Por norma, as testemunhas do Ministério Público chegam ao Tribunal de Monsanto pouco antes das 9h30, a hora aprazada para o início de cada uma das sessões do julgamento do caso de Alcochete; neste caso, a testemunha, única do dia (Petrovic adiou o depoimento previsto para esta tarde por Skype), chegou cerca de meia hora antes. Por norma, as testemunhas do Ministério Público costumam fazer um compasso de espera antes de entrarem pela porta que dá acesso à sala, a mesma utilizada por arguidos e jornalistas; neste caso, a testemunha, chegada às 9h06, entrou pouco depois e antes da hora. Por norma, as testemunhas do Ministério Público não têm proteção especial no momento da entrada (até porque são raros os dias em que os arguidos entram à hora marcada); neste caso, houve um cuidado extra por parte das autoridades para garantir que não haveria qualquer tipo de problema. Esta sexta-feira seria um dia diferente. E tudo pela presença de Frederico Varandas, neste caso assistente em representação do Sporting – apesar de ter sido indicado como testemunha não só do Ministério Público mas também de alguns dos arguidos, nomeadamente o antigo presidente Bruno de Carvalho.
O agora presidente do Sporting, que à data da invasão da Academia era o diretor clínico dos leões, era a última “testemunha chave” entre os nomes indicados pelo Ministério Público depois das audições de nomes como Jorge Jesus, Rui Patrício, William Carvalho, Acuña, Battaglia ou André Geraldes. Mas, até mais do que poderia relatar sobre o antes e durante o ataque em Alcochete, era sobre o depois que se deveriam centrar as atenções, até por tudo aquilo que se foi passando nos dias anteriores a esta 26.ª sessão, nomeadamente as intervenções do advogado de Bruno de Carvalho, Miguel A. Fonseca. “Profissão? Médico militar”, começou por referir. “E presidente da SAD e do clube, sim. Na altura era o diretor clínico do Sporting, desde agosto de 2011, não só do futebol profissional mas de todo o universo Sporting que incluiu o futebol de formação e as modalidades”, acrescentou.
“Estava como sempre no meu gabinete da Academia. Os jogadores antes costumam estar no balneário e presta-se ajuda no aquecimento, a ligar pés, a tratar algumas feridas. Chego sempre uma hora, uma hora e meia antes e estou no meu gabinete. Percebi que algo anormal estava a acontecer, uns barulhos fora dos normais, murros, pontapés a portas. Saio do meu gabinete, que fica a alguma distância do balneário, entro no corredor, vejo algumas pessoas a correr em sentido contrário, elementos da equipa técnica, a virem para a zona do meu gabinete. Havia uma fumarada tremenda, o balneário por si só é escuro e a visibilidade era muito reduzida por causa do fumo das tochas. Quando viro à esquerda vejo um elemento encapuzado, acende uma tocha e a cinco ou seis metros atira na minha direção, desvio-me, acerta que me apercebi pelo grito no Mário Monteiro. Quando estou para entrar no balneário, vejo o Rollin Duarte a agarrar o Bas Dost, vejo-o com o mão na cabeça, vamos por outro corredor por trás, acompanho-os à sala de enfermagem, vejo o doutor Virgílio Abreu…”, disse de uma assentada à primeira questão da juíza Sílvia Rosa Pires, que por ser assistente “centralizava” todas as perguntas.
“Sai um senhor, neste caso encapuzado, que tinha saído do vestiário, acende a tocha e vai na direção da saída. Quando eu agarro no Bas Dost, olho para a direita, vejo a pessoas a caminhar lá dentro, também encapuzados, aí já estava o alarme sonoro também, e acompanho o jogador. Vejo o doutor Virgílio Abreu bastante alterado com o que se estava a passar e vamos para a sala de enfermagem”, prosseguiu. “A minha prioridade era acompanhar o Bas Dost. Ouvi gritos, vi depois alguém a gritar ‘Se não ganham o próximo jogo vão morrer ou mato-vos’. Quando chegamos à zona do balneário havia muita confusão, barulho, gritos mas lembro-me dessa frase. Só vi uma pessoa de cara destapada, de relance, de lado, que estava dentro do balneário com uma atitude desafiadora”, atirou, acrescentando ainda ter ficado com a perceção de que quem estava à porta parecia querer evitar qualquer saída.
Perante a descrição exaustiva mas sem as referências necessárias a nível de espaço, Frederico Varandas deslocou-se depois à mesa do coletivo de juízas para explicar na planta da ala profissional do futebol leonino na Academia o percurso que tinha feito, num momento acompanhado por vários advogados de arguidos – que não Miguel A.Fonseca, representante de Bruno de Carvalho, que optou por permanecer no seu lugar. E o agora presidente dos leões acabou por fazer parte do testemunho nessa zona, ao contrário do que tem acontecido com outros casos que costumam indicar onde estavam, o que viram e responder às questões já no seu lugar.
“Depois voltei a fazer o mesmo percurso e à medida que vou fazendo o percurso ouço o ruído de pessoas a sair. Começo a encontrar alguns jogadores. Já não vi aí ninguém estranho ao Sporting, vejo só jogadores e staff. Alguns tinham-se refugiado no ginásio, vejo se havia mais alguém ferido, que não havia. Vejo o vestiário virado do avesso, alguns jogadores junto do seu cacifo de pé, roupa espalhada por todo o lado, o garrafão de água no chão, vários jogadores em pânico. Vejo depois que faltam pessoas, não vi ninguém da equipa técnica, não encontrava dois fisioterapeutas… A seguir aparece o Ludovico com a cara marcada, inchada que até achava que tinha levado um murro mas disse que lhe atiraram, depois encontrei o Raul José, o Jorge Jesus ferido no lábio, o Manuel Fernandes… Vi que o Mário Monteiro tinha a camisola queimada mas não pediu auxílio”, disse.
“Estavam depois os dois de volta do Bas Dost na sala de enfermagem, o Carlos Mota e o doutor Virgílio Abreu, sendo que quem manda é o médico e estava lá o doutor Virgílio Abreu. De cara destapada vi só uma pessoa, que tinha qualquer coisa na mão mas não percebi o que era. Se vi portas danificadas? Confesso que não tenho memória se havia portas danificadas”, concluiu na parte das questões feitas por Sílvia Rosa Pires.
Seguiu-se Miguel Coutinho, advogado que tem representado o Sporting enquanto assistente do processo, que fez algumas perguntas que costumam surgir através da procuradora do Ministério Público perante as testemunhas ligadas à equipa que vão prestando depoimento, a começar pelo sentimento que se viveu após o ataque e seguindo não só para o encontro com o Marítimo na Madeira mas também as reuniões na véspera da invasão.
“Imediatamente a seguir ao que aconteceu havia um sentimento geral de revolta, de desespero de muitas pessoas, pânico, completamente chocados. Nos dias seguintes, e estávamos numa semana de final, falei com o treinador mas os jogadores recusaram-se a regressar à Academia e a treinar. Nessa altura ninguém pensava muito no jogo, só lá para quinta-feira é que o treinador me pediu para tentar convencer jogadores porque era uma final também importante para eles. Decidiram que só treinavam na véspera, recusaram-se a ir à Academia e foram treinando por si. Uns retiraram-se para o norte, a outros como Palhinha, Podence, Bruno Fernandes, disponibilizei a minha clínica na área de Lisboa. Fui falando com os jogadores, para não perderem o condicionamento físico. Muitos não queriam voltar, muitos não se interessavam pelo jogo”, começou por destacar.
“Na final da Taça, o ambiente era muito fora. A equipa juntou-se no próprio dia do jogo num hotel em Cascais. Senti os jogadores com vontade, queriam acima de tudo vencer aquele jogo, mas do ponto de vista emocional não estavam preparados e à primeira contrariedade iam ao chão. Foi isso que aconteceu. O adversário na primeira oportunidade faz um golo e a partir daí… O Bas Dost? Foi sendo acompanhado, também se recusou a treinar porque não tinha condições. Mais tarde fui a casa dele tirar os pontos, já tinha contratado segurança privada que estava à porta da sua casa. Foram mais os jogadores que pediram segurança, como o William. Não me recordo de mais mas o Dost na altura disse que muitos tinham pedido”, acrescentou, antes de recordar o durante e depois da deslocação à Madeira quando Sporting defrontou o Marítimo na última jornada da Liga.
“Os jogadores foram agradecer ao topo, os adeptos começaram a insultar. Lembro-me do Rui Patrício vir para trás e também fui para dentro. No aeroporto também estive. Apercebi-me que, quando entrámos no edifício, na zona onde temos de mostrar o bilhete, houve uma situação anormal com jogadores a mostrar o bilhete e ao lado elementos da claque. Estava o Fernando Mendes, pareceu-me que estava ligeiramente alcoolizado e entrou numa discussão acesa com Acuña. A imagem que tenho é o Battaglia meter-se e terem de ser separados. Fui tirar os jogadores daquela confusão, nomeadamente o Battaglia. A polícia e os spotters estavam ao lado e ajudaram a acalmar. Que palavras trocaram? ‘Vão ver com quem é que estão a brincar’ e muitos palavrões como ‘filho da p***’, com o Fernando Mendes a insultar Acuña e Battaglia”, frisou o então diretor clínico.
“Na reunião que houve na véspera em Alvalade estava o staff, o departamento clínico, os secretários técnicos, os roupeiros, o Manuel Fernandes. Lembro-me de Guilherme Pinheiro, Rui Caeiro, Carlos Vieira, Bruno de Carvalho e André Geraldes. Acho que essa reunião era para confrontar os funcionários. Foi uma reunião surreal. Se o futebol é um mundo à parte, esta foi uma reunião à parte disso. Estava na primeira fila de frente, ao lado Virgílio Abreu e Manuel Fernandes. O que se disse? Peço desculpa pela linguagem mas…”, arrancou, antes de especificar algumas das frases de Bruno de Carvalho nesse encontro que marcaria também o resto da sessão.
“Disse que estava farto que lhe metessem o dedo no c*, que a Taça valia tanto como um furúnculo que tinha no c*. Depois virou-se para o Paulinho e disse ‘Não olhes para mim com um ar preocupado, vais tratar da relva’. E continuou: ‘Isto vai mudar daqui para a frente, tudo vai mudar, amanhã quero toda a gente no treino à tarde’ e com uma forma desafiadora, com o dedo indicador esticado para toda a plateia, correndo por todos, disse ‘Aconteça o que acontecer amanhã quero ver quem é que continua comigo’. O que percebi? Tem um contexto, percebi que algo de anormal estava a acontecer mas o que tinha vivido tinha sido tão anormal… Interpretei que algo de anormal iria acontecer. Houve três reuniões nesse dia, o Jorge Jesus ligou-me no final da primeira e disse ‘Doutor acabou, fui despedido’. Achava que era para informar isso a reunião. Mas duas ou três semanas antes tinha assistido a coisas inacreditáveis do doutor Bruno de Carvalho, por isso…”, comentou.
Ainda a Miguel Coutinho, a quem a juíza não permitiu que fosse perguntado o impacto que a invasão teve no Sporting porque “estão a ser julgadas pessoas e não instituição”, Frederico Varandas falou “numa tensão fora do normal entre jogadores e adeptos”. “Isso era o que tinha sentido. No dia a dia, na chegada ao jogo do Marítimo. Tão agudizado, nunca se tinha sentido. Mas nunca esperei uma situação daquelas, isso não”. “A menor ferida que Bas Dost leva é aquela da cabeça, a principal ferida foi o trauma para a vida toda. Muitos daqueles jogadores são miúdos, muitos não jogam no país deles, não têm a família cá ao seu lado, não percebem essa realidade e pensam que pode acontecer outra vez. Infelizmente podem pensar assim”, rematou nessa fase.
Ao advogado Aníbal Pinto, o atual presidente dos leões continuou a deixar algumas “farpas” ao antigo número 1 do do Sporting. “Há sempre momentos de tensão mas quem está à frente do clube tem de saber apagar, não pode deitar gasolina em cima da fogueira. A Direção protegia as claques. Um exemplo: já vi o Sporting ficar em sétimo lugar e nunca vi este estado de intolerância com os jogadores. O jogo contra o Benfica em casa, não é normal arremessarem tochas para cima do nosso guarda-redes… Em sete anos, nunca vi objetos atirados para cima do guarda-redes do Sporting. Lembro-me de uma saída da garagem que o Jorge Jesus teve de acalmar. Também não acho normal a proximidade de elementos da claque dos jogadores a ameaçar e insultar no aeroporto da Madeira”, referiu enquanto a juíza ia pedindo silêncio na sala até parar mesmo as perguntas.
– O que é que se passa hoje que está tudo tão indisciplinado? Eu sei que vieram todos… Bem, vou-me escusar de dizer o que penso”, atirou.
Varandas explicou ainda o porquê de Dost ter sido convocado apesar de estar “sem condições para jogar”. “O Bas Dost estava fisicamente estava apto, emocionalmente como toda a equipa não estava em condições. O Jorge Jesus falou com o Dost e o jogador disse que queria jogador. Se um treinador quiser jogar com um jogador lesionado e ele aceitar, joga”, salientou. “O Dost teve apoio psicológico. Falei com os atletas sobre isso, perguntei se alguém tivesse alguma necessidade estavam disponíveis mas o sentimento era mais de insegurança”, completou antes das últimas questões de Miguel A. Fonseca, advogado de Bruno de Carvalho no processo.
– Disse que o presidente falou para intimidar. Ficou intimidado?
– Eu? Não. Foi tudo muito estranho, a própria pessoa também…
– Já percebi que o discurso vem preparado (…) Perante aquilo, qual foi a resposta que deu?
– Eu? Zero. Acho que nunca ninguém respondeu.
– Ou seja, de homem para homem, olhos nos olhos, este senhor silenciou-se. Já tinha esta ideia mas nada como perguntar…
O advogado do ex-líder falou ainda da reação do público em Alvalade na vitória do Sporting frente ao PSV por 4-0 a 28 de novembro de 2019, antes de voltar a entrar em diálogo (quase) direto com Varandas.
– Tem alguma coisa pendente com a Juventude Leonina ou com Bruno de Carvalho?
– Não.
– Tem alguma ação com Bruno de Carvalho?
– Não.
– Há algum litígio por causa da destituição de Bruno de Carvalho?
– Não.
– E com a Juventude Leonina?
– Não. Havia uma protocolo de cooperação que deixou de haver…
– Proibiu a entrada da Juventude Leonina no estádio ou no pavilhão?Não proibi ninguém, nem o Fernando Mendes nem nenhum outro elemento.
A manhã terminou com vários advogados a pedirem alteração das medidas de coação de alguns dos arguidos. O advogado Miguel Matias pediu que o arguido Afonso Ferreira fosse libertado. Já Amândio Madaleno pediu o mesmo para Sérgio Costa e Elton Camará (este último, que está em prisão preventiva, por “problemas com a alimentação”). Também o advogado Paulo Camoesas pediu que Bruno Jacinto, o então Oficial de Ligação aos Adeptos, tivesse apenas apresentações periódicas. Já advogado Rocha Quintal quis que fossem estudadas as condições para que Nuno Mendes, ou Musta, líder da Juventude Leonina, pudesse ficar em prisão domiciliária.
Neste momento já só faltam ouvir três testemunhas arroladas pelo Ministério Público, Bas Dost, Petrovic e Fredy Montero (que ainda não respondeu às solicitações). Até agora só o arguido Bruno Jacinto falou, logo na primeira sessão, mas outros elementos manifestaram vontade de falar no final do julgamento, com Miguel A. Fonseca a referir que Bruno de Carvalho gostaria de ser o último a ter a palavra no Tribunal de Monsanto.