O Departamento Especial Contra a Corrupção e a Criminalidade Organizada do Ministério Público (MP) de Espanha está a investigar António Vitorino pelo seu alegado envolvimento no caso de corrupção e branqueamento de capitais que tem Raul Morodo, ex-embaixador espanhol em Lisboa e Caracas, o seu filho Alejo, genro do ex-ministro Dias Loureiro (PSD), e a Petróleos da Venezuela (PDVSA) como principais protagonistas.

Em causa estão transferências de cerca de 350 mil euros que os Morodo transferiram para contas pessoais de Vitorino e da sua empresa de consultadoria. “Parece necessário investigar se os serviços de consultadoria prestados pela Emab Consultores Lda. e António Manuel Carvalho Ferreira Vitorino que deram lugar a estas transferências são reais e se existe documentação que provem os mesmos serviços”, lê-se no relatório da Unidade de Apoio da Autoridade Tributária Espanhola a que o Observador teve acesso.

Este relatório foi noticiado em primeira mão este domingo pelo jornal digital espanhol Ok Diário — uma publicação fundada por um ex-jornalista do El Mundo.

O relatório não só descreve como Raul e Alejo Morodo terão sido protagonistas de um esquema de branqueamento de capitais de mais de 4,4 milhões de euros que tiveram origem em contas da PDVSA e que resultaram na compra de diversos imóveis em Madrid, como refere o nome de António Vitorino e da sua empresa de consultadoria como tendo sido duas das entidades que receberam fundos dos Morodo.

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Os circuitos financeiros que estão descritos neste relatório de 22 de junho de 2017, assinado pelos responsáveis da Unidade de Apoio do Fisco, são essencialmente dois:

  1. O primeiro circuito, no valor total de 70 mil euros, que o escritório Aequitas Abogados y Consultores, de Alejo Morodo (filho de Raul Morodo), transferiu para António Vitorino. Tratam-se de duas transferências individuais de 35 mil euros realizadas em 2011 e em 2012 que não terão sido declaradas ao fisco espanhol pelo escritório de Alejo Morodo. “Há que indagar a razão destes pagamentos e o destino dos mesmos”, lê-se no relatório do fisco espanhol.

Excerto do relatório da Autoridade Tributária de Espanha

2. Já o segundo circuito diz respeito a transferências de 255.200 euros que a Morodo Abogados Y Asociados SL (o escritório de Raúl Morodo) transferiu entre 2012 e 2016 para as contas no Santander em Lisboa da Emab Consultores, Lda — a empresa de consultadoria detida por António Vitorino e pela sua mulher Beatriz. A justificação para esta transferência dada pelo escritório de Raul Morodo ao seu banco prende-se com “prestação de serviços profissionais de consultadoria em relações internacionais e assuntos europeus”, lê-se no relatório da Autoridade Tributária espanhol.

Tem sido precisamente a justificação que António Vitorino tem dado publicamente desde que a revista Sábado citou a primeira notícia do El Mundo sobre o caso Morodo. Além de negar o conhecimento sobre qualquer investigação à sua empresa de consultadoria “suspensa e sem qualquer atividade desde 2018”, o ex-ministro da Defesa Nacional de António Guterres apenas reconheceu os pagamentos feitos à Emab e com a mesma justificação que consta do relatório da Autoridade Tributária espanhola. “Em momento algum esses serviços de consultadoria tiveram qualquer relação com a Venezuela”, enfatizou Vitorino num comunicado escrito.

Vitorino nega envolvimento em esquema de corrupção de embaixador espanhol na Venezuela

O problema, tal como o jornal Público sublinhou, é que Vitorino não fala dos 70 mil euros que terá recebido do escritório de Alejo Morodo alegadamente a título pessoal. Ao Público, reconheceu conhecer Raul e Alejo Morodo desde os anos 90. O primeiro foi embaixador de Espanha em Lisboa entre 1995 e 1999 tendo, inclusivé, sido condecorado pelo Presidente Jorge Sampaio.

Ora, é precisamente Alejo Morodo que está no centro da investigação da Audiência Nacional, um tribunal espanhol especial criado para combater o terrorismo e a criminalidade economico-financeira e altamente organizada, existindo a suspeita que tenha agido como testa-de-ferro do seu pai, que foi embaixador em Caracas entre 2004 e 2007. Em Espanha, é o juiz de investigação criminal quem lidera a fase de inquérito.

O envolvimento da filha de Dias Loureiro…

Raul Morodo, um histórico da esquerda espanhola que esteve na origem do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), teve uma passagem por Lisboa recheada de sucesso. Amigo de Mário Soares desde os tempos da luta contra as ditaduras salazarista e franquista, Morodo deixou raízes na capital portuguesa. O seu filho Alejo acabou por casar-se com Ana Catarina Loureiro, filha do social-democrata Dias Loureiro.

A casa de Alejo Morodo e de Ana Catarina Loureiro, assim como a casa e o escritório de Raul Morodo, foram alvo de buscas pelas autoridades judiciais espanholas em maio de 2019, tendo Alejo sido inclusivamente detido preventivamente.

No relatório da Autoridade Tributária espanhola, a que o Observador teve acesso, Ana Catarina Loureiro é referenciada por ter tido 50% do capital da sociedade Intercatera Desarrollo SL em 2005. Esta sociedade terá sido usada por Alejo Morodo entre 2012 e 2014 no alegado esquema de branqueamento de capitais, tendo recebido cerca de 110.840 euros da Aequitas Abogados y Consultores — a mesma sociedade de Alejo que alegadamente transferiu cerca de 70 mil euros para António Vitorino.

Excerto do relatório da Autoridade Tributária de Espanha

Um escritório de advogados português chamad0 Calama V. Menezes Falcão & Associados é também referenciado como tendo recebido um total de cerca de 85 mil euros do escritório da Aequitas Abogados y Consultores Associados. Contudo, não existe qualquer suspeita sobre essas transferências que constem do relatório consultado pelo Observador.

… e da Galp Energia

Também diversas empresas do Grupo Galp Energia são referenciados no relatório da Autoridade Tributária espanhola pois quer a Morodo Abogados (o escritório de Raul Morodo) quer a Aequitas Abogados (o escritório de Alejo Morodo) prestaram serviços a diversas subsidiárias da Galp.

Alejo Morodo terá sido sido consultor da Galp Energia España, SA entre 2012 e 2013, tendo recebido cerca de um total de cerca de 50.499 euros de remunerações. No relatório do fisco espanhol pode ainda ler-se que o filho de Raul Morodo prestou serviços à subsidiária espanhola da Galp “desde 2004.” Os valores que Alejo recebeu desde 2004, contudo, não são revelados.

Curiosamente, a Galp España acabou por informar o fisco que pagou um valor superior ao que foi declarado por Alejo Morodo: 55.666,55 euros — ou seja, mais cinco mil euros do que foi declarado pelo filho de Raul Morodo.

Excerto do relatório da Autoridade Tributária de Espanha

Os responsáveis da Autoridade Tributária espanhola ligam estas transferências a um “acordo concluído entre a empresa portuguesa Galp Energia no ano de 2008 com a PDVSA para instalar quatro parques eólicos na Venezuela e comprar petróleo à PDVSA”. Tal informação, contudo, resulta de uma simples pesquisa na internet realizada pelos autores do relatório. Ou seja, é uma linha de investigação criada em 2017 (ano do relatório) que fica sujeita a confirmação.

Certo é que o escritório do ex-embaixador espanhol em Lisboa e em Caracas também terá recebido fundos de diversas empresas do Grupo Galp Energia. Por exemplo, a Galp Exploração e Produção, SA (uma sociedade de direito português) pagou à Morodo Abogados y Asociados SL a quantia total de 317.240 euros entre 2008 e 2013.

Excerto do relatório da Autoridade Tributária de Espanha

De acordo com informação transmitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira de Portugal, parte destes custos terão sido repercutidos na Galp Exploração e Produção Petrolífera, SA – uma sociedade registada na Zona Franca da Madeira.

As contas da PVDSA no BES e a offshore do Panamá

No centro do processo que está em investigação na Audiência Nacional estão os cerca de 4,4 milhões de euros que terão sido alegadamente desviados dos cofres da PDVSA. E aqui entra na história o Banco Espírito Santo liderado por Ricardo Salgado, pois era no BES que a petrolífera venezuelana tinha algumas das suas principais contas bancárias, como o Observador já referiu em diversos trabalhos relacionados com o processo Universo Espírito Santo.

Terá sido a conta que a PDVSA tinha no BES em Lisboa que terão saído um total de cerca de 2,6 milhões de euros para as contas bancárias da Furnival Barristers, uma empresa offshore do Panamá que terá como beneficiário económico Alejo Morodo.

Excerto do relatório da Autoridade Tributária de Espanha

Terá sido a Furnival Barristers que terá, posteriormente, feito circular os fundos pelas contas da Aequitas Abogados que, em parte, e de acordo com o circuito financeiro descrito no relatório da Autoridade Tributária espanhola, serviram para transferir cerca de 70 mil euros para António Vitorino.

Fonte da Audiência Nacional garantiu esta segunda-feira à Agência Lusa que o caso ainda está na fase inicial de inquérito/instrução, não podendo ser prestadas informações sobre o andamento das várias diligências em curso.