Confrontada com uma crise antiga que se agravou nas últimas semanas devido à pandemia, a histórica Livraria Barata, um dos estabelecimentos mais emblemáticos de Lisboa, com um percurso marcado por perseguições políticas ao fundador durante o Estado Novo, prepara-se para lançar em junho uma campanha de angariação de donativos através da Internet, disse ao Observador a sócia-gerente, Elsa Barata. Já esta sexta-feira, os responsáveis pela livraria contam reunir-se através de videoconferência com o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, e a vereação da Cultura.
Antes do coronavírus já se verificava uma quebra de vendas, além de problemas financeiros com mais de uma década, mas foi durante os últimos dois meses que as coisas se agravaram. “Tivemos menos 90% de faturação, ficámos sem dinheiro para pagar renda, água, eletricidade, funcionários e fornecedores”, contou esta terça-feira Elsa Barata, filha do fundador. “Tem sido dramático, precisamos de um balão de oxigénio”, sublinhou. Isto porque a Barata está mesmo em risco de encerrar definitivamente. A informação circula nas redes sociais há vários dias e tem sido partilhada através de mensagens de telemóvel.
A Barata começou a vender ao postigo em vésperas do primeiro decreto presidencial de estado de emergência, a 18 de março. Não permitia a entrada de clientes, para evitar possíveis contágios por coronavírus, seguindo ordens da Direção-Geral da Saúde, mas atendia à porta, assim evitando a paragem total. “Não baixámos os braços, trabalhámos com os clientes via e-mail e redes sociais e até fizemos um protocolo com a CoopTáxis para entregas ao domicílio. Houve um esforço através dos meios que tínhamos, para mantermos a chama viva”, relatou a livreira, que divide a gerência com o marido, José Rodrigues. Não foi suficiente.
“Muitos fornecedores, isto é, editores e distribuidores, não nos deram moratória e por isso quebraram o fornecimento. Também enviámos uma carta à Presidência da República no início do confinamento, mas entendo que naquela fase a prioridade era a saúde e por isso recebemos uma resposta que não nos deu muita esperança. A pandemia foi a machadada final. Ou conseguimos ultrapassar esta fase ou podemos ter o encerramento, isso é claro”, afirmou Elsa Barata.
Quando as portas das livrarias se reabriram a 4 de maio, conforme determinado pelo Governo, clientes e amigos da casa foram confrontados com a nova realidade e decidiram juntar-se numa tentativa de salvar a histórica loja. A “onda de solidariedade”, como a qualifica a empresária, já levou a um aumento no número de clientes. Desde segunda-feira, os funcionários voltaram a trabalhar oito horas diárias, na tentativa de não desperdiçar a boa vontade dos que ali se deslocam. “Temos pedido às pessoas que venham comprar e se não tivermos o que procuram que façam encomenda através de nós. É uma forma de garantir que não perdemos nenhum cliente.”
Nos primeiros dias de junho, a Barata prevê lançar uma campanha de crowdfunding na internet. “Vamos pedir às pessoas uma doação, que é também um investimento, porque ficam com um crédito em compras na livraria”, explicou Elsa Barata, sem adiantar o montante total que espera angariar. Ainda falta acertar esse e outros pormenores. “Todas as pessoas que nos estão a ajudar nisto são voluntárias, dão o melhor do seu tempo. Temos feito reuniões diárias ao fim da noite através do Zoom”, sublinhou.
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Certo é que a campanha de angariação de fundos, se tiver êxito, poderá “ajudar a renovar e a reafirmar a Barata”, segundo a gerente. “Vamos ter uma estratégia comercial mais assertiva e um plano cultural para os próximos 18 a 24 meses, para que haja atividade intensa no espaço físico e nas plataformas digitais.”
Questionada sobre se a Barata se candidatou ao apoio de 400 mil euros do Ministério da Cultura dirigido a livrarias e editoras independentes, a gerente respondeu que não. Estava excluída à partida face à regra de que as livrarias candidatas tivessem tido em 2019 uma faturação inferior a 300 mil euros. O prazo para candidaturas terminou na última sexta-feira e os resultados devem ser conhecidos até ao fim do mês, segundo a ministra da Cultura, Graça Fonseca.
A empresa proprietária da livraria também não teve acesso ao lay-off simplificado que o Governo criou nem pode candidatar-se a apoios públicos ou recorrer ao financiamento junta da banca. Desde 2014 enfrenta um Processo Especial de Revitalização (PER), uma alternativa legal à insolvência, e tem tido dificuldades para fazer face aos pagamentos obrigatórios à Segurança Social. Seis funcionários da casa permanecem ao serviço, mas três foram dispensados.
Além do mais, a Barata também ficou de fora da associação RELI – Rede de Livrarias Independentes, que desde inícios de abril junta centenas de livreiros de pequena e média dimensão de norte a sul do país. “Não me aceitaram porque desde 2010 temos uma parceria comercial com o grupo editorial LeYa. Somos uma livraria independente dos grandes grupos económicos, mas a RELI entendeu que não nos enquadrávamos”, argumentou Elsa Barata.
Fundador foi preso pela PIDE
Situada no número 11 da Avenida de Roma — em tempos uma das artérias chiques da capital —, a Livraria Barata foi fundada em 1957 por António Domingos Melfe Barata (1925-1993), pai da atual gerente, natural de Pêro Viseu, concelho do Fundão. Em 1960 também se tornou fundador e gerente da Editorial Presença, indica uma resenha histórica fornecida pela Barata. “O objetivo desde o início era muito claro: vender livros proibidos pelo Estado Novo”, contou Elsa Barata ao Observador. Pormenorizou: “Livros de Mao Tsé-Tung, de Maksim Gorki, de personalidades portuguesas que não estavam com o regime de Salazar, tudo isso era proibido, os livros eram simplesmente apreendidos.”
O senhor Barata, como era conhecido, chegou a estar preso durante 20 dias na Cadeia do Aljube, junto à Sé de Lisboa, na sequência de buscas a casa e à loja por parte da PIDE, a polícia política. Foi acusado de importar livros proibidos de França — 1964, ano seguinte ao do nascimento da filha. “Atividades contra a segurança do Estado”, registou a PIDE na biografia prisional do livreiro, de acordo com documentos partilhados pela filha com o Observador.
“O meu pai teve autos de apreensão até 1972. Nunca esteve ligado ao Partido Comunista, era independente. Claro que estava muito próximo do socialismo, mas nunca foi filiado. Tinha convicções muito próprias”, explicou a filha.
Sobretudo depois do 25 de Abril de 1974, e também na década de 80, a Barata ganhou protagonismo como espaço cultural e ponto de encontro, tendo marcado gerações de lisboetas e de jovens que estudavam na capital. Foi também uma época de prosperidade do negócio. Chegou a ter uma rede de 13 lojas, incluindo em Campo de Ourique e no Instituto Superior Técnico. Sobra agora a casa-mãe. “As crises económicas sucessivas, a concorrência das vendas online, sobretudo da Amazon, e depois os quase monopólios e oligopólios livreiros foram terríveis para nós”, disse a livreira.
É hoje uma das últimas livrarias independentes em Portugal que ainda estão nas mãos da família fundadora. A maioria dos clientes vive perto da Avenida de Roma, mas também há os assíduos que moram noutras áreas da cidade e até noutras partes do país. Os livros infantojuvenis, de ficção, de poesia e de ciências sociais, mais os jornais e as revistas especializadas, constituem uma das principais fontes de receita, com os livros escolares a desempenharem uma papel cada vez mais reduzido.
[Notícia alterada às 09h30 de 20 de maio com informação atualizada sobre número de funcionários dispensados.]