A História
É um caso de recomeços. Em 2015 Lisboa sorria ao ver inaugurar o primeiro projeto a solo — totalmente a solo — do chef Alexandre Silva. Desde o primeiro dia que o inventivo Loco assumiu que queria agitar as águas, dar um safanão no panorama do fine dining, ainda muito formal na altura, e pôs clientes a apanharem pão suspenso no ar, a serem servidos por cozinheiros e até a receberem colheradas, servidas pelos mesmos, diretamente à boca. A sabedoria popular acabou por verificar-se e depois de primeiro se “estranhar” a coisa acabou mesmo por se “entranhar” e rapidamente este Loco passou a ser um valor consagrado da restauração de topo em Lisboa. O restaurante até chegou mesmo a ganhar a primeira (e, por enquanto, única) estrela Michelin com menos de um ano de vida.
“A ideia de abrir uma coisa assim apareceu quase ao mesmo tempo da de abrir o Loco, simplesmente achei que na altura não fazia tanto sentido”, contou o próprio chef ao Observador. Ora com este novo projeto, o recém inaugurado Fogo, Alexandre pegou nesse plano já antigo, voltou a arriscar e a aventurar-se num conceito que apesar de ser cada vez mais popular é estreia absoluta pela capital (no Porto já havia inaugurado o também importante Elemento, há coisa de um ano e pouco): uma cozinha exclusivamente feita sobre brasas. Ou seja, depois de já ter um projeto dominado começou de novo a trabalhar um tipo de cozinha que sempre adorou mas que não deixa de ser desafiante — especialmente quando inserido num espaço contemporâneo e cosmopolita onde todos esperam nada menos que o melhor.
As obras atrasaram muito, mais de um ano, e os desafios foram muitos. Um deles, por exemplo, — talvez o maior — deveu-se à extração de fumos. Para uma casa que só queria ter de queimar lenha era essencial garantir que o ambiente era respirável e que os clientes podiam voltar a casa sem cheirar a lareira. O que garantiu isso foi toda uma gigantesca estrutura que, conta o próprio chef, “levou um terço do orçamento total” para este Fogo. A juntar a isto as habituais e necessárias burocracias que se tornam ainda mais complicadas quando é preciso certificar uma qualquer casa num espaço de restauração — algo que estas quatro paredes não eram, numa vida anterior. Tudo correu bem, felizmente, e nasceu em assim em Lisboa o primeiro restaurante onde 100% da comida é transformada com recurso a esse elemento primitivo que é o fogo.
O Espaço
O recomeçar de que se falava há umas linhas até se sente na decoração deste Fogo. “Quisemos explorar a ideia de algo que nasce das cinzas, uma espécie de renascimento de um edifício que ardeu mas que volta a crescer outra vez”, conta o chef atrás do balcão enorme que fica no extremo oposto da entrada. É por causa disto que o preto é a cor dominante nesta casa e isso vê-se logo antes de entrarmos: a vistosa e minimal fachada do Fogo é toda nessa cor e totalmente forrada de rocha vulcânica dos Açores. Logo bom presságio para o bom gosto que se aproxima.
Como em equipa que ganha não se mexe, Alexandre voltou a confiar o desenho deste seu novo “bebé” nas mãos da João Tiago Aguiar Arquitetos, os mesmos responsáveis do irmão mais velho Loco. Foi deles a opção de deixar logo à entrada uma espécie de zona mais lounge onde fica o bar deste Fogo. Atravessa-se a porta de entrada e esta área surge logo de repente, antes do extenso paralelepípedo que se estica para a frente. Cadeiras, bancos e pequenas mesas (poucas) preenchem esta zona onde também brilha o tal bar de balcão em madeira. Entre toda esta mistura de madeira, pele e ferro surge também um cepo com um machado nele enterrado e que pertencera ao avô do chef. Daí seguimos em frente, depois de uma rampa que separa a zona de bar da sala de refeições. Esta divide-se em dois graças a uma espécie de parede que serve de frigorífico de vinhos, fermentados e belos nacos de carne. Há mesas dos dois lados.
À medida que caminhamos rumo ao fogo, a cozinha aberta, passamos por uma área mais aberta, também com mesas (todas numa onda de materiais quase crus, onde a madeira e o ferro contrastam com as cerâmicas, todas elas assinadas pelo já famoso Studio Neves). Depois disso o balcão, finalmente. A “barra” que divide a sala de jantar da cozinha é um dos melhores lugares da casa, cabem lá seis pessoas, e serve de moldura para o impressionante trabalho da equipa de cozinheiros que alimenta estas chamas. Foi o próprio Alexandra Silva que desenhou e estruturou toda esta área onde coabitam tanto o braseiro como o forno a lenha da marca Valoriani, os “Ferraris” deste género de coisa. É aqui também que uma equipa de pelo menos sete pessoas trabalha no duro (e no quente) para todos os cerca de sessenta comensais (lotação aproximada do espaço).
A Comida
Uma das coisas que mais caracteriza a identidade gastronómica de Alexandre Silva é a criatividade. O trabalho que desenvolve no Loco, principalmente, forjou esta cara vanguardista que torna o seu trabalho tão especial. Porém, e porque é sempre bom ajustar expectativas no momento de visitar um restaurante novo, é importante assinalar que a comida que se serve neste Fogo não pretende ser avant garde ou ultra criativa, pelo contrário. Aqui impera a simplicidade e a riqueza do produto base. Faz-se o simples mas de forma inteligente, dá-se algum traço autoral mas sem deixar que isso interfira na importância do sabor daquilo que é inatamente bom. Como tal, a sazonalidade predomina e por isso não é de estranhar que possa não encontrar alguns dos pratos que aqui serão apresentados. Só se usa o que está bom e na época em que é melhor. Isto tudo, claro, também com o acompanhamento das criações de João Bruno, o barman da casa que assina bebidas como o “Falso Negroni” (15€), que leva gim infusionado com cacau puro; ou o vistoso “das cinzas” (12€), que leva erva príncipe, gim e lima.
Na prática, aquilo que pode encontrar tanto no menu de jantar como no de almoço são entradas como o xerém de berbigão (7€), o delicioso chicharro dos Açores de escabeche e na brasa (8€) ou as ostras na brasa (5€ duas unidades), por exemplo. Como pratos principais pode encontrar a raia na grelha com espinafres e molho de manteiga e alho (17€), a cabeça de porco alentejano assada no forno como um leitão (16€), o frango do campo biológico com arroz de forno (18€) ou até o borrego assado no forno com o seu arroz (25€). No geral são pratos carregados de sabor que trazem à memória (e às papilas gustativas) a comida “da terra” ou “da avó”, tudo sempre condimentado com fumo, claro, venham os pratos do forno a lenha, da robata (tipo de grelhador japonês mais estreito) ou das panelas de ferro. Até sobremesas como o delicioso pão de ló de alfarroba com sorvete de noz, azeite e flor de sal (5€), por exemplo, são feitas com recurso ao calor de madeiras como o eucalipto, o azinho, a oliveira ou o sobreiro — trabalham com cinco variedades de madeira mas querem vir a utilizar oito, no futuro.
Apesar de ser o nome de Alexandre Silva que aparece na porta, quem brilha aqui (e com mérito) é o jovem chef residente Manuel Libaut (que geria o laboratório de investigação e desenvolvimento do Loco) e o seu braço direito, o sub-chef Ronald Sim, que veio de Singapura, do mítico Burnt Ends, para deslumbrar com o seu ritmo imparável. Falar deste jovem asiático relembra que esta cozinha tem ainda a particularidade de ser dominada pela comunicação em inglês, dadas as várias nacionalidades de quem a compõe: “Ter estrangeiros a trabalhar connosco é muito importante porque nunca sabemos tudo”, explica o chef ao ressalvar que esta posta na diferença serve para enriquecer anda mais o trabalho que aqui já se faz.
Tudo somado, o que pode esperar deste Fogo é simplicidade e respeito: não só pelo produto mas também pelos sabores fortes tão típicos da comida portuguesa. A tradição é apurada, trazida para a contemporaneidade e servida com respeito num ambiente informal e dado a refeições alegres. É fogo que arde e vê-se bem.
O que interessa saber
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Nome: Fogo
Abriu em: Dezembro de 2019
Onde fica: Avenida Elias Garcia, 57, Lisboa
O que é: O novo restaurante do “estrelado” Alexandre Silva onde tudo é confecionado com lume vivo – nem sequer há instalação de gás.
Quem manda: O chef Alexandre Silva
Quanto custa: O preço médio rondará os 20/25 euros por pessoa sem vinhos
Uma dica: Se houver vaga escolha sempre os lugares “de balcão” junto à cozinha. Não só ficará com uma ótima refeição como estará na primeira fila do espetáculo que é essa cozinha on fire.
Contacto: 217 970 052 / fogo.reservas@alexandresilva.pt
Horário: Das 12h30 às 16h e das 19h30 às 00h; Domingos, das 12h30 às 17h (fecha segunda-feira)
Links importantes: Facebook, Instagram, Site
“Cuidado, está quente” é uma rubrica do Observador onde se dão a conhecer novos restaurantes
Artigo atualizado às 14h09 de 6 de janeiro. O restaurante em questão tem 60 lugares e não 20.