Para nós, portugueses, é-nos complicado ser totalmente racionais e imparciais quando se trata de falar de Cristiano Ronaldo. É quase contra-natura, pelo menos para quem gosta de futebol, assumir que Cristiano Ronaldo jogou menos bem — é praticamente proibido dizer que jogou mal, acrescente-se –, que esteve desconcentrado, que não realizou uma grande exibição ou não foi decisivo. Quando pensamos muito no assunto, aliás, torna-se complexo não dar laivos de poesia àquilo que Cristiano Ronaldo significa para todos nós. E quando pensamos muito no assunto, porque o passar do tempo é obviamente inevitável, é quase impossível imaginarmos o dia em que Cristiano Ronaldo nos vai dizer que os relvados terão de continuar a ser regados, tratados e habitados sem a presença dele.
Esta quarta-feira, que podia perfeitamente ser apenas a primeira quarta-feira do mês de fevereiro de 2020, é também o dia em que Cristiano Ronaldo completa 35 anos. Um dia que será normal e banal para quase todos nós, uma outra quarta-feira das dezenas que existem ao longo de um ano, mas onde seremos confrontados com uma ideia que muitas vezes nos escapa: a ideia de que Cristiano Ronaldo já nos entra casa adentro pelas televisões, pelos jornais e pelas rádios há quase 20 anos.
Para nós, portugueses, Cristiano — que com o tempo deixou de ser apenas Ronaldo e passou a ser apenas Cristiano, como se progressivamente tivesse entrado na família para se tornar um elemento permanente nos jantares, na Consoada e na noite de Ano Novo — será sempre as lágrimas na final do Euro 2004. Será sempre o primeiro português no Manchester United. Será sempre as Bolas de Ouro, as Ligas dos Campeões, a apresentação megalómana ao lado de Di Stéfano e Eusébio. Será sempre as lágrimas de tristeza da final do Euro 2016, os empurrões a Fernando Santos depois do golo de Éder e as lágrimas de alegria, em conjunto com os braços levantados para o céu e um grito que ecoou durante vários segundos em Paris quando o apito final soou.
Aos 15 anos, Cristiano ainda não se tinha estreado na equipa principal do Sporting. Aos 20, já estava na Premier League. Aos 25, já tinha saltado para Espanha, assim como aos 30 ainda estava no Real Madrid. Esta quarta-feira, à chegada aos 35 anos, está em Itália, a atravessar um dos melhores períodos competitivos dos últimos dois anos e a ganhar gás para mais um Europeu. A retrospetiva, para além de ajudar a perceber que, de cinco em cinco anos, Cristiano Ronaldo está quase sempre num sítio diferente, mostra também que o capitão da Seleção Nacional é a personalização da evolução na continuidade. Cristiano não mudou nem envelheceu: Cristiano evoluiu e cresceu.
15 anos, 2000
Aos 15 anos, no início do milénio, Cristiano Ronaldo estava já há três no continente, em Lisboa e em Alcochete. Para trás tinham ficado o Andorinha e o Nacional, assim como a Madeira, e o jovem jogador começava a dar nas vistas da formação do Sporting. Em 2000, já tinha acordado com a mãe que iria deixar os estudos para se focar unicamente no futebol, plenamente confiante de que o próprio futuro passava por ser profissional no desporto.
Foi por volta dos 15 anos que o jogador português foi diagnosticado com uma arritmia cardíaca que, em teoria, o obrigaria a deixar o futebol. Foi operado, numa cirurgia que reduziu o ritmo cardíaco em alturas de descanso, teve alta horas depois de sair da sala de operações e voltou aos treinos passado um par de dias. No ano seguinte, já com 16 anos, estreou-se na equipa principal do Sporting pela mão de László Bölöni, que tinha ficado impressionado com o que havia visto nos jogos dos juvenis, e tornou-se o primeiro jogador da história dos leões a representar os Sub-16, os Sub-17, os Sub-18, a equipa B e a equipa principal numa única temporada.
Marcou dois golos na estreia na Primeira Liga, numa vitória contra o Moreirense, esteve na agenda do Liverpool e do Barcelona e chegou a encontrar-se com Arsène Wenger em Londres, para negociar uma eventual ida para o Arsenal. O dia decisivo no início da carreira de Cristiano Ronaldo, porém, só apareceria em agosto de 2003, na inauguração do novo Estádio José Alvalade. Alex Ferguson saiu impressionado com o jogador português e deixou Lisboa e Alvalade com a ida de Ronaldo para o Manchester United praticamente assegurada.
20 anos, 2005
Aos 20 anos, Cristiano Ronaldo já estava em Inglaterra, em Manchester e na Premier League há ano e meio. Há temporada e meia que o jogador português já carregava nas costas o ‘7’ que tinha sido de Best, de Cantona e de Beckham e há temporada e meia que já era um dos preferidos dos adeptos. O início de 2005 trouxe mesmo dois dos melhores jogos que o avançado acabaria por fazer em 2004/05, ao registar um golo e uma assistência contra o Aston Villa e bisar contra o Arsenal. Foi também com 20 anos que acabou por inscrever o nome na história do Manchester United, ao assinar o golo 1.000 do clube na Premier League, num jogo contra o Middlesbrough.
Apesar de estes terem sido anos vazios de título para os red devils (à exceção da Taça de Inglaterra em 2003/04, a única que Cristiano Ronaldo acabaria por conquistar), a verdade é que a importância do jogador português na equipa era já inegável e começava a causar ondas de impacto nos restantes países, com os rumores de transferências e interesses a adensarem-se. Foi também com 20 anos que acabou por assinar uma extensão de contrato com o clube inglês que o mantinha, em teoria, ligado ao Manchester United até 2010 e até aos 25 anos.
Na Seleção Nacional, Cristiano já tinha passado pela desilusão do Euro 2004 — onde já foi escolha regular de Luiz Felipe Scolari e integrou mesmo a equipa ideal do torneio, com dois golos e duas assistências –, era nome certo na convocatória do Mundial da Alemanha em 2006 e já uma das figuras no pós-Figo, Costa e companhia. A braçadeira, essa, ainda era privilégio de outros nomes. Mas apenas por pouco tempo. Em 2004/05, Cristiano Ronaldo marcou nove golos ao longo de 50 jogos.
25 anos, 2010
Com o avançar na cronologia, os saltos temporais tornam-se progressivamente mais significativos. Em 2010, no início da década passada e no final da anterior, Cristiano Ronaldo já estava no Real Madrid. Já tinha no currículo três Premier Leagues, uma Liga dos Campeões, um Mundial de Clubes e a primeira das cinco Bolas de Ouro que entretanto ganhou. Já se tinha tornado, no ano anterior, a então maior transferência de sempre (o Real Madrid pagou 94 milhões de euros ao Manchester United), já tinha sido o protagonista da então maior apresentação da história (80 mil pessoas encheram o Santiago Bernabéu, superando o recorde do primeiro dia de Maradona no Nápoles, que tinha 25 anos) e até já usava o ‘7’ que tinha sido de Raúl, depois de ter ficado com o ‘9’ na primeira temporada em Espanha porque o avançado espanhol ainda estava no clube.
A ida para Madrid, ainda que inegavelmente mais mediática do que as restantes, acabou por fazer parte de um pacote de renovação do clube que tinha como objetivo criar uma nova geração de galácticos. Os primeiros anos, porém, foram parcos em conquistas e realizações. Ainda assim, foi com 25 anos que se tornou o primeiro jogador de sempre a marcar nos quatro primeiros jogos pelo Real Madrid, assinou pela primeira vez um póquer (contra o Racing Santander) e marcou em seis partidas seguidas, num total de 11 golos, o máximo que já havia marcado num único mês.
Na Seleção Nacional, já era capitão desde 2007, já tinha estado no Mundial 2006 e no Euro 2008 e iria estar, precisamente com 25 anos, no Mundial da África do Sul. A meio da terceira década de vida, Cristiano Ronaldo estava no terceiro clube, no terceiro país e na terceira liga: mas o melhor, o maior e o mais espetacular estava ainda por vir. Em 2009/10, Cristiano Ronaldo marcou 33 golos ao longo de 35 jogos.
30 anos, 2015
Este é o único salto temporal em que Cristiano Ronaldo não muda de clube. Dos 25 para os 30 anos, manteve-se em Madrid e no Real, enquanto figura maior de um grupo de jogadores que se estava a preparar para dominar o futebol europeu durante alguns anos. Durante esses cinco anos, acrescentou ao palmarés uma liga espanhola, duas Taças do Rei, uma Supertaça de Espanha, uma Liga dos Campeões, uma Supertaça Europeia, um Mundial de Clubes e outras duas Bolas de Ouro, estas consecutivas. Tinha subido, talvez pela primeira vez de forma consistente e duradoura, ao topo que sempre ambicionou.
Foi também neste período, na primeira metade da década passada, que Cristiano Ronaldo acabou por assumir um papel nem sempre consensual de figura pública para lá dos relvados — não só em Portugal como no mundo inteiro. A vida pessoal do jogador, desde as relações amorosas ao dia-a-dia da família Aveiro, acabou por se tornar um motivo de interesse tão grande ou maior do que os golos e as assistências e as jogadas deliciosas. Ronaldo, CR7, tornou-se uma marca no verdadeiro significado da palavra: surgiram as lojas, o museu, a autobiografia, o documentário, os milhões feitos em publicidade. De repente, se dúvidas existissem, era claro que Cristiano Ronaldo já não era só nosso.
Foi aos 30 anos, em 2015, que o jogador português chegou aos 61 golos, um registo máximo na carreira que lhe valeu a conquista da Bota de Ouro pelo segundo ano consecutivo (e também pela última vez). Na Seleção, há cinco anos, Ronaldo já tinha estado no Euro 2012 e no Mundial 2014, já tinha ultrapassado o registo de Pauleta para se tornar o melhor marcador da história de Portugal e também já tinha superado a marcar de Luís Figo para ser agora o português mais internacional de sempre. Mas o melhor, como quase sempre na história de Ronaldo, ainda estava por vir. Em 2014/15, Cristiano Ronaldo marcou 61 golos ao longo de 54 jogos.
35 anos, 2020
Quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020. 35 anos. Nos últimos cinco, ouvimos Cristiano Ronaldo falar pela primeira vez daquilo que nenhum de nós quer ouvir: o final da carreira. Já garantiu que não quer ser treinador, já garantiu que não quer ficar umbilicalmente ligado ao futebol, já garantiu que não se vê como dirigente e até já abriu a porta a uma carreira em Hollywood. Mas foi também nos últimos cinco anos que vimos Cristiano Ronaldo, tanto no clube como na Seleção, chegar onde ainda não tinha chegado.
Nos últimos cinco anos, conquistou três vezes consecutivas a Liga dos Campeões, mais uma liga espanhola, uma Supertaça de Espanha, uma Supertaça Europeia, dois Mundiais de Clubes e outras duas Bolas de Ouro. Tornou-se, a par de Bale e de Benzema, um terço de uma frente de ataque letal que com Zidane no banco de suplentes tomou conta da Europa durante três anos seguidos: assumiu o estatuto de Mr. Champions, é agora o melhor marcador da história da competição europeia e parece sempre superar-se quando o hino mais aguardado do futebol ecoa nos estádios. Marcou aquele golo, atravessou uma acusação de violação e teve problemas com o Fisco espanhol.
A ciência explica (mas por pouco) aquele golo de Cristiano Ronaldo
Mas foi também nos últimos cinco anos que Cristiano Ronaldo conquistou aquele que é, nas palavras do próprio, o título mais importante da carreira. A 10 de julho de 2016, depois de um final da qual foi excluído entre lágrimas e uma borboleta premonitória, levantou em êxtase o troféu de campeão da Europa. 12 anos depois da desilusão da Luz, 12 anos depois das primeiras lágrimas com a camisola da seleção portuguesa, 12 anos depois de ter emocionado um país com a própria emoção, Ronaldo foi treinador ao lado de Fernando Santos, foi capitão quando Éder rematou, foi todos nós quando o jogo acabou.
Nos últimos cinco anos, trocou o Real Madrid pela Juventus, deixando orfã uma legião de fãs e adeptos que ainda olham para ele como o melhor exemplo daquilo que representa o clube espanhol. Em Turim, foi à procura da Liga dos Campeões que escapa ao clube italiano há mais de 20 anos: mais do que isso, foi à procura da prova final de que ganha tudo em qualquer sítio. Já leva na bagagem uma liga italiana e uma Supertaça de Itália e vive, atualmente, o melhor período competitivo desde que mudou de clube, com nove jornadas consecutivas a marcar e um lugar nos melhores marcadores das principais ligas europeias. Atualmente, em 2019/20, Cristiano Ronaldo leva 22 golos ao longo de 27 jogos. Mas como sempre na carreira do jogador português, o melhor ainda pode estar por vir.