O Conselho Superior da Magistratura (CSM) está contra a alteração à lei da violência doméstica que põe nas mãos dos juízes de instrução criminal o poder da regulação paternal. Esta proposta de lei foi aprovada pelo Governo no Conselho de Ministros de 23 de abril, e foi a a oitava medida anunciada nesse dia, quando todas as outras medidas aprovadas se relacionavam com a pandemia da Covid-19. Será debatida esta quarta-feira no parlamento.

Agora o parecer que chegou ao plenário vindo do órgão que regula e disciplina os juízes — o mesmo que foi presidido pelo atual Secretário de Estado da Justiça, Mário Belo Morgado — vem revelar-se completamente contra esta alteração à lei que, segundo dizem, pode mesmo levantar questões de constitucionalidade.

O governo quer que seja o juiz de instrução criminal — aquele que aplica a medida de coação ao agressor detido por violência doméstica até o processo correr  chegar eventualmente a tribunal — a decidir também com quem fica o menor que teria a seu cargo. Mas para os juízes que foram chamados a pronunciar-se sobre esta possível mudança, tal desvirtua completamente “a especialização dos tribunais” e vai gerar muitas “confusões”.

Além de ser uma decisão cível a ser tomada por um tribunal criminal, o que tem implicações depois a nível de recurso, pode também gerar decisões contraditórias, se o juiz do processo-crime tiver um entendimento diferente do juiz do Tribunal de Família Menores. Mais se houver já um processo antigo neste tribunal. Por outro lado, advertem os magistrados, é mais uma sobrecarga para estes juízes.

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“Esta alteração longe de contribuir para a celeridade e efetiva proteção da vítima poderá gerar inúmeras dúvidas, conflitos de regimes legais, ausência de elementos de prova ainda que indiciários, decisões contraditórias, sobreposição de competências, controvérsias quanto o que compete a quem, atrasos na prolação de decisão e medidas inexequíveis que não só vêm frustrar totalmente o propósito da Lei de efetiva proteção da vitima mas também e, sobretudo viriam agravar a falta de resposta rápida e eficaz no combate deste tipo de crime tão singular e com especificidades próprias que obstaculizam os enormes investimentos feitos até agora”, lê-se no parecer.

Esta alteração à lei é uma resposta às recomendações do Grupo de Peritos para o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica do Conselho da Europa (GREVIO). A proposta do Governo determina também que no prazo de 72 horas seja obtida prova pela polícia que possa servir para avaliar o risco da vítima, além de atribuir competências cíveis aos tribunais criminais para decisões provisórias urgentes de proteção da vítima — tais como a regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais, a utilização provisória da casa de morada de família e a guarda de animais de companhia.

“Temos sérias reservas que o Ministério Público ou o órgão de polícia criminal disponham de capacidade ou dos meios técnicos para efetuar essa avaliação de uma forma adequada e completa, para mais no prazo tão curto de 72 horas”, alertam os juízes.

É que, lembram, “um dos desafios que se coloca hoje ao juiz de família e menores” é precisamente “o de procurar adequar a sua decisão à solução que se afigure mais oportuna e conveniente aos interesses em jogo”, tentando atenuar o “conflito e a animosidade” entre todos os envolvidos.

Mais urgente resolver soluções para o agressor, como a habitação

Para o CSM, é fundamental que este crime seja olhado de outra forma, sobretudo tendo em conta fatores psicológicos, emocionais, económicos e sociais, “sob pena de as sucessivas alterações legislativas e dos investimentos feitos falharem” na luta contra a violência doméstica. É que o mais problemático tem sido a falta de “habitação ou apoio social para o arguido ou denunciado”. Isto porque não tendo qualquer alternativa, muitas vezes “regressa a casa da vítima a qual no quadro do denominado “ciclo da violência” o volta a receber sendo que, muitas vezes, só a prisão põe fim a esta situação”.

Os magistrados lembram que os juízes de instrução – ao decidirem, provisoriamente, as responsabilidades parentais – vão contra o critério da especialização, além de que nem sequer têm preparação técnica para o fazer. É diferente “conjugar o interesse superior das crianças e jovens, os quais sempre serão melhor acautelados nos tribunais de família e menores, seja pelo critério da especialização, seja por, previsivelmente, ter já existido uma intervenção anterior ao nível de processo de promoção e proteção ou de regulação das responsabilidades parentais, que constitui uma mais-valia, pelo menos em termos probatórios, para o caso concreto”, lê-se.

Os mesmos juízes dizem ainda que a atual lei já permite aplicação de medidas de afastamento do domicílio comum, de afastamento da vítima e de outras pessoas e de proibição de contactos. “Não haverá muitas outras medidas de proteção da tutela da personalidade que possam ser adotadas com maior ou pelo menos idêntica eficácia” defendem.

Qual a utilidade real de complexificar o sistema vigente, obrigando o titular da ação penal e porventura o decisor a reunir elementos estranhos ao processo penal, com isto ficando este adensado, quando as razões de urgência são resolvidas por via de medidas de coação e, no mais, pelo tribunal próprio e de forma urgente?”, interrogam os juízes.

Para o parecer, que elenca também uma série de propostas para problemas detetados de quem lida com estes casos diariamente, contribuíram os juízes presidentes dos Açores, Guarda, Coimbra, Santarém, Porto Este, Lisboa e Aveiro, Braga e Porto.