Curto, residual, insignificante. São estes alguns dos adjetivos utilizados por pequenos editores e livreiros a quem o Observador pediu um comentário acerca da verba de 400 mil euros que o Ministério da Cultura anunciou estar disponível a partir de maio para compra de livros por parte do Estado. A decisão foi conhecida nesta quinta-feira de manhã, em comunicado, e tem por objetivo “atenuar os efeitos provocados pela pandemia” do coronavírus. Está previsto um máximo de cinco mil euros por editor e livreiro. A coordenação estará a cargo da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas,
José Pinho, proprietário das livrarias Ler Devagar e Ferin, em Lisboa, disse que se trata “apenas de um paliativo que se calhar não cumpre aquilo a que se propõe”. Nas suas contas, um livreiro que consiga o apoio de cinco mil euros irá no fim receber apenas 1.500 euros líquidos, correspondentes à margem de lucro.
O empresário integra a RELI (Rede de Livrarias Independentes), criada a 2 de abril no contexto da crise do coronavírus e descrita como “associação livre de apoio mútuo composta por livrarias de todo o país” — livrarias de pequena e média dimensão. Nessa qualidade, José Pinho esteve reunido na quarta-feira, por videoconferência, com a ministra Graça Fonseca.
“Foi uma conversa agradável. Sei que esta situação não é fácil para o Ministério, vai haver sempre quem conteste as decisões, sejam elas quais forem, mas neste caso concreto é muito importante que a tutela defina bem quais as regras” a aplicar nas candidaturas aos 400 mil euros.
“Em primeiro lugar, tem de se considerar que quem vende livros ao público são os livreiros. Os livreiros não editam, vendem livros fornecidos por editores. Se o Ministério vai agora comprar livros diretamente à editora ‘a’, e eu, como livreiro, vendo ao Ministério livros da mesma editora ‘a’, a verba não se dispersa como deveria. Tem de haver uma norma que obrigue a dispersar”, afirmou José Pinho, sublinhando que o montante disponível é “curto”. “Só na RELI estão 90 livrarias independentes. Ora, 400 mil a dividir por cinco mil de valor máximo para cada, dá apenas 80 livreiros e editores.”
Numa coisa o proprietário da Ler Devagar está totalmente de acordo com Graça Fonseca: a distribuição das obras pelo Instituto Camões nos Centros Culturais Portugueses espalhados pelo mundo e junto da rede de Ensino de Português no Estrangeiro. “Acho bem, porque quase todas as bibliotecas em Portugal são geridas pelas Câmaras. Teria sempre de ser uma distribuição de livros supramunicipal e a solução encontrada é boa.”
“Esta colher de chá não está à altura dos desafios”
O Ministério da Cultura fez notar que o programa de aquisições é uma “medida para o curto prazo”, pensada para “situações de maior vulnerabilidade”. De acordo com a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), a ministra Graça Fonseca entende que o setor do livro “deve procurar as soluções para a sua situação” através das “novas medidas transversais do Governo para o estado de emergência”, isto é, através dos apoios já anunciados pelo Ministério da Economia para todas as empresas, independentemente da área de atividade.
Na opinião de Francisco Vale, editor da Relógio d’Água, “tentar esvaziar as águas profundas da crise editorial portuguesa, a mais grave de sempre, com esta colher de chá do Ministério da Cultura não está à altura dos desafios que enfrentamos.” O mesmo responsável entende que a tutela deveria distinguir editores de livreiros e atender às especificidades de cada um. “São medidas curtas, mesmo que pensadas para o curto prazo e em acumulação com as já anunciadas para o conjunto das empresas”, apontou.
Francisco Vale adiantou ainda três propostas concretas que gostaria de ver em prática como resposta à crise económica que se desenha: multiplicar “por cinco ou seis” as compras aos editores para ofertas a bibliotecas públicas e escolares, subsidiar as rendas pagas pelas livrarias e reduzir ou anular os impostos sobre os stocks armazenados pelas editoras.
Conhecida pela poesia, a Relógio d’Água foi fundada em Lisboa em 1982 e tem no catálogo autores como Hélia Correia, Maria Gabriela Llansol, Gonçalo M. Tavares ou António Barreto.
Alguns editores fizeram-se ouvir ao longo do dia através do Facebook. Bárbara Bulhosa, da Tinta da China, escreveu que “o princípio do Governo” de apoiar editores e livreiros pequenos está “bem”, porque “os tubarões ficam de fora”. No entanto, os valores em causa “são só ridículos” comprados com o milhão de euros que a Cultura disponibilizou para o festival de música TV Fest, que Graça Fonseca previa organizar na RTP e que foi cancelado no início de abril sob um coro de protestos. “Enfim, prioridades”, rematou Bárbara Bulhosa.
Por seu lado, a editora do grupo LeYa Maria do Rosário Pedreira partilhou no Facebook um texto de Vasco Teixeira, da concorrente Porto Editora, e não poupou nas palavras: “Eu cá mudaria a ministra assim que isto aquietasse. Ou já.”
https://www.facebook.com/maria.d.pedreira/posts/10223284965419287
Menos crítico, Fernando Ramalho, um dos responsáveis pela livraria lisboeta Tigre de Papel, disse que “a verba é baixa, tendo em conta as necessidades atuais”, mas representa “seguramente uma ajuda no meio da incerteza” que se vive. “Qualquer coisa, é uma ajuda”, reforçou.
A Tigre de Papel foi inaugurada em junho de 2016 e situa-se na zona de Arroios. É a típica livraria de bairro. Além da literatura, vende livros escolares, o que segundo Fernando Ramalho representa a parte mais significativa da faturação anual. As portas encerraram-se em meados de março, perante o decreto de estado de emergência, e não se sabe quando reabrem. “Se for em inícios de maio, significa um mês e meio sem atividade. Já se notava a quebra nos dias anteriores ao encerramento e agora temos tido alguma capacidade de venda através de encomenda, mas é incomparável com o que seria de porta aberta”, explicou o responsável pela Tigre de Papel. “As receitas quase desapareceram, mas despesas, como a renda, mantêm-se.”
A livraria faz parte da RELI e Fernando Ramalho apoia o ponto de vista coletivo que a associação apresentou na quarta-feira à ministra da Cultura: “A medida deveria ser dirigida exclusivamente ou prioritariamente a pequenos livreiros, que são os responsáveis pelas vendas no setor do livro”, disse.
Dúvidas sobre critérios
Ao telefone a partir do Algarve, o livreiro Luís Fagundes mostrou-se desanimado e classificou o apoio agora anunciado como “uma mão cheia de nada”. Luís Fagundes é sócio-gerente da livraria A Internacional, em Lagos, um espaço generalista com muita oferta de títulos em inglês, francês, alemão e outros idiomas europeus — ou seja, voltada também para os turistas estrangeiros.
“Para se ter uma ordem de grandeza, ou de pequenez, em relação ao apoio do Ministério basta dizer que há pouco fiz um contrato com um pequeno município do Algarve para fornecimento de livros a bibliotecas e escolas e esse contrato tem o valor de 20 mil euros”, contou o empresário. “Não quero cuspir no prato, claro que qualquer apoio é bem-vindo, mas lamento o montante e o atraso na resposta.”
Luís Fagundes acrescentou que tem desde 16 de março um pedido de crédito à espera de aprovação pela Caixa Geral de Depósitos. “Tenho funcionários em lay-off. Eu, como sócio-gerente, não tenho direito a nada e sei que o crédito é na verdade corda para nos enforcarmos. Vamos sair disto endividados”, desabafou.
Jorge Castelo Branco, da Seda Publicações, editora de Matosinhos com uma década de existência, apontou dúvidas.“Precisamos ainda de perceber quais vão ser os critérios de atribuição dessa verba: será em função do número de títulos publicados por cada editora, do volume de faturação anual? Seja como for, não são cinco mil euros que salvam uma editora.”
Todos os anos, em média, a Seda publica 80 títulos com tiragens que rondam os 300 exemplares. Mais de 60% das obras são de poesia, por novos autores, mas há também alguns nomes conhecidos do grande público, como o padre Mário de Oliveira ou o crítico Mário Dorminsky. A Seda dá à estampa várias obras apoiadas por câmaras municipais e aposta na venda online e na distribuição em pequenos livrarias, raramente tem títulos à venda da rede FNAC.
“Percebo que o Estado não está em condições de apoiar todos os setores, porque todos estão em dificuldades, mas receio que os 400 mil euros cheguem primeiro aos grandes grupos editoriais que têm pequenas chancelas”, acrescentou Jorge Castelo Branco, que desconhece o critério que o Ministério da Cultura vai usar na definição de pequena editora.
O mesmo responsável notou que uma empresa independente como a sua vende quantidades significativas de livros em sessões públicas de lançamento, as quais estão à partida comprometidas nos próximos meses devido às recomendações de distanciamento social e à proibição de aglomerações. “O setor vai passar uma grande dificuldade, estou a prever grandes quebras e temo pela minha sobrevivência como editor”, referiu.