O ex-primeiro-ministro timorense Xanana Gusmão assumiu esta quinta-feira responsabilidade pela decisão de compra por ajuste direto de viaturas para deputados do Parlamento Nacional em 2008, pela urgência causada pelo atentado ao então chefe de Estado, José Ramos-Horta.
“Eu assumo esta responsabilidade. A procuradoria, o Ministério Público e a Comissão Anti-Corrupção fizeram as suas investigações e se quiserem podem acusar-me a mim”, disse esta quinta-feira no Tribunal de Díli.
O antigo chefe de Estado foi ouvido como testemunha da defesa, no caso do ex-presidente do parlamento Vicente da Silva Guterres, que está acusado de benefício económico, no âmbito de um processo de compra de viaturas para os deputados, há mais de 10 anos.
Vicente da Silva Guterres é coarguido no caso com duas outras pessoas, Rui Amaral, à data secretário do Parlamento Nacional, e Francisco Guterres, então responsável de aprovisionamento do Ministério das Finanças.
O caso remonta ao período conturbado do início de 2008, depois do atentado contra José Ramos-Horta, então Presidente da República, que é substituído interinamente em funções pelo então presidente do parlamento, Fernando Lasama de Araújo.
Quando assume funções, já estava a decorrer um processo, iniciado por Lasama, para a compra dos carros, tendo sido solicitados orçamentos a várias empresas, das quais, após avaliação, Guterres escolhe a Midori Motors.
A sala de audiências encheu para ouvir o testemunho, com dezenas de pessoas em pé e a acompanhar a audiência no exterior da sala onde foi ouvido Xanana Gusmão.
O então primeiro-ministro foi instado a comprovar a sua assinatura em dois documentos, nomeadamente os contratos de compra das viaturas, um de junho de 2008 feito por ajuste direto e outro de dezembro do mesmo ano, depois de um concurso internacional.
Questionado pelo facto de ter sido tomada a opção de ajuste direto com a Midori Motors, Xanana Gusmão explicou que lhe foi feito chegar uma justificação do “caráter excecional” desta compra, tendo sido feita uma “prospeção de mercado” que confirmou que o preço da Midori — 33.400 dólares (30.100 euros) por carro — era o mais barato.
“Recebi um documento do Parlamento Nacional a fazer a justificação para o ajuste direto. E na justificação olhei para a cotação que apresentaram e para uma certa urgência na aquisição das viaturas”, disse.
No meio do processo, Lasama regressa a funções e pouco tempo depois explica que a Midori diz estar com dificuldades para fornecer os Prado e que só consegue disponibilizar em vez disso Mitsubishi Pajeros, mantendo o preço unitário, apesar de serem carros inferiores.
Lasama de Araújo informa que a troca de carros foi aceite — segundo documentos a que a Lusa teve acesso e que fazem parte do processo — e a Midori inicia as entregas, mas sem poder entregar as 65 inicialmente previstas.
O Ministério das Finanças optou por realizar um concurso para as restantes 38, tendo vencido uma que oferece os carros a um valor unitário de 33.000 dólares (29,9 mil euros).
Equipas de investigação da Comissão Anticorrupção comprovam que qualquer desses valores estava abaixo dos preços de mercado praticados em Díli na altura.
O Ministério Público acusa Vicente da Silva Guterres de ter beneficiado diretamente com o negócio por um valor que corresponde à diferença por preço unitário — 400 dólares (362 euros) por cada um dos primeiros 27 carros ou um total de 10.800 dólares (9.800 euros).
Os procuradores sustentam que não se justificava o procedimento de urgência, que os arguidos não respeitaram os processos de aprovisionamento e que permitiram à empresa alterar os bens contratados.
Xanana Gusmão atribui a diferença de preços ao mercado e à flutuação da moeda e disse que, dez anos depois, se esquece “que aquilo ocorreu num momento concreto”, com o ataque a José Ramos-Horta e um ambiente de urgência no país.
“Hoje até diretores gerais andam de Prado [modelo de carro], mas na altura os deputados não tinham como se movimentar. E tinha havido o atentado ao Horta, eu próprio fui alvo, havia rebeldes por aí”, recordou. “E havia a necessidade de uma assistência política do parlamento às populações. Os deputados tinham que viajar para explicar às populações o que estava a acontecer”, afirmou.
O ex-primeiro-ministro recordou que Timor-Leste ainda está no processo de construção de Estado e que foi o seu Governo, a partir de 2007, que começou a estabelecer a génese do sistema de finanças públicas. “A situação de 2008 não se pode entender com a realidade de 2012 ou de 2019. Quem faz isto pensa que os seus pais não sofreram porque estamos a viver bem”, afirmou.
“Em 2008 a política do Governo foi de melhorar a gestão financeira, corrigir as coisas. O sistema não existia em 2001. Fizemos um esforço brutal para instalar e estabelecer o sistema. Mas na prática, no dia a dia, era preciso aprender o novo sistema, construir e melhorar”, acrescentou.
Isso deve ter sido em conta quando se avalia o que foi feito na altura, disse, recordando que o parlamento tinha competência para decidir gastos até um milhão de dólares (900 mil euros), ele próprio entre um milhão e cinco milhões e o Conselho de Ministros acima de cinco milhões (4,5 milhões de euros).
Xanana Gusmão abandonou o tribunal sem prestar declarações aos jornalistas.
O julgamento continua no dia 19, quando se espera o testemunho do ex-Presidente José Ramos-Horta.