O “jurista de excelência”, de nome Marcelo Rebelo de Sousa, aconselhou os deputados a incluir na discussão do Orçamento Suplementar medidas que mexessem com a dotação orçamental prevista para este ano, mesmo que já tivessem sido aprovadas no Parlamento no âmbito da discussão sobre as medidas de combate à crise pandémica. E os deputados assim vão fazer, aproveitando assim para evitar que o Governo tenha do seu lado o argumento da lei-travão – a Constituição diz que o Parlamento não pode aprovar medidas de aumento da despesa à margem do que já está orçamentado. É o que vai acontecer com a medida de apoio aos sócios-gerentes, agora vetada pelo Presidente, mas não só. Os partidos reparam no piscar de olho de Marcelo e vão agir em conformidade.
“Tomamos boa nota do conselho do Presidente da República em relação à Assembleia da República. Temos a certeza que o jurista de excelência que é o professor Marcelo Rebelo de Sousa não daria maus conselhos para que os deputados legislassem de forma incorreta”, chegou a dizer esta tarde, com ironia, o deputado Duarte Pacheco durante a apresentação das propostas de alteração do PSD ao Orçamento. Uma das propostas que o partido apresentou, num leque de 15 propostas, é precisamente a medida de apoio aos micro e pequenos empresários que, de resto, todos os outros partidos, à exceção do PS, voltaram a apresentar. Logo, tem aprovação garantida por todos — menos pelo PS.
Essa vai ser precisamente a estratégia do Bloco de Esquerda, que vai apostar tudo em repescar medidas que são pacíficas à direita, ou que já tiveram inclusive o aval do PSD, confiante de que a votação se vai repetir. E o PSD a mesma coisa. São várias as chamadas “coligações negativas”, na perspetiva do Governo, que estão à espreita na discussão do Orçamento Suplementar na especialidade, cujo prazo para entrega de propostas de alteração terminou hoje e cuja votação final está marcada para o próximo dia 3 de julho.
Subsídio extraordinário de desemprego está garantido
Além da medida do alargamento do apoio aos sócios-gerentes, o BE foi também repescar uma proposta de criação de um subsídio extraordinário de desemprego para todos os trabalhadores informais, que não fazem descontos para a Segurança Social e que, como tal, ficaram desprotegidos durante a crise, que já foi aprovada na generalidade no passado dia 9 de junho, só com os votos contra do PS e do IL. Trata-se de uma apoio no valor de 438,31 euros, durante seis meses, aplicável a trabalhadores informais desde trabalhadores domésticos a advogados ou solicitadores que estão inscritos na Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores e não descontam para a Segurança Social.
“Já foi aprovado na generalidade por isso não há razão para que não seja integrado no Orçamento”, disse a deputada bloquista Mariana Mortágua durante a apresentação das propostas do BE no Parlamento. Ao Observador, o deputado do PSD Duarte Pacheco confirmou que onde o PSD já votou a favor, nada indica que o voto vá ser diferente.
O mesmo vai acontecer com a redução do prazo de garantia no acesso ao subsídio de desemprego, que foi discutida na generalidade no mesmo dia, e que resultou num projeto do CDS aprovado. Como tal, Mariana Mortágua não vê “razões para que não seja aprovada” novamente. Até porque o PSD também incluiu essa mesma medida no leque de propostas de alteração ao Orçamento e tem a mesma expectativa de que seja aprovada com a esquerda.
Mas há mais. Outra medida do PSD que já foi discutida e aprovada na generalidade, sem o voto do PS, é a criação de uma moratória no pagamento do empréstimo à Madeira, que o PSD repesca agora para o Orçamento Suplementar de forma a que o Governo não venha a usar a desculpa da lei-travão. Na perspetiva do PSD, também a sua proposta sobre a TAP, que exige ao governo que envie ao Parlamento, previamente, informação que fundamente qualquer injeção de capital na companhia aérea deverá ser aprovada com os votos da esquerda.
E o Bloco de Esquerda ainda acredita em mais uma coligação negativa. Trata-se de uma proposta sobre a redução do valor das creches de forma proporcional à perda de rendimentos dos pais. O BE tinha um projeto de resolução sobre este tema que foi discutido na generalidade e desceu à comissão especializada sem votação. Ora, agora pegou no texto comum que já estava afinado entre todos os partidos na comissão e converteu-o em proposta de alteração ao orçamento. Desta forma, nenhum partido terá como não aprovar um texto que já tem o seu carimbo.
Lei-travão? BE e PSD acreditam que há “latitude”, Governo insiste que “não há uma grande margem”
Tudo para não acontecer o mesmo que aconteceu aos sócios-gerentes. Ou seja, todas as medidas que foram aprovadas no Parlamento sem o voto do PS (em coligação negativa) no contexto da pandemia, que mexiam com a despesa do Estado, podiam vir a bater na trave do Presidente quando o processo legislativo comum terminasse. Assim sendo, e tal como Marcelo sugeriu, as medidas são agora repescadas para a discussão orçamental e, caso sejam aprovadas, o processo legislativo anterior é interrompido. “Assim podem entrar já em vigor em julho, sem a desculpa do travão orçamental que poderia ser invocado num processo legislativo comum”, diz uma fonte bloquista ao Observador.
É este o entendimento do BE, que acredita que o próprio PS já contornou a questão da lei travão porque já percebeu que “o papel da Assembleia da República é constituir maiorias em torno de propostas”. Ou seja, havendo uma maioria parlamentar que quer criar um subsídio de desemprego extraordinário para trabalhadores independentes e informais, por exemplo, não é um governo minoritário que o pode impedir. Tem de haver cabimento orçamental. “As medidas [mesmo que sejam aprovadas sem o aval do Governo] podem ter reflexo nos mapas de despesa do Orçamento e dessa força já passam a ter cabimento orçamental”, disse Mariana Mortágua ao Observador.
Não é bem esse, contudo, o entendimento do Governo. Ao Observador, fonte do Governo insiste que os partidos “têm consciência” de que “não há uma grande margem” para o Governo aceitar muitas propostas, até porque se trata de um orçamento suplementar e não de um processo orçamental dito normal. Neste orçamento, devem ser acolhidas medidas “extraordinárias” e não medidas “estruturais”, diz a mesma fonte, sublinhando que na discussão do Orçamento de 2021, aí sim, haverá “outra margem e outras condições” para discutir.
Mas é por entender que as medidas que propõem são extraordinárias e não estruturais que os bloquistas, que de resto fizeram questão de não “atulhar” o Orçamento de propostas de alteração (são cerca de 20), entendem que “há latitude” para aprovar propostas à revelia do Governo. “Há latitude para os partidos apresentarem propostas, é o país que beneficia dessa capacidade”, disse ainda Mariana Mortágua. Do lado do PSD, apurou o Observador, o entendimento é o mesmo: medidas provadas em maioria parlamentar (mesmo que seja a direita e a esquerda juntas contra o PS) não violam a lei-travão. Que o diga o “jurista de excelência”.