São mais de 400 páginas de documentos do Governo chinês, partes deles divulgados numa investigação do The New York Times, a darem conta de detalhes da forte repressão exercida pelas autoridades chinesas, na região autónoma de Xinjiang (noroeste do país), sobre as minorias muçulmanas. As ordens repressivas foram dadas pelo Presidente Xi Jinping que pediu resposta “sem misericórdia” ao ataque de uigures (minoria muçulmana turcófona), em março de 2014, numa estação ferroviária na província de Yunnan, exortando mesmo ao recurso a “armas da ditadura democrática popular” que “devem ser manejadas sem qualquer hesitação”.
As palavras de Xi Jinping constam dos documentos agora divulgados onde se incluem não só 96 páginas de discursos privados do Presidente chinês, como também 102 páginas de discursos de outros responsáveis chineses, 161 páginas com diretivas e relatórios de controlo e vigilância da população uigur em Xinjiang — região autónoma do noroeste chinês (junto do Paquistão, o Afeganistão e a Ásia Central) onde se concentra esta comunidade que a reclama — e ainda mais 44 páginas com material de investigações internas feitas pelas autoridades locais.
De acordo com o jornal, esta documentação mostra de forma clara a “contínua repressão em Xinjiang, onde as autoridades chinesas detiveram até um milhão de uigures, cazaques e outros em campos de concentração e prisões nos últimos três anos”. Xi Jinping dirigiu-se ao Partido Comunista Chinês, que lidera, recomendando mesmo que fosse imitada “a guerra ao terror” dos Estados Unidos após os ataques do 11 de setembro de 2001 e existem mesmo referências à intenção de estender esta ação repressiva a outras regiões do país, para conter minorias resistentes ao Governo.
A investigação revela algumas linhas de orientação ditadas pelo Governo chinês para que as autoridades locais soubessem responder aos jovens estudantes quando voltavam à região, durante o período de férias escolares, e não encontravam as suas famílias, entretanto detidas. As diretivas agora reveladas aconselhavam as autoridades a dizerem aos estudantes que os seus familiares estavam a receber “formação” pela exposição ao Islão mais radical em centros de doutrinação. E era-lhes mesmo sugerido que o o seu comportamento poderia “reduzir ou prolongar a detenção dos seus familiares”: “Tenho a certeza que de os apoiará, porque isto é para o bem deles mesmos e também para o vosso próprio bem”.
Alguns elementos das autoridades locais que questionaram as regras acabaram por ser afastados e os campos de doutrinação aumentaram depois da nomeação, em agosto de 2016, de Chen Quanguo, um leal líder partidário na região. Desde 2017, as autoridades em Xinjiang detiveram centenas de milhares de uigures, cazaques e outros muçulmanos nestes campos de detenção onde são submetidos a meses ou anos de doutrinação e interrogatório. O objetivo final, conclui o The New York Times, é transformá-los em leais seguidores do Partido Comunista Chinês.
O jornal acautela que não é clara a forma como estão “reunidos e foram selecionados” os documentos que chegaram às suas mãos e clarifica que esta fuga de informação estará relacionada com o descontentamento interno no partido relativo a esta repressão. A fuga teve origem num membro do executivo chinês que pediu o anonimato e que “mostrou esperança de que sua divulgação impeça os líderes partidários, incluindo Xi, de escapar da culpa pelas detenções em massa”, segundo a publicação.
As práticas repressivas do Governo chinês, nomeadamente nesta região, têm vindo a ser denunciadas por várias organizações não governamentais de defesa dos direitos humanos, as Nações Unidas e também por vários governo, nomeadamente o Governo turco.
Controlo, censura e ansiedade. “Na China todos sabem que estão sempre a ser vigiados”
Há um ano, em entrevista ao Observador, Maya Wang, investigadora sénior da Human Rights Watch, acusava o Estado chinês de “implementar à força uma política altamente islamofóbica em Xinjiang, dizendo que uma etnia ou confissão religiosa é uma ameaça à sociedade”.
E dizia que “a situação em Xinjiang é sintomática de uma subida generalizada da repressão na China. É claramente visível que, desde de que Xi Jinping subiu ao poder, o nível de repressão disparou em todas as partes do país. Mas não acho que Xinjiang seja uma espécie zona de teste — acredito é que o modelo que ali está a ser implementado está a ter influência no resto do país. Por exemplo: muitas das empresas de vigilância que existem em Xinjiang já têm uma grande experiência no ramo, por isso acabam por ser procuradas noutras regiões”.
Perante todas as acusações de que têm sido alvo sobre a existência de detenções em massa de minorias muçulmanas no país que eram levadas para campos de concentração, as autoridades chinesas preferiam chamar a estes centros, campos de formação em regime de internato.