Maria Velho da Costa foi, provavelmente, das mais injustiçadas escritoras do século XX. Ficou conhecida pelas Novas Cartas Portuguesas, mas os seus romances foram progressivamente caindo no esquecimento. Ora, Maina Mendes, Missa in Albis ou Lucialima mereciam muito melhor sorte.

Maria Velho da Costa não foi apenas uma das primeiras escritoras portuguesas a experimentar uns pós do Noveau Roman e a oferecer aos seus livros a densidade das ciências sociais de vanguarda. Só em Maria Velho da Costa (e talvez um pouco em Ruben A e em Nuno Bragança) é que sentimos que houve em Portugal um romance próprio dos anos 70. Desafios às estruturas narrativas tradicionais, elementos de psicanálise, interesse pelo delírio, pela loucura e por todos os recuperados do tradicionalismo, foi verdadeiramente Maria Velho da Costa quem trouxe estas novas formas de escrever, que encantavam a França de Barthes e Kristeva, para Portugal.

Nem todas as experiências são bem sucedidas e algumas soam-nos inevitavelmente datadas, é certo; no entanto, Maria Velho da Costa dota os seus livros de outros predicados que os tornam sempre interessantes. A inserção, na narrativa, de alguns elementos históricos muito concretos dá aos seus livros a vitalidade de uma boa crónica historiográfica. Nenhum livro, como Missa in Albis, nos dá uma perspetiva desencantada dos católicos progressistas e do grupo do Padre Alberto. Se os Vencidos do Catolicismo, de Benard da Costa, são uma narrativa nostálgica, se as relações de Pulido Valente sobre os dias n’O Tempo e o Modo não são sempre simpáticas para com as pessoas mas são condescendentes com o projeto, se as hagiografias da resistência ao Salazarismo deram um lugar aos manifestantes da capela do Rato, só Missa in Albis dá um retrato sociológico cru do porgressismo católico. A preocupação com o ar do tempo e com a forma “bem-pensante”, a impotência dos sentimentalismos iniciais, a pouca importância das questões “progressistas”, que só interessam a uma minoria privilegiada, tudo isso está admiravelmente representado no casamento de Sara.

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Missa in Albis é, aliás, um livro bem representativo do universo de Maria Velho da Costa. Tem o vocabulário rico e a estrutura pesada dos seus livros, os diálogos filosofantes de quem está mais preocupados com aquilo que quer dizer do que com o “realismo” daquilo que diz, casa a destruição das formas com a referência constante a instituições ritualizadas – neste caso, a missa da Pascoela, nesse estranho jogo em que já T. S. Eliot participou, que passa pela consciência de que abjurar uma forma é apenas abraçar outra, tem a doença, a loucura, a desilusão, a vida inútil das mulheres e aquela forma modernizada de ultrarromantismo que revivesceu nos anos 70 e 80.

A vida de Sara, uma rapariga com um passado que faria as delícias de qualquer psicanalista, é um confronto constante entre os seus sonhos e a realidade. Nem a religião é o que pensava, nem o seu amor por Simão dá os resultados esperados, nem a paz doméstica do casamento pacifica o seu coração; Sara, como já Maina Mendes, é sufocada pela realidade de tal maneira que o próprio corpo reage, à maneira do mal-estar descrito por Freud. As personagens mais fortes de Maria Velho da Costa, como esta Sara de Missa in Albis, têm esta característica sufocante: são, ao mesmo tempo, pessoas que não se contentam com a mediocridade do que as rodeia, mas que não têm ao mesmo tempo capacidade para sair disso. Todas elas têm a esperança posta naquilo que é nitidamente inferior a elas. Vivem o amor com mais intensidade do que, dado o objeto, ele merece, desencantam-se permanentemente com a vida, mas tentam sempre encontrar nela uma boia de salvação.

É costume falar da solidão das personagens de Maria Velho da Costa, e de facto esta solidão é importante; Sara está sempre num meio desconfortável, nunca pertence realmente a nada – nem à sua família adotiva, nem à vida lúdica da sua sogra, nem ao meio do catolicismo progressista; a solidão, porém, não é suficiente para ilustrar o grande problema das figuras femininas de Velho da Costa. Sara não pertence à família adotiva, mas alimenta umas fábulas acerca da sua verdadeira família. A sua grande angústia não vem da melancolia de não encontrar ninguém à sua altura, ou dos problemas que traz a luta por um recolhimento voluntário; Sara – e para Maria Velho da Costa isto é próprio da educação das mulheres – é uma solitária por ser superior ao que a rodeia, mas tem um complexo de inferioridade que a faz querer tirar proveito daquilo que não lhe interessa. São os seus esforços de integração que tornam esta vida mais triste.

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Sara não tem meios, psicológicos, intelectuais ou materiais, para fugir àquilo que lhe é inferior e o corpo, numa mistura muito própria entre romantismo e psicanálise, responde a este sofrimento. Às personagens de Velho da Costa aquilo que têm nunca é suficiente para exprimirem o que são, e a loucura – ou o mutismo, no caso de Maina Mendes – acabam por ser uma resposta a esta prisão das palavras e das vidas planeadas.

Como resposta, não é satisfatória – ninguém quer propriamente ficar louco; no entanto, é bem real.

Não é fácil entrar nos livros de Maria Velho da Costa – e admitimos facilmente que algum pedantismo, algumas considerações políticas revanchistas e um certo experimentalismo espúrio travem a entrada de espíritos bem-intencionados; no entanto, para lá disso há um mundo pouco interessante, mas cheio de gente com mais interesse do que ele a precisar de ser salva.