Os animais resgatados dos dois canis atingidos sábado pelo incêndio na serra da Agrela, no concelho de Santo Tirso (Porto), estão a ser distribuídos por associações de proteção de animais e a ser encaminhados para clínicas, disseram testemunhas. Em 2018 a situação em que viviam já tinha sido alvo de queixa no Ministério Público, que considerou não haver crime e arquivou o caso.
Sónia Cunha, uma das pessoas que se dirigiu este domingo ao local para ajudar a resgatar os animais, disse à Lusa que foi montado um hospital de campanha no local, para a prestação dos primeiros cuidados aos animais, e que estes estão a ser distribuídos entre associações de proteção dos animais e, os que estão em estado mais grave, enviados para clínicas veterinárias.
Sónia Cunha afirmou que, além do “Cantinho 4 patas”, onde, segundo a Câmara de Santo Tirso, morreram 54 animais, há um segundo canil, menos atingido, mas de onde os populares estão igualmente a retirar os animais.
A fonte adiantou que os proprietários do “Cantinho das 4 patas”, um casal e a filha, tiveram de ser retirados pela GNR, devido aos insultos e ameaças de agressão proferidas pelas dezenas de pessoas que acorreram ao local e que não esconderam a indignação perante o cenário que encontraram.
“Só hoje, depois de extinto o incêndio, as autoridades deixaram as pessoas passar”, disse, adiantando que, assim que se soube que o fogo lavrava na zona onde se situavam os canis foram muitos os que tentaram chegar ao local, de difícil acesso, mas foram barrados pela GNR.
Uma outra testemunha disse à Lusa ter encontrado um “cenário dantesco”, que “podia ter sido evitado”, se se tivessem retirado os animais a tempo.
Tendo recolhido elementos que vai entregar segunda-feira junto do Ministério Público, esta testemunha, que prefere não se identificar, afirmou que, embora se trate de propriedade privada, nestas situações prevalece o direito dos animais à vida, tanto mais que a legislação assegura hoje que não sejam mais tratados “como coisas”.
Na sua página no Facebook, a Intervenção e Resgate Animal (IRA) afirma estar no local “a prestar auxílio médico-veterinário a animais feridos pelas chamas e inalação de fumos”, juntamente com a Associação Portuguesa de Busca e Salvamento, que está presente com cinco operacionais, incluindo uma enfermeira veterinária.
Queixa feita em 2018 foi arquivada
Os abrigos em Santo Tirso já tinham sido alvo de uma queixa em 2018, que foi arquivada por o Ministério Público entender que animais com lixo não é crime.
No final de 2017 os dois espaços, “Cantinho das Quatro Patas” e “Abrigo de Paredes” tinham sido alvo de denúncia por parte de populares por “uma situação de insalubridade, ameaça à saúde pública e mais grave ainda, de maus tratos e negligência a animais indefesos”.
O caso seguiu para Tribunal e em 2018 o Ministério Público (MP) arquivou o processo considerando “não haver crueldade em manter animais num espaço sujo, com lixo, dejetos e mau cheiro”, segundo o despacho.
No despacho do arquivamento o MP escrevia que “apesar de não prestar as ideais condições aos animais que ali estão acolhidos, pois poderia e deveria estar mais limpo, não existe crueldade em manter animais num espaço sujo, com lixo, dejetos e mau cheiro”.
Precisando que “um mau trato é antes um tratamento cruel, atroz, impiedoso, revelador de algum prazer em causar sofrimento ou indiferença perante o sofrimento causado”, o MP justificava ter-se apurado “que os animais não estavam em sofrimento”, mas que “viviam num local muito sujo”, concluindo não ter este enquadramento “relevância jurídico-penal”.
Joana Dias dos Santos, uma das promotoras da denúncia, disse na altura à Lusa que “ficou muita coisa por esclarecer” e que a postura do MP não foi a mais correta.
Joana Dias dos Santos contou então que, durante o período em que o processo esteve a correr, “houve no ´Cantinho das Quatro Patas´ uma tentativa de melhorar as coisas”, mas a situação não pode ser verificada “por continuar a ser impedido pelos proprietários o acesso ao local”.
No momento da acusação de “maus tratos a centenas de cães”, os promotores alertavam para “um cenário dantesco”, com “cães acorrentados por todo o lado, saudáveis, doentes, novos, velhos”, com alguns que já tinham desistido da vida e estavam “apenas a aguardar que a morte chegue”.
Câmara diz que não havia condições para resgatar os animais antes
A Câmara de Santo Tirso disse, também este domingo, em comunicado, que o serviço municipal de proteção animal “manifestou sempre total disponibilidade às entidades que coordenavam as operações no terreno para transferir os animais para as instalações do Canil/Gatil Municipal, bem como procurar junto de outras instituições e parceiros soluções para acolher os animais”.
No entanto, “o plano de retirada apenas pôde ser executado durante o dia de hoje, porque não estavam, de acordo com as autoridades de proteção civil, reunidas as condições de segurança para o realojamento dos animais durante a madrugada de sábado”.
A autarquia do distrito do Porto afirmou ainda que “assumiu, desde a primeira hora, as suas responsabilidades no terreno, bem como realizou todos os esforços para salvaguardar a vida dos animais, não podendo sobrepor-se às entidades que coordenaram as operações”, tendo contado com a presença da Proteção Civil Municipal, Polícia Municipal, Serviço Municipal de Ação Social e Serviço Municipal de Proteção Animal.
No incêndio, que se iniciou em Valongo e chegou à freguesia tirsense de Agrela, morreram 52 cães e dois gatos, de acordo com números da autarquia, que lamentou os óbitos e a “instrumentalização política” do sucedido, adiantando ainda que foi possível contabilizar com vida 110 cães que se encontravam no abrigo.
Num novo comunicado enviado à Lusa, o município presidido pelo socialista Alberto Costa esclareceu que, “quando o incêndio foi dado por dominado, já de madrugada, e na sequência do período de rescaldo, foi possível contabilizar com vida 110 cães que se encontravam no abrigo de animais”, e não retirados como referido anteriormente.
A GNR esclareceu que a morte de animais no incêndio em Santo Tirso não se deveu ao facto de ter impedido o acesso ao local de populares, mas à dimensão do fogo e à quantidade de animais, porque à hora a que as pessoas tentarem aceder ao local “já tinham sido salvos os animais que foi possível salvar”.
Segundo a GNR, “os bombeiros combateram o incêndio, conseguindo evitar que o espaço ardesse todo, havendo condições para que os restantes animais permanecessem no local até que se resolvesse a situação, sendo retirados apenas os animais feridos, por indicação do veterinário municipal”.
Mais tarde, segundo a GNR, já na fase de rescaldo do incêndio, “durante a madrugada, diversos populares pretenderam aceder ao terreno, situação para a qual a Guarda foi alertada pela proprietária do terreno”.
“Pelo facto de, àquela hora, já não existir urgência, uma vez que a situação estava já a ser tratada pelas entidades competentes e por se tratar de propriedade privada, os militares da Guarda impediram os populares de aceder ao espaço”, justifica esta força de segurança.
Uma petição a pedir “justiça pela falta de prestação de auxílio aos animais do canil cantinho 4 patas em Santo Tirso” reuniu, até cerca das 20h20, mais de 65.000 assinaturas.
Bloco de Esquerda quer explicações do Governo
O Bloco de Esquerda anunciou entretanto que quer explicações dos ministros da Administração Interna e da Agricultura no parlamento, bem como da Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), sobre a morte de animais em abrigos de Santo Tirso. A informação do pedido de audições parlamentares foi transmitida à Lusa por fonte oficial do partido.
No Facebook, a deputada do BE Maria Manuel Rola refere que “em março de 2018 o Bloco de Esquerda já alertava para a situação deste e do outro abrigo”.
https://www.facebook.com/mariamanuelrola/posts/10223474342354837
“A DGAV sempre sacudiu a água do capote, mas como entidade estatal para o bem-estar animal tem de ser responsabilizada e o médico veterinário de Santo Tirso como representante desta entidade no terreno também. É inadmissível o laxismo e passa culpa de anos. Aqui há responsabilidades criminais, mas também políticas. Do poder local e central”, critica a deputada numa publicação na rede social.
A deputada eleita pelo círculo do Porto acrescenta a ligação para uma pergunta entregue pelo BE no parlamento em 24 de março de 2018 sobre a falta de condições de dois abrigos de animais em Santo Tirso, no distrito do Porto.
Também o PAN já anunciou que irá requerer explicações do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, sobre esta matéria e informou que apresentou queixa ao Ministério Público por “crime contra animais de companhia”, depois de ter acusado as autoridades de terem impedido o acesso ao local de populares e organizações não governamentais que pretendiam socorrer os animais por se tratar de propriedade privada.
PSD de Santo Tirso também pede apuramento do que se passou
O PSD de Santo Tirso defendeu o apuramento de responsabilidades no caso da morte de dezenas de animais carbonizados em abrigos da freguesia da Agrela, na sequência de um incêndio no sábado à noite.
“A falta de auxílio e a morte provocada a estes animais é muito grave e situações como esta não podem ser tratadas levianamente ou até esquecidas”, afirma a Comissão Política do partido, em comunicado.
O PSD responde que “as burocracias não podem, em nenhuma circunstância, ser colocadas acima da vida e dignidade dos animais”.
Uma petição a pedir “justiça pela falta de prestação de auxílio aos animais do canil ´Cantinho 4 patas´ de Santo Tirso já reuniu mais de 40 mil assinaturas.
O deputado único do Chega, André Ventura, anunciou este domingo que entregou um projeto de resolução no parlamento para recomendar ao Governo que inclua a proteção de animais nos planos nacionais de proteção civil.
Bastonário dos Veterinários pede levantamento nacional de abrigos de animais
O bastonário da Ordem dos Veterinários alerta que é “urgente” fazer um levantamento nacional de todos os abrigos para evitar acontecimentos semelhantes. Em declarações à Rádio Observador Jorge Cid diz que a tragédia podia ter evitada e “já não devia acontecer em Portugal, num país europeu e evoluído”.
Bastonário dos Veterinários pede levantamento nacional de abrigos de animais