soube olhar para o mundo “a partir de cima”

Olga Tokarczuk nasceu em Sulechów, uma pequena cidade polaca, em 1962. Formada em Psicologia, publicou o seu primeiro livro em 1989, uma coletânea de poesia. A estreia na ficção aconteceu no ano de 1993, com The Journey of the Book-People, mas foi com Primeval and Other Times (1996) que começou a ter atenção da parte do público e da crítica. O romance, passado num “lugar mítico algures na Polónia”, traça a história do povo polaco desde a Primeira Guerra Mundial até à sua independência, em 1989.

Em 1998, a autora publicou House of Day, House of Night, “um romance composto por muitas histórias e episódios, um género de micro-épico, típico de Tokarczuk, que lhe possibilitou representar uma comunidade com fés e culturas diferentes”, resumiu o presidente do Comité do Nobel durante o anúncio desta terça-feira. “É uma escritora que está preocupada com a vida local, mas que ao mesmo tempo se deixa inspirar por mapas e pensamentos especulativos, olhando para a vida na Terra a partir de cima. O seu trabalho centra-se na migração e nas transições culturais, [uma preocupação] visível num dos seus trabalhos de prosa mais fascinantes, Flights“, um trabalho de 2007 que só foi traduzido para a língua inglesa em 2017.

Foi com Flights (traduzido para português pela Cavalo de Ferro) — uma narrativa de viagem que atravessa diferentes séculos e personagens e uma história da anatomia humana, que é ao mesmo tempo uma reflexão profunda sobre o corpo, a vida, a morte, o movimento e a migração — que Olga Tokarczuk venceu o Man Booker Prize International no ano passado, um prémio que lhe permitiu atrair atenção para a sua escrita “profunda e hábil”. Na altura da atribuição do prémio de tradução para inglês, o júri chamou a atenção para a “inteligência” de Tokarczuk, a sua “imaginação e brio literário maravilhosos”.

(Beata Zawrzel/NurPhoto via Getty Images)

Além desta obra, que é seu dúvida a mais ambiciosa da autora, Comité do Nobel disse ter ficado muito impressionado com o romance histórico Jacob’s Scriptures, de 2014 e ainda sem tradução para inglês. “Estas mil páginas de uma longa crónica oferecem-nos um retrato vívido do líder sectário do século XIX Jacob Franks [nascido na Lituânia polaca, em 1726] dado pelos seus seguidores”, que acreditavam ver nele o Messias. “Apresenta um panorama rico de um capítulo pouco conhecido na história da Europa”, apontou ainda Anders Olsson.

Este ano, a escritora voltou a estar nomeada para o Man Booker International, com Drive Your Plow Over The Bones Of The Dead, “um romance criminal original” publicado originalmente em 2009 e recentemente traduzido para inglês. A tradução portuguesa, Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos, vai chegar às livrarias na próxima semana pela Cavalo de Ferro.

Feminista e vegetariana, Tokarczuk tem criticado publicamente o conservadorismo polaco e mantido uma postura de oposição em relação à extrema-direita, que tem vindo a ganhar cada vez mais força no seu país de origem. Numa entrevista depois de ter recebido o Nike, o mais importante prémio literário polaca, a autora disse que, apesar de o seu país ter sobrevivido à opressão, também cometeu “atos horrorosos” de colonização durante a sua história. Por essa razão, foi apelidada pela extrema-direta como “targowiczanin”, uma expressão antiga que quer dizer “traidor”. A sua editora teve de contratar guarda-costas para a proteger.

Peter Handke, o controverso escritor da “periferia” que discursou no funeral de um criminoso de guerra

Poderão as dúvidas de 2016 em torno do laureado Bob Dylan — “recebe o Nobel ou não recebe?” — ressurgir com a atribuição do prémio a Peter Handke?

A pergunta não retraiu a Academia sueca de entregar o grande prémio literário ao escritor austríaco, mas havia motivos de sobra para não ter certezas: não só tinha uma relação tensa com distinções, já tendo recusado por mais do que uma vez somas económicas de outros prémios, como em 2014 disparou diretamente à reputação do prémio Nobel da Literatura, pedindo que fosse abolido por trazer à obra do autor premiado simplesmente uma “falsa canonização” e “um momento de atenção [e] seis páginas no jornal”, como recordou a estação France 24. Desta vez, porém, já terá confirmado que se deslocará a Estocolmo em dezembro, para receber o prémio, tendo elogiado ainda a “coragem” do comité que lhe atribuiu o Nobel.

(ALAIN JOCARD/AFP via Getty Images)

Peter Handke nasceu Griffen, na Áustria, em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, mas cresceu na Berlim ocupada pelas forças soviéticas. Com uma vasta obra publicada, que atravessa diferentes géneros, como a ficção, o ensaio e o drama, o autor que tem agora 76 anos tem um percurso também diretamente ligado ao cinema e ao teatro, tendo sido dramaturgo, realizador e argumentista de filmes. De acordo com o Comité do Nobel, Handke é, “há algumas décadas, um dos escritores mais influentes da ficção contemporânea”, um lugar que ficou estabelecido com a publicação do primeiro romance, Die Hornissen, e de uma peça de teatro, em 1966. Entre muitos outros livros posteriores publicados está a obra A Angústia do Guarda-redes Antes do Penalty, editado em Portugal pela Relógio d’Água. “Com grande mestria, explora a periferia e os lugares desconhecidos”, afirmou Anders Olsson.

“A sua narrativa mais lida é Wunschloses Unglück [publicada em 1972], traduzida em 1975 para inglês com o título A Sorrow Beyond Dreams, escrito sobre o suicídio da sua mãe, em 1971. Handke produziu a maioria dos seus trabalhos fora da Áustria e vive há 30 anos em Chaville, no sudoeste de Paris. Com mestria artística, explora tematicamente a periferia e os lugares que não são vistos”, apontou o presidente do Comité do Nobel, em conferência de imprensa.

A escolha, contudo, não está isenta de polémica. Controverso e provocador, Handke foi fortemente criticado depois de ter discursado no funeral do antigo presidente sérvio e alegado criminoso de guerra (morreu antes da sentença final judicial) Slobodan Milošević, em 2006. O autor, que tem ascendência sérvia do lado da mãe, tinha recusado testemunhar em seu favor quando Milošević foi julgado por crimes de guerra, mas assistiu às sessões de julgamento e escreveu posteriormente um livro sobre elas que disputava o entendimento generalizado sobre a ação do antigo presidente do país.

(STR/AFP/Getty Images)

A posição de dúvida de Handke sobre o genocídio dos sérvios em Srebrenica e sobre o regime sanguinário de Milošević levou a que o seu nome fosse retirado da lista de nomeações ao prémio Heinrich Heine desse ano. Quando lhe foi atribuído o International Ibsen, em 2014, o anúncio foi recebido em Oslo com protestos. Handke foi acusado de ser “fascista” e “negacionista de genocídios” e, como em outras ocasiões em que foi distinguido com galardões, acabou por recusar receber o valor monetário. Na sequência da atribuição do Nobel, um porta-voz da Academia Sueca, contactado pelo jornal The New York Times, afirmou que nenhum dos membros da Academia comentaria se as posições políticas de Handke tinham sido discutidas pelo júri e se este era “um recetor apropriado para o prémio”.

Embaixadora do Kosovo nos EUA fala em “decisão absurda e vergonhosa”

A reação política mais dura à atribuição do Nobel da Literatura a Peter Handke veio da embaixadora do Kosovo nos Estados Unidos da América. Na rede social Twitter, Vlora Çitaku acusou o escritor de ter “glorificado Milosevic [sic]” e “apoiado o seu regime genocida” e criticou o comité da Academia sueca: “É uma decisão absurda e vergonhosa”.

O regresso do Nobel depois do escândalo que abalou uma Academia com 233 anos

Em novembro de 2017, o diário sueco Dagens Nyheter publicou uma reportagem com a denúncia de 18 mulheres que teriam sido abusadas sexualmente pelo dramaturgo francês Jean-Claude Arnault, ligado à Academia através do seu clube literário e casado com um dos seus membros, a escritora Katarina Frostenson. A Academia Sueca cortou com todas as ligações a Arnault, mas o escândalo levou à saída de sete dos seus membros, incluindo de Frostenson.

Isso fez com que não fosse possível haver quórum relativamente ao vencedor do Nobel, obrigando a que a decisão fosse adiada para 2019. Numa entrevista à rádio sueca Sveriges, o diretor-executivo da Fundação Nobel chegou até a avançar com a hipótese de que o prémio só vir a ser restituído em 2020. Segundo defendeu na altura Lars Heikensten, o Nobel da Literatura só poderia voltar a ser atribuído quando a Academia recuperasse “a confiança do público”, seriamente danificada depois do escândalo em torno de Arnault, atualmente a cumprir pena de prisão por violação. O dramaturgo está ainda a ser acusado de divulgar nomes de laureados.

Tal não veio a acontecer — o anúncio acabou por ser marcado para esta quinta-feira, 10 de outubro –, e desde então foram feitas algumas mudanças que pretendem tornar a Academia Sueca mais transparente. Além da entrada de novos membros, a partir de agora, é possível a quem pertence à Academia Sueca sair quando bem entender. Isso não podia ser feito anteriormente, já que os lugares eram vitalícios, uma obrigatoriedade que levava a que muitos membros deixassem simplesmente de aparecer.

Mas há quem defenda que esta alteração não é suficiente. Por altura da divulgação das acusações contra Jean-Claude Arnault, o presidente da Fundação Nobel apelou a uma reestruturação urgente da Academia Sueca, que, em boa verdade, não é assim tão fácil de levar a cabo. Além do óbvio conservadorismo de uma instituição com mais de 200 anos de existência, os seus estatutos só podem ser alterados com a aprovação do rei, como explica a Reuters.