A tripulação do navio Greg Mortimer, que esteve quase dois meses dentro de um cruzeiro onde havia casos de Covid-19, irá finalmente ser autorizada a sair esta terça-feira, depois de o governo do Uruguai ter aceitado que desembarcassem. É o fim de uma novela que inclui dezenas de infetados a bordo, uma tripulação à beira da loucura, um médico alegadamente pressionado pela companhia a esconder os casos do novo coronavírus e passageiros que já ameaçam processar a empresa, que organiza estes cruzeiros para a Antártica.

O governo do Uruguai anunciou esta segunda-feira que irá permitir o desembarque dos 83 membros da tripulação que permanecem a bordo, atracados no porto de Montevideo, e que estes poderão ficar de quarentena em quartos de hotel fornecidos pelo executivo uruguaio.

Decidimos que o Uruguai tem de fazer o que deve”, anunciou o ministro dos Negócios Estrangeiros Ernesto Talvi, segundo a Agência France-Press. “Estas pessoas não podem continuar indefinidamente em alto-mar, num navio onde o vírus aparentemente está a circular e a contagiar e contagiar novamente, porque eles não se estão a curar.”

Dos 83 membros da tripulação que estão a bordo, 37 testaram positivo para o novo coronavírus. Para além deles, há dois membros da tripulação infetados que já foram transferidos para o hospital. Um deles, de nacionalidade filipina, acabou por morrer. O outro, um polaco, recuperou e já foi enviado para a Polónia.

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O Greg Mortimer partiu do porto argentino de Ushuaia a 15 de março, quatro dias depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter decretado o surto mundial de Covid-19 como uma pandemia. A decisão é criticada por alguns especialistas, que consideram que a viagem devia ter sido abortada: “A 15 de março, já sabíamos globalmente que estávamos numa pandemia”, apontou ao Sydney Morning Herald a epidemiologista Mary-Louis McLaws. “Não faz sentido assumir que os passageiros que estavam a entrar num cruzeiro estavam em segurança”.

Ao fim de uma semana de viagem, foram detetados os primeiros casos de pessoas com sintomas. À altura, porém, a Argentina já tinha encerrado os seus portos, razão pela qual o Greg Mortimer se dirigiu então para o Uruguai, onde atracou no porto de Montevideo a 27 de março. Aí foi montada uma operação para retirar os passageiros e repatriá-los, que acabou por ser finalizada a 10 de abril. A tripulação, contudo, foi obrigada a permanecer dentro do navio durante 14 dias, em isolamento. Só que a carga viral dentro do navio é de tal forma forte que outros membros da tripulação adoeceram entretanto.

A situação dentro do Greg Mortimer tornou-se aquilo que uma das tripulantes, a chilena Carolina Vásquez, classificou à Associated Press como sendo “uma trágica e assustadora história de terror”. Cada membro da tripulação infetado esteva isolado numa cabine, sem janelas, e Mauricio Usme, o médico de bordo, avança que algumas das pessoas a bordo “começaram a ter pensamentos suicidas” devido ao confinamento. “O risco de suicídio ou de psicose individual ou coletiva, estava lá”, afirmou o médico ao The Guardian. “Havia pessoas que pensavam em sair do quarto e acender chamas, que pensavam em saltar borda fora e nadar até à costa”.

Agradeço a Jesus por responder às nossas orações e à imprensa por ter chamado a atenção para a nossa situação”, acrescentou o médico colombiano.

A situação a bordo nos últimos dias tinha-se tornado particularmente tensa depois de se saber que Usme terá sido pressionado pelas duas empresas que gerem o Greg Mortimer (a CMI/Sunstone e a Aurora Expeditions) para que não fizesse um retrato fiel da situação a bordo às autoridades do Uruguai, sugerindo-lhe que desvalorizasse a gravidade do surto a bordo.

Usme, que já testou positivo para o novo coronavírus cinco vezes, denunciou a situação ao The Guardian via WhatsApp. A 3 de maio, declarou ao jornal que a situação a bordo estava insustentável: “Enquanto permanecermos a bordo estamos expostos a um possível risco de morte”. O jornal confirmou as pressões das duas empresas através de emails a que teve acesso.

Um dos passageiros que esteve a bordo do Greg Mortimer, o australiano Antony Philip, já anunciou que vai processar a empresa, que acusa de ter colocado os interesses comerciais à frente da segurança dos passageiros, ao recursar-se a cancelar a viagem e a devolver os 50 mil dólares que cada passageiro pagou pelo cruzeiro. “É inacreditável que uma empresa com tanto pessoal bom possa ter errado tanto. Jogaram à roleta russa com as nossas vidas“, afirmou ao Sidney Morning Herald.

Ao mesmo jornal, uma porta-voz da empresa afirmou apenas que “a Aurora Expeditions rejeita a caracterização que é feita da situação e irá, se for necessário, defender-se vigorosamente”.