O governo já tem luz verde para libertar prisioneiros, embora com alterações à proposta original, no combate à pandemia, apesar dos votos contra da direita e a abstenção do PAN e depois de um debate com acusações de “mentira”, “demagogia”, e com André Ventura a ser colado à extrema-direita.

Também a proposta do governo que pretende aumentar a capacidade das autarquias na resposta à pandemia foi aprovada. E se o PSD anunciou logo que ia chumbar todas as 100 propostas dos partidos, foi o próprio PS a dar a mão a Bloco e PCP nas propostas de suspensão de cortes de água, luz, gás e comunicações, o que inclui telefone e internet. Não foram as únicas que saíram aprovadas desta maratona parlamentar.

Aprovadas a libertação de presos, mas com alterações. Quais?

Na votação na especialidade sobre a proposta de lei do Governo para a libertação de reclusos foram aprovadas alterações sugeridas pelo PS, PCP e CDS-PP. Quem cometeu crimes graves (homicídio, violação ou violência doméstica) não pode beneficiar de indultos. E antes de serem libertados, presos vão ter se seguir orientações da DGS, não ficando claro para já se isso diz respeito à realização de um teste prévio à Covid-19, ou se diz respeito à quarentena obrigatória. Também quem cometeu crimes contra membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas dos serviços prisionais fica excluído dos perdões. E qualquer preso que volte à prisão depois de ter vindo para o exterior, deve ser sujeito a uma quarentena de 14 dias.

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Assim, no que se refere aos indultos, por proposta do PS, ficam excluídos desta possibilidade reclusos condenados pelos mesmos crimes que já não lhes permitiam beneficiar de perdão (como homicídios, violações ou crimes de violência doméstica, entre outros). Entre as alterações do PCP aprovadas, acrescentou-se no diploma que “compete aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes” proceder à aplicação dos perdões.

Já na questão dos perdões, foi aprovada uma proposta do CDS para que fiquem excluídos os “condenados por crimes cometidos contra membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários e guardas dos serviços prisionais”, no exercício de funções.

Foram também acrescentados, por proposta do PS, artigos que preveem “o reexame” dos pressupostos de quem esteja em prisão preventiva – sobretudo no caso de reclusos com 70 anos ou mais – e determina-se que a libertação de reclusos “é antecedida dos procedimentos indicados pela Direção-Geral de Saúde”, sem se especificar se se trata da realização de testes ou imposição de quarentena.

Foi também aprovada, por proposta do CDS, a quarentena obrigatória dos reclusos que voltem ao meio prisional. “Em qualquer das circunstâncias que, nos termos da presente lei, ditam o regresso do condenado ao meio prisional, há lugar ao cumprimento prévio de um período de quarentena de 14 dias, nos termos que tenham sido determinados pela Direção-Geral dos Serviços Prisionais e Reinserção”, lê-se.

Fixa-se ainda, também por sugestão do PS, que este regime excecional cessa a sua vigência quando terminar “a situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento” da doença covid-19.

Ministra lembra que Cavaco também perdoou

O debate mais duro desde que foi decretado o estado de emergência foi mesmo o desta quarta-feira sobre o “regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia COVID-19. Traduzindo: libertar prisioneiros para evitar que o surto chegue perigosamente às populações prisionais. Quanto a números, a figura do perdão, explicou a ministra da Justiça, será aplicada a cerca de mil reclusos, enquanto os restantes vão gozar de licenças mais longas (passam de 8 para 45 dias) de forma a diminuir a população prisional durante este período. No total é que se chegará ao total de mais de dois mil reclusos que sairão das prisões.

A ministra da Justiça alertou que “muitos dos estabelecimentos, sobretudo os mais antigos, não têm condições que permitam assegurar o distanciamento social idóneo para evitar situações de contágio”. Francisca Van Dunem alertou que, pelo conhecimento que o governo tem, “a infeção de um recluso, num estabelecimento de grandes dimensões poderá conduzir no espaço de uma semana ao contágio de 200 e que a partir deste momento o contágio evoluiu em proporção geométrica.”

A governante diz que a escolha do governo é “equilibrada no tempo e no modo” e que desenhou “medidas cautelosas” que não descolam dos “princípios gerais do regime penal e de execução de penas”. Francisca Van Dunem — num tiro ao PSD que estava contra a medida tal como apresentada pelo Governo — garantiu que o “perdão confina a libertação a padrões de baixo risco” e lembrou “o perdão foi concedido na democracia portuguesa pelo menos três vezes: nomeadamente em 1986, 1994, na altura era primeiro-ministro Cavaco Silva, em 1999, com António Guterres como primeiro-ministro sendo que em nenhuma das ocasiões estávamos perante uma pandemia”. A ministra garantiu ainda que tudo será feito com “sabedoria” e sem “acrescentar pânico ao pânico”.

O PCP, através do deputado António Filipe, manifestou o apoio à iniciativa e também atirou indireta ao PSD: “Não hesitamos. A demagogia não se enfrenta cedendo cobardemente aos demagogos.” O deputado do Bloco de Esquerda, José Manuel Pureza, também apoiou a medida e advertiu que reclusos e guardas “são pessoas” e o que está em causa é a saúde. E atirou a André Ventura: “Para excitar as massas nas redes sociais a extrema-direita não quer saber da saúde dos presos, dos guardas, dos funcionários, uma infâmia.” O PEV também apoiou a medida, mas pediu “equidade” e “equilíbrio”. A deputada não-inscrita Joacine Katar-Moreira elogiou a “lucidez e a humanidade” da proposta do Governo.

PSD falou em “redução arbitrária”, Ventura acusado de mentiroso

O PSD que tem recusado fazer oposição ao governo, não hesitou em fazê-lo nesta matéria. O vice-presidente do partido, André Coelho Lima, afirmou que “o perdão de penas não é a saída necessária para o que se visa atingir” e defendeu que o problema se resolvia com a “substituição de uma pena de prisão efetiva por prisão domiciliária, dirigindo-se aos grupos de risco”. Sobre isto, o PS responderia que “não há meios eletrónicos” para o fazer. O deputado concluiu ainda que “a proposta não promove ação humanitária, mas redução arbitrária”.

O deputado do Chega, André Ventura, já tinha feito uma diligência para intervir sobre o assunto no início do debate e tentou tirá-lo da agenda alegando que era inconstitucional. O ponto não foi retirado. Então, na sua intervenção Ventura afirmou que a “lei é uma infâmia”, dizendo que “propõe-se libertar 10% da população prisional” numa proposta que “não faz análise sobre se são reincidentes, se podem voltar a cometer crimes, se há ou não perigosidade social”.

Ventura considerou que se “há um perdão com critério, não temos indulto com critério. Se tiver 65 anos um violador sexual pode ser libertado.” No momento em que Ventura o disse, várias bancadas gritaram: “Mentira, mentira, mentira”. A proposta acabaria por ser votada com alterações que não constavam do documento original, nomeadamente que crimes graves (homicídio, violação ou violência doméstica) não podem beneficiar de indultos.

Para o deputado do Chega este não era “um perdão humanitário, é uma opção ideológica pela libertação de pessoas que devem estar na cadeia.” José Manuel Pureza acabaria por verbalizar a acusação de microfone aberto, alertanto para a “desumanidade e a irresponsabilidade do populismo da extrema-direita que não hesita em recorrer à mentira e ao terror contra saúde pública de todos”.

Houve também quem colocasse condições para votar a favor da libertação de reclusos. O CDS, através do deputado Telmo Correia, disse perceber a “posição humanista”, mas não aceitou a proposta nos termos em que foi desenhada pelo governo e fez depender a aprovação de “garantias” que enumerou, como testar os prisioneiros que saem ou evitar o “alarme social”. Para o CDS votar a favor era preciso que a proposta acomodasse todas estas garantias. Na mesma linha o Iniciativa Liberal disse que não é contra a proposta, mas criticou a via “atabalhoada” do governo e que fazia depender a aprovação da proposta de alterações que viessem a ser viabilizadas. Ambos os partidos acabaram por se abster na votação na generalidade e votaram contra na votação final global.

A deputada Inês Sousa Real tinha dito que o PAN não acompanhava a medida do governo por ser desproporcional e por considerar que há outras formas de reduzir a população prisional, alertando que a medida corria o risco de ser mal compreendida pela população em geral e de causar “alarme social”. Absteve-se na votação final global.

E o que mais foi aprovado? Suspensão de cortes dos bens essenciais e 50 milhões para atividades culturais

Além das duas propostas de lei do Governo sobre perdão parcial de penas e sobre reforço da capacidade das autarquias para combater a Covid-19 (onde o consenso foi generalizado), o Parlamento aprovou pontualmente algumas medidas do leque de 100 que foram debatidas esta tarde — só em casos pontuais é que o PS deu a mão à esquerda para aprovar uma coisa ou outra.

Foi o caso da suspensão de cortes de água, luz, gás e telecomunicações. Tanto a proposta do PCP como do BE foram aprovadas. Assim sendo, as empresas vão ficar impedidas de fazer qualquer corte ao nível do fornecimento destes bens essenciais durante o tempo em que vigorar o estado de emergência, bem como no mês subsequente, mesmo que as famílias não sejam capazes de pagar as contas respetivas.

O projeto do PCP estabelecia “a proibição da interrupção do fornecimento de determinados serviços essenciais”, dizendo que “no período de vigência da presente lei é proibida a interrupção do fornecimento doméstico dos seguintes serviços essenciais: eletricidade, gás, água e comunicações”. O projeto passou só com os votos contra do PSD. IL e Chega abstiveram-se. Os restantes votaram a favor.

Também a proposta do Bloco de Esquerda sobre o mesmo tema foi aprovada. O projeto do BE esclarecia ainda que a proibição dos cortes ao nível das telecomunicações vale apenas para casos de pessoas que tenham ficado desempregadas ou que tenham registado uma quebra de rendimento do agregado familiar igual ou superior a 20% ou tenham sido infetadas pelo novo coronavírus.

Mais: os bloquistas propuseram ainda que os consumidores que estejam nestas situações possam cessar contratos com as empresas de telecomunicações sem terem de pagar por isso. “Durante a vigência da presente lei, os consumidores que se encontrem em situação de desemprego ou com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20% face aos rendimentos do mês anterior podem requerer a cessação unilateral de contratos de telecomunicações sem lugar a compensação ao fornecedor”, lê-se na proposta que foi aprovada com o aval do PS.

Do BE foram ainda aprovados 50 milhões para fazer face à paralisação das atividades culturais. “O Governo, através do Ministério da Cultura, institui um programa de emergência para o financiamento do setor cultural no montante de 50 milhões de euros e direcionado à realização de projetos culturais compatíveis com as normas de afastamento físico e ao garante da continuidade das estruturas culturais em todo o território nacional”, lia-se no projeto aprovado.

Finalmente, enquanto vigorar o estado de emergência, o valor dos Planos de Poupança Reforma pode ser excecionalmente reembolsado desde que um dos membros do agregado familiar esteja em situação de isolamento profilático ou de doença ou preste assistência a filhos ou netos. Ou seja, os desempregados e as pessoas abrangidas por medidas aprovadas no âmbito da pandemia da Covid-19, como o ‘lay-off’, vão poder resgatar Planos de Poupança Reforma (PPR) subscritos até março, sem penalização fiscal.

Também a proposta do BE que alarga as medidas de proteção ao crédito e as garantias do Estado a advogados e solicitadores foi aprovada. Era uma questão pedida por praticamente todas as bancadas parlamentares. Em causa está o facto de estas duas classes profissionais descontarem não para o regime geral da Segurança Social, mas para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores, querendo agora os deputados que as medidas de proteção e apoio social aplicáveis aos trabalhadores independentes sejam estendidas a estes profissionais. Outra proposta do BE que foi aprovada pretende estender o apoio para a creche às famílias com criança em amas registadas na Segurança Social.

Do lado do PCP, foram também aprovadas as propostas de alargar a possibilidade da utilização de escolas de acolhimento aos filhos dos funcionários dos lares, e a de alargamento do fornecimento de alimentação nas escolas ao Escalão B da Ação Social escolar. Tudo propostas sem grande impacto orçamental.

Do PAN, foi aprovada a proposta que estabelece que as propinas devem diminuir se a instituição de ensino não tiver ensino à distância. O projeto diz que “no caso de não ser assegurado o ensino à distância, as instituições do Ensino Superior devem proceder ao reajustamento da propina devida pela frequência no ensino superior”.

Os deputados aprovaram ainda um projeto de lei do PEV que estabelece que o serviço público de televisão tem a obrigação de promover  a “emissão de programas que aconselhem e estimulem os cidadãos para a prática adequada de exercício físico e de uma boa nutrição, no caso de dever coletivo de permanência em residência, por período alargado, devido a declaração de estado de exceção ou por necessidade de isolamento social”. O PS votou a favor. O PSD, CDS, Chega e Iniciativa Liberal votaram contra.