Foi há 15 anos que o Liverpool escreveu aquela que ainda hoje continua a ser catalogada como a maior reviravolta de sempre numa final da Liga dos Campeões, com Steven Gerard, Smicer e Xabi Alonso a anularem em apenas seis minutos a vantagem de 3-0 que o AC Milan levou para o intervalo antes do triunfo nas grandes penalidades onde brilhou Dudek. Foi também há 15 anos que o Chelsea ganhou a sua segunda Premier League da história 50 anos depois da estreia naquela que foi a temporada de estreia de José Mourinho em Inglaterra após ter sido campeão europeu pelo FC Porto. Por caminhos cruzados, estava a nascer uma nova rivalidade em terras britânicas.
Com Rafa Benítez a manter-se no banco dos reds e o Special One a revalidar o título em 2006, seguiram-se alguns duelos com muita emoção, intensidade e polémica à mistura entre Liverpool e Chelsea nas provas europeias, neste caso na Champions, como aconteceu nas meias-finais de 2007 que foram apenas resolvidas no desempate através de grandes penalidades, a que se seguiu mais uma frenética eliminatória na mesma fase do ano seguinte desta vez com o triunfo a sorrir aos londrinos já orientados então por Avram Grant. O Manchester United conseguira entrar de vez novamente na luta pela Premier League, que venceu em três épocas consecutivas, mas a grande rivalidade da altura por força da Europa era outra. Que se foi esbatendo, esbatendo até acabar face aos insucessos de ambos e o relevo que o dérbi de Manchester foi ganhando com o investimento feito pelos citizens.
Hoje, além das naturais rivalidades por região, só existe uma verdadeira rivalidade em Inglaterra entre Manchester City e Liverpool. São eles que discutem os títulos nacionais, como aconteceu na época passada com triunfo nesse particular para o conjunto de Pep Guardiola, são eles que tentam ir mais longe na Champions, como aconteceu na época passada com triunfo nesse particular para o conjunto de Jürgen Klopp. E se aqueles duelos quentinhos na primeira década do século existiram, qualquer adeptos dos reds torcia como nunca pelo Chelsea.
Depois do empate sem golos frente ao Everton, a goleada do Liverpool na receção ao Crystal Palace (4-0) deixou a equipa a um pequeno passo de um mais do que anunciado título 30 anos depois – e basta recordar que o domínio ao longo da temporada foi de tal forma impressionante que, a meio de janeiro, os adeptos terminaram o encontro em Anfield diante do Manchester United a gritarem “Champions, champions, we are the champions“. Faltava só a parte matemática para coroar uma caminha de exceção na prova, que serviria também para esquecer a inesperada eliminação da Liga dos Campeões em casa contra o Atl. Madrid pouco antes da pandemia. E a parte matemática era escrita no Chelsea-Manchester City, onde os visitantes teriam de vencer para adiar por uns dias a festa um jogo que pouco ou nada mudaria o provável segundo lugar frente a um adversário que manterá a luta até ao final pelo quarto lugar e consequente entrada na Liga dos Campeões numa espécie de ano 0 do novo projeto.
Com mais uma “revolução” no onze feita por Pep Guardiola, a recuperar vários elementos que tinham jogado com o Arsenal mas que não começaram de início com o Burnley, Bernardo Silva foi dos poucos resistentes mas ocupando uma posição “desconhecida” nos momentos iniciais como falso avançado tendo Mahrez e Sterling a saírem de fora para dentro perante a lesão de Kun Agüero e algumas limitações do outro avançado de raiz, Gabriel Jesus, que começou no banco. Teve coisas boas, teve duas ou três deliciosas, teve uma má: o jogo do Manchester City, a trocar a posse num futebol apoiado que colocava o Chelsea a correr apenas atrás da bola, era um regalo para a vista mas não tinha presença de baliza. Por isso, oportunidades de golo eram poucas ou nenhumas até para Kepa, tendo em conta que Ederson, no lado contrário, não passava de um espetador sem bilhete em posição privilegiada.
De bola corrida não dava porque o Manchester City podia criar à vontade que qualquer passe interior, cruzamento ou movimento de rutura não tinha ninguém para o toque final; de bola parada, correu melhor: Fernandinho, de novo central, foi à área contrária desviar um livre lateral ao primeiro poste para grande defesa de Kepa (18′). E foi também de bola parada que o Chelsea deixou a ameaça inicial, com Christensen a subir mais alto após canto e a desviar para defesa de Ederson para a frente (33′). O desbloqueador de jogo teria de surgir do aproveitamento do erro adversário e foi assim que os blues inauguraram o marcador, com Pulisic a beneficiar de um erro crasso de Mendy para arrancar do meio-campo uma cavalgada que só parou com o remate para área para o 1-0 (36′).
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Um americano abria caminho para a festa de um grupo de americanos, neste caso o Fenway Sports Group de John W. Henry e Thomas C. Werner, este último chairman do Liverpool, que em 2010 investiu 300 milhões de libras para resgatar um clube com uma dívida elevadíssima e com dois outros donos americanos, George Gillett e Tom Hicks, zangados entre eles e com os adeptos. Hoje, os reds recuperaram não só os pergaminhos desportivos mas ainda a marca, reconhecida em termos globais, ao mesmo tempo que quem dirige também consegue “ouvir” os adeptos. Exemplo prático? Perante os protestos dos adeptos pela decisão de colocar em casa todos os que não fossem jogadores ou treinadores durante a pandemia, os responsáveis recuaram e pediram desculpa.
No segundo tempo, e como tudo continuava na mesma, Pep Guardiola mexeu na equipa e apenas em dois minutos empatou e viu a reviravolta bater no poste: com David Silva e Gabriel Jesus nos lugares de Rodri e Bernardo Silva, Kevin De Bruyne marcou num fantástico livre direto que Kepa tentou desviar com os olhos enquanto a bola se encaminhava para o ângulo da sua baliza (55′) antes de uma transição rápida que colocou Sterling isolado em frente ao guarda-redes espanhol para acertar no ferro (57′). O encontro estava mais partido, a organização coletiva das duas equipas começava a conhecer algumas brechas e foi assim que surgiram as oportunidades para se desfazer a a igualdade, com Mount (62′) e Sterling (68′) a ficarem muito perto do 2-1 em remates que passaram pouco ao lado, e Pulisic a ver Kyle Walker, de carrinho, tirar a bola em cima da linha (71′).
Para conseguir ganhar, o City teve de partir o jogo. E esse risco acabou por não ser um passo à frente para a vitória mas sim um passo atrás para a derrota: em mais um lance de tiro ao boneco na área, a terceira tentativa de Tammy Abraham foi cortada em cima da linha com a mão por Fernandinho, o brasileiro foi expulso e Willian, de grande penalidade, lançou a festa em Liverpool (78′). Uma festa anunciada que já tinha coroado a equipa com o regresso às vitórias europeias na última época e que quebra um jejum de 30 anos sem o principal título nacional.
Como? Acabando de vez com os ciclos viciosos da tentativa e erro que até experiências de Moneyball meteu pelo meio e entrando num ciclo virtuoso assente num dos melhores treinadores da década, Jürgen Klopp (dando tempo para assentar e trabalhar a equipa à sua imagem); num ataque que em trio se torna num dos mais letais da Europa (Salah, Mané e Firmino); e em duas contratações caríssimas mas decisivas que levaram para Anfield um dos melhores guarda-redes (Alisson) e o melhor central da atualidade (Van Dijk). Estava construída uma estrutura para evoluírem os mais jovens (Alexander-Arnold e Robertson) e destacarem-se os verdadeiros líderes (Henderson e Milner) naquela que continua a ser, mesmo sem título europeu, a equipa mais consistente do futebol atual e que se sagrou campeã na liga mais competitiva a sete jornadas do fim perdendo sete pontos em 93 disputados até agora.