Não há muitas perguntas que se possam fazer sobre o novo coronavírus em que a resposta seja fácil ou que esteja na ponta da língua. Esta é mais uma: pode a BCG, a vacina contra a tuberculose, ajudar a combater o coronavírus? A resposta é um “talvez”, mas pelo menos quatro países vão fazer ensaios clínicos para tentar transformar a dúvida numa certeza.

Num momento em que o “não funciona”, “não combate”, “é ineficaz” está garantido, equipas de investigadores de todo o mundo procuram encontrar uma vacina que seja realmente eficaz contra a infeção por SARS-CoV-2. As tentativas passam não só por criar novos compostos, mas também por testar substâncias que já funcionaram contra outros agentes infecciosos.

Cem anos do Bacilo de Calmette-Guérin (BCG)

Se em alguns laboratórios se recorre à engenharia genética, noutros olha-se para o passado, como para o Bacilo de Calmette-Guérin (BCG), uma vacina que em 2021 fará cem anos de vida. Em Portugal é dada aos recém-nascidos para prevenir a tuberculose.

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Na Austrália, Países Baixos, Alemanha e Reino Unido há equipas a postos para dar início aos testes clínicos. A ideia é perceber se o BCG acelera o sistema imunológico de tal forma que ajude um paciente infetado a combater a doença com maior facilidade. Ou se, em última análise, é capaz de evitar a infeção por completo.

“Embora tenha sido originalmente desenvolvido para tratar a tuberculose, e de ainda hoje ser administrado a mais de 130 milhões de bebés todos os anos com esse propósito, o BCG aumenta a linha da frente da imunidade humana, treinando-o para responder aos germes com maior intensidade”, lê-se no comunicado do instituto que pretende vacinar 4.000 profissionais de saúde.

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Nigel Curtis, que lidera a equipa australiana, foi claro sobre as suas expectativas: “Esperamos ver uma redução da prevalência e da severidade dos sintomas de Covid-19 nos profissionais de saúde que recebam a vacina BCG”, explicou, acrescentando a importância de avançar para o ensaio o mais rapidamente possível.

Nos Países Baixos, duas universidades fazem pesquisa idêntica. Na Universidade Radboud e na Universidade de Utrecht os ensaios também se focam em médicos e enfermeiros, embora a amostra seja mais pequena: pretende-se testar se mil profissionais de saúde, depois de vacinados, terão um impulso do sistema imunitário capaz de mitigar os efeitos do coronavírus, escreve o The Brussels Times.

Onde atua? No sistema imunitário

As potencialidades do BCG no combate ao coronavírus foram abordadas num artigo da revista especializada Science, a 23 de março. Para os defensores do BCG no combate ao SARS-CoV-2 há uma diferença importante na atuação deste bacilo em relação a outras vacinas. Se outras substâncias aumentam respostas imunes específicas sobre um patógeno concreto, o BCG parece também aumentar a capacidade do sistema imunitário em combater outros patógenos para além daquele que seria esperado — a bactéria da tuberculose.

Essa foi a conclusão dos estudos dos dinamarqueses Peter Aaby e Christine Stabell Benn, publicados ao longo de várias décadas, mas aos quais a OMS nunca reconheceu grande credibilidade. Nos últimos anos, novos estudos têm sido desenvolvidos no mesmo sentido, como o trabalho de Mihai Netea, especialista em doenças infecciosas do Centro Médico da Universidade Radboud, onde vão decorrer ensaios clínicos com a vacina BCG.

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Um dos seus campos de investigação é exatamente o de como o BCG protege contra outras infeções, já que o cientista acredita que esta vacina pode revolucionar a forma como o mundo científico olha para o funcionamento do sistema imunitário. “É como se a vacina BCG criasse marcadores para o sistema imunológico usar mais tarde”, disse Netea, citado pela Bloomberg.

Mihai Netea já angariou 400 profissionais de saúde para o seu estudo e espera, em breve, começar um idêntico em pacientes com mais de 60 anos.

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A última esperança: um novo estudo (ainda não revisto pelos pares)

Para dar ânimo aos investigadores, um novo estudo foi publicado, a 24 de março, no medRxiv. O site funciona como montra para estudos científicos que ainda não passaram pela revisão de pares (peer review), passo fundamental para que seja reconhecida credibilidade a um artigo científico.

O que este novo estudo sugere é que há uma correlação entre os países onde existe uma política universal de vacinação BCG e maior morbilidade e mortalidade por Covid-19. A hipótese é colocada por uma equipa do Departamento de Ciências Biomédicas da Faculdade de Medicina Osteopática do Instituto de Tecnologia de Nova Iorque, e Gonzalo Otazu, principal autor do estudo, contou à Bloomberg que começou a trabalhar na hipótese depois de perceber o baixo número de casos no Japão.

No entanto, a hipótese levantada tem sido muito criticada pela comunidade científica, até no próprio site do medRxix, e Eleanor Fish, professora do departamento de imunologia da Universidade de Toronto, disse à Bloomberg que “leria os resultados do estudo com incrível cautela”.

À mesma publicação, Gonzalo Otazu disse que já está a trabalhar numa segunda versão do estudo depois de ter ouvido as preocupações de vários especialistas, tendo também enviado o documento para um processo formal de revisão na revista Frontiers in Public Health.

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