O rombo que a atual pandemia está a causar no mundo da moda é inegável. Com cadeias inteiras encerradas, uma recessão económica no horizonte e de amplitude quase mundial e uma suspensão do que é o quotidiano da sociedade de consumo, ditada pelo distanciamento social, estão a fazer mossa nos números, mas também a motivar medidas por parte dos agentes económicos e criativos.
A última movimentação é coletiva e surge de forma concertada. Numa petição, um conjunto de designers, relações públicas e cadeias de retalho pedem que o exigente calendário da moda se ajuste às necessidades do setor, mas também a um futuro que se adivinha adverso. “Todos concordamos que a atual situação, apesar de desafiante, é uma oportunidade de mudança — uma mudança essencial e bem-vinda que vai simplificar os nossos negócios, tornando-os mais sustentáveis do ponto de vista ambiental e social e, em última análise, mais alinhados com as necessidades dos nossos clientes”, pode ler-se na carta aberta publicada na passada terça-feira.
Na prática, exigem o fim do desfasamento temporal pelo qual o setor de rege há décadas — em setembro, as marcas apresentam as propostas para o verão seguinte, enquanto o outono já terá sido apresentado há sete meses. No caso das coleções masculinas, o calendário antecipa ainda mais o trabalho dos designers, com as semanas da moda marcadas para janeiro e junho, obrigando-os a ter uma coleção pronta quase um ano antes de esta chegar às lojas. Por sua, também esses timings se revelam penalizadores.
“Não é normal comprar roupa de inverno em maio. Não é normal trabalhar com uma equipa de design numa coleção que chega às lojas um mês e meio antes de ficar com 50% de desconto”, admitiu o designer belga Dries van Noten, um dos signatários. Além deste, também nomes como Tory Burch, Marine Serre, Gabriela Hearst, Erdem Moralioglu e Mary Katrantzou assinaram a carta, à semelhança de retalhistas como a Nordstrom, a Bergdorf Goodman, Mytheresa, Harvey Nichols, Liberty e Selfridges.
A união de esforços resulta de uma série de reuniões via Zoom, como revela a Vogue Business. O grupo alega não querer “desperdiçar a crise”, antes utilizá-la para melhorar o setor. “Estamos a atravessar um momento altamente desafiante, mas não vamos desperdiçar esta crise”, assinalou Shira Sue Carmi, diretora executiva da Altuzarra e também ela membro deste grupo.
Mantendo minimamente os timings anuais, a coligação sugere que que as coleções sejam apresentadas imediatamente antes das respetivas estações — outono/inverno em agosto e primavera/verão em fevereiro. Propõe ainda que as encomendas sejam faseadas ao longo da estação de forma a preservar o efeito de novidade, bem como atrasar a época de saldos para o fim da temporada de forma a aumentar o período de vendas a preço original.
“Consciente de uma mudança radical”, a Saint Laurent abandona a Semana da Moda de Paris
Do lado da sustentabilidade, a carta aberta defende que as alterações no calendário da indústria vão refletir-se em menos desperdício de tecidos, menos deslocações de equipas e numa redução do excesso de produção. Rever o formato dos desfiles e criar showrooms digitais são outras das propostas.
Desde o início do ano que a indústria se tem moldado a uma ameaça de saúde pública. Milão e Paris já anunciaram que as próximas semanas da moda masculina, ambas marcadas para julho, vão realizar-se em formato digital. Giorgio Armani, obrigado já pelo novo coronavírus a realizar um desfile sem público, em fevereiro, afirmou que pretende “suprimir o supérfluo”. A Saint Laurent, um dos pesos pesados da moda parisiense, decidiu abandonar o calendário da próxima edição da Semana da Moda de Paris.
E é precisamente do lado de lá do Atlântico que surgiu uma das medidas mais drásticas. Marc Jacobs admitiu a possibilidade de não desenhar nenhuma coleção para a primavera de 2021 (a qual seria apresentada em setembro, precisamente) e de não produzir a coleção para este outono, apresentada no início de fevereiro, em Nova Iorque. “Para ser sincero, não sei o que vamos fazer nem quando vamos começar, mas para desenhar uma coleção preciso da minha equipa. E a minha equipa precisa de tecidos. E esses tecidos vêm de Itália. E nós viajamos e por aí fora. Até descobrirmos uma nova forma de trabalhar — até criarmos uma nova forma de trabalhar — ou um novo objetivo final para o nosso trabalho, não temos nada para fazer”, desabafou o designer, em meados do último mês.
Contudo, esta parece ser a oportunidade pela qual muitas marcas e designers ansiavam para reformatar o funcionamento da indústria da moda. Com a maioria das fábricas e atelier encerrados, sobretudo em solo europeu onde só agora as normas de confinamento começam a ser levantadas, os primeiros desfiles chegam dentro de dois meses. No início do outono, dezenas de criadores terão de apresentar as suas coleções. Desistir do calendário, como fez a Saint Laurent, parece ser a única alternativa. Para já, a cumprir-se a tradição, a Semana da Moda de Paris acontecerá em setembro, à semelhança das restantes capitais — Milão, Londres e Nova Iorque.