“De 1986 lembro-me, é do que aconteceu ontem que não me consigo lembrar”.

Stellan Skarsgård estava bem disposto na manhã de março de 2018 em que se deslocou a Londres para uma sessão de respostas a jornalistas, em que o Observador esteve presente. Na altura, o ator sueco que tem agora 68 anos não sabia que receberia dez meses depois, mais especificamente na madrugada desta segunda-feira (hora portuguesa), um Globo de Ouro de Melhor Ator Secundário pelo seu papel em Chernobyl.

Também ninguém imaginava ainda por aquela altura que a mini série, produzida em conjunto pela norte-americana HBO e pela britânica Sky Atlantic, teria um impacto tão grande na crítica — não foi contudo consensual, como provam estes textos da revista New Yorker e do jornal The New York Times —, conquistaria tantos espectadores e colecionaria prémios. Só este domingo foram concedidos dois, um a Stellan Skarsgård como “Melhor Ator Secundário” e outro a Chernobyl no seu todo, considerada “Melhor Série de Curta-Duração ou Filme Televisivo” — e ainda recebeu outras duas nomeações nestes Globos de Ouro pelas interpretações dos atores Jarred Harris e Emily Watson, que se viram contudo ultrapassados por Russell Crowe (The Loudest Voice) e Patricia Arquette (The Act).

Na sua longa carreira, Stellan Skarsgård, que trabalhou muito com o realizador Lars Von Trier, participou em filmes como Ondas de Paixão (1996), O Bom Rebelde (1997), Dancer in the Dark (2000), Dogville (2003), Os Fantasmas de Goya (2006), Millennium 1: Os Homens Que Odeiam as Mulheres (2011), Ninfomaníaca (2013) e O Homem Que Matou Don Quixote (2018) — e já tem mais um filme em vista, Dune, um filme épico de ficção científica realizado por Denis Villeneuve, com Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Oscar Isaac e Javier Bardem também no elenco e que chegará às salas de cinema dos EUA no final deste ano.

Chernobyl, uma série com a União Soviética em ponto de mira

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Em Chernobyl, Skarsgård interpreta o papel do antigo vice-presidente do conselho de ministros da União Soviética, Boris Scherbina. O ator tinha 37 anos quando aconteceu o desastre de Chernobyl — foi em 1986 — e aos jornalistas, nessa manhã de março, recordou que a informação chegou-lhe através de “fontes ocidentais”, porque “a União Soviética não disponibilizou muita informação” e, quando o fez, “fê-lo sempre no sentido de desvalorizar a dimensão da catastrófe”.

Curiosamente, o primeiro aviso do regime de que tinha havido um acidente em Chernobyl foi dado nessa noite de 28 de abril de 1986 via televisão. No programa noticioso (para alguns, propagandístico) Vremya, que ainda é emitido — já não na estação “Programme One” da Televisão Central da URSS, mas no Channel One Russia —, o governo lançava o aviso: “Houve um acidente na Central de Energia Nuclear de Chernobyl. Um dos principais reatores foi danificados. Os efeitos dos acidente estão a ser reparados. Está a ser providenciada assistência a todas as pessoas afetadas. Foi montada uma comissão de investigação”. Durou 20 segundos, a leitura da missiva.

Curiosamente, poucos anos antes do acidente nuclear de 1986, o ator sueco tinha ido às urnas votar num referendo sobre energia nuclear. Na altura, votou “não” mas hoje já não o faria. “Isso foi num mundo que parecia radicalmente diferente do mundo de hoje, o aquecimento global era só uma ideia nessa altura”, apontou, lembrando que a energia nuclear “é uma das formas mais limpas e seguras de obter energia”. Hoje, acredita, “o mundo está numa situação tão má que talvez precisemos de energia nuclear para reinventar as novas forças de energias renováveis”. No que não acredita é nas sugestões de diminuição radical do consumo de energia no mundo como solução para os problemas ambientais: “Não podemos dizer isso, a maneira como cultivamos e como praticamos agricultura atualmente exige muita energia e muitos tratores. Além disso, se a população duplicar como se prevê que possa acontecer, vamos precisar mesmo de muita energia. Não sou um cientista e é uma questão delicada”, apontou, logo concluindo: “Mas a pergunta parece-me ser: então, humanidade, como queres morrer? E quando?”

Provando que a resposta errónea ao acidente nuclear (politicamente motivada) é um dos principais alvos de “Chernobyl”, Stellan Skarsgård apontou a mira ao regime soviético durante a sessão de conversa com jornalistas: “O que é que causou verdadeiramente a catástrofe, se virmos bem? Foi um sistema que não podia falhar, uma ideologia que era infalível. É como com qualquer religião, sabes que é preciso suprimir a verdade. É isso que é verdadeiramente perigoso. Essa religião pode ser o comunismo, pode ser uma religião em si mesmo ou podem ser interesses capitalistas como aconteceu em Fukujima, que foi um desastre provocado pela falência do capitalismo, com as empresas a impossibilitar uma resposta efetiva ao desastre”. Não é, porém, necessário ir buscar apenas exemplos do passado: “Porque raio é que a Boeing, por exemplo, hesita quanto a deixar no solo os aviões 737 Max 8 [devido a dois grandes acidentes com estes aviões registados em apenas cinco meses, que causaram a morte de 338 pessoas]? Porque é que eles tentaram suprimir sequer a ideia de que fizeram porcaria?”, questionou.

O ator com a estatueta de Globo de Ouro para Melhor Ator Secundária, que recebeu este domingo à noite, madrugada de segunda-feira em Portugal (@ Patrick McMullan via Getty Image)

O ex-futuro diplomata que não tem medo da morte

Bem antes de ser ator, Stellan Skarsgård quis ser diplomata, para andar pelo mundo a promover a paz. Mais tarde, como revelou já em entrevistas, apercebeu-se que ser diplomata exigiria, por vezes, que funcionasse como uma espécie de megafone do seu governo, concordasse ou não com ele. Perguntámos-lhe se ter experimentado o papel de um político da União Soviética em Chernobyl fê-lo ter a certeza de que tomou a melhor opção ao enveredar pela carreira de ator. Ele riu-se: “Provavelmente, sim. Embora se possa dizer que o Scherbina passou toda a sua vida naquele sistema e a defender aquele sistema, que é baseado até numa ideia bastante decente de que o mundo deveria ser bom para todos — mas na prática, não funcionou exatamente assim. Depois de acontecer esta catástrofe, ele vai-se apercebendo gradualmente de que ela aconteceu por causa do sistema. Começa a ver gradualmente as falhas do sistema e isso destrói-o de certa forma, é algo devastador para ele. Ao mesmo tempo tenta ficar ali e trabalhar para de certa forma se redimir”.

Em “Chernobyl”, a personagem de Stellan vê-se confrontada com uma informação que a deixa aterrada: vai morrer em menos de cinco anos. Ao homem que faz de Boris Scherbina, a morte já não parece tão aterradora, também — mas não só — por não ter uma previsão temporal tão definida. “Não tenho medo da morte. Não quero que os meus filhos morram antes de mim, isso é-me importante, mas não ando a carregar esse medo porque paralisar-me-ia e faria de mim um pai incapaz de lhes dar grandes alegrias”, apontou.

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O truque que usa para viver mais ou menos tranquilamente é fazer uma espécie de “estimativa de risco” para algumas atividades, como voar — “deixa-me mais descansado, ajuda-me a estar tranquilo” —, e para algumas sombras que pairam no mundo, como o terrorismo. “Se tens medo de terroristas na Europa, talvez ajude saber que houve mais pessoas mortas por terroristas neste continente na década de 1980 do que na atual, só não eram tão bem televisionados. Mesmo na América, há este medo ‘Ó MEU DEUS’ sobre terroristas, mas depois todos os anos 30 mil pessoas morrem por tiros que não são disparados por terroristas…”

Stellan Skarsgård tem 68 anos e já fez filmes como O Bom Rebelde, Os Fantasmas de Goya, Millennium 1: Os Homens Que Odeiam as Mulheres e Ninfomaníaca (@ Getty Images)

O facto de a série vincar a difícil relação do regime soviético com a transparência e com factos prova, desde logo, que as “fake news” não são um fenómeno novo, são quanto muito um fenómeno que no Ocidente se sofisticou tecnologicamente e se institucionalizou fora da esfera do Estado. Stellan Skarsgård não está profundamente encantado com o estado do mundo, acha que a série também é importante por nos alertar para “a importância de ouvir a verdade, os factos e a ciência” e não misturar nada disto com emoções e opinião, lamenta que “a verdade pareça uma espécie de arte em vias de extinção” e que se ande à procura de informação credível tendo o Facebook como fonte primária de notícias quando “o melhor é procurar informações em fontes que já sabemos que são aquelas que mais verificam a autenticidade das informações que veiculam”.

O Ocidente, por sinal, também não escapou às suas críticas nesta conversa, pela forma como — para Stellan Skarsgård — alimentou o que é hoje a Rússia. “O Ocidente, de certa forma, colocou Putin onde está. Quando caiu o muro [de Berlim], a NATO e o Ocidente foram tão sôfregos a tomar o controlo de países à volta da Rússia e humilhar a Rússia que as pessoas lá sentiram-se mesmo humilhadas”, defendeu o ator, lembrando que a Rússia passou de “potência mundial a irrelevante” num ápice. “A economia estava a despedaçar-se e os americanos, pelo menos foi assim que viram a coisa, começaram a tomar país atrás de país perto da Rússia, cada vez mais perto. Isso criou uma situação paranóica que foi terreno fértil para que um homem como Putin aparecesse — e ele ainda está a beneficiar disso. Claro, o sistema atual na Rússia não é exatamente democrático ou livre, é terrível”, acrescentou Stellan, reiterando que também não é fã do “novo autoritarismo que vem da igreja, em países como a Polónia”.