Mais de dez anos depois da crise financeira e económica que resultou na necessidade de intervenção pública em vários bancos, sobretudo a partir de 2014, uma auditoria aponta falhas no modelo de resolução bancária usado em Portugal, sobretudo ao nível da independência operacional e da gestão de conflitos de interesse. Estas fragilidades são apontadas pelo Tribunal de Contas num quadro de alerta para o risco de “instabilidade do sistema financeiro devido ao impacto adverso da pandemia da Covid-19, o qual também agrava os demais riscos para o exercício adequado das competências de resolução bancária”.

Concluindo que a Autoridade de Resolução (na prática um departamento do Banco de Portugal) “ainda não se encontra habilitada (dotada dos meios adequados e preparada) para exercer as duas competências de resolução bancária com independência operacional”, o Tribunal de Contas considera importante prevenir e reduzir os “riscos significativos reportados e suscetíveis de serem agravados com o impacto adverso da pandemia.”

O Tribunal de Contas divulgou esta quarta-feira uma auditoria à prevenção da resolução bancária em Portugal que também é parte de uma auditoria paralela à atividade de resolução bancária na União Europeia e que conta com a participação dos tribunais de vários estados-membros.

Em Portugal, as funções de autoridade de resolução bancária são desempenhados pelo Banco de Portugal, através do Departamento de Resolução, que foi criado para o efeito.

As resoluções do BES (em 2014) e do Banif (2015), realizadas antes da criação do Mecanismo Único de Resolução, estiveram na origem da necessidade de reações políticas e regulatórias urgentes. Apesar deste reconhecimento, o Tribunal de Contas considera que o “processo escolhido pelo Banco de Portugal para viabilizar a exigida independência operacional das funções de resolução demorou a ser implementado, tendo o seu Departamento de Resolução definido a sua estrutura orgânica apenas em 2018”. Por outro lado, e quando está em causa a tomada de decisões, como planos de resolução, estas são feitas ao nível do conselho de administração do Banco de Portugal (ou pelo membro responsável por esta atividade).

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Em contraditório, o Banco de Portugal argumenta que “a exigência legal de independência operacional da função de resolução não requer independência ao nível da competência decisória”.

As conclusões do Tribunal de Contas são conhecidas dias depois da entrada em funções de um novo governador, Mário Centeno, que enquanto ministro das Finanças apresentou uma proposta de revisão do modelo de supervisão financeira A proposta previa a criação de uma autoridade de resolução bancária independente do Banco de Portugal, e com maior intervenção do Governo nesta competência. O plano ficou na gaveta, no meio de críticas fortes da parte supervisores, em particular sobre a possibilidade de o Estado, através da Inspeção-Geral de Finanças, poder vir a fiscalizar as entidades reguladoras.

Banco de Portugal e CMVM. Reforma da supervisão ameaça independência dos reguladores

Nesta auditoria, o Tribunal de Contas alerta para a ausência de um modelo de governo da autoridade nacional de Resolução que considera não possuir a necessária independência operacional da autoridade de supervisão, o Banco de Portugal. O diagnóstico passa também pela “insuficiência de recursos humanos, de sistemas de informação, de controlo de atividade e de autonomização de contas. Isto porque, conclui o Tribunal, a ANR é, “na prática, um dos departamentos do BdP”.

A auditoria alerta ainda para a falta de quatro planos iniciais de resolução, bem como para insuficiências detetadas em planos já aprovados que devem ser revistos e atualizados. Mas é na falta de meios e autonomia da atual Autoridade Nacional de Supervisão que mais se foca o documento que considera que esta entidade “não se encontra habilitada (dotada dos meios adequados e preparada) para exercer as suas competências de resolução bancária com independência operacional.

Para além desta preocupação e da necessidade de evitar o “risco de complacência (mesmo que não deliberada) da função de supervisão para os supervisionados, a auditoria centra-se igualmente sobre os impactos financeiros das medidas de resolução.

Os riscos para a dívida pública e a pressão do Novo Banco

O financiamento das intervenções tem sido feito pelo Fundo de Resolução, uma entidade que é sustentada pelas contribuições bancárias, mas que na prática tem recorrido ao Estado para financiar as intervenções na banca. Assim,  “resolução bancária em Portugal comporta riscos para a estabilidade do sistema financeiro nacional”, mas também para as finanças públicas.

O Fundo de Resolução apresentava (no final de 2019) recursos recursos próprios negativos de 7.021 milhões de euros em 2019 e avultada dívida (6.233 milhões de euros, 89% dos quais devidos ao Estado). Daí o risco assinalado “de pressão adicional sobre a dívida pública nacional, que advém de terem sido comprometidos recursos do Fundo de Resolução (nas resoluções do Banco Espírito Santo e do Banif) até 2046”. Para prevenir este risco, será necessário “minimizar a margem de erro no planeamento de resolução bancária”.

Um dos focos de potencial instabilidade que é detalhado pelo Tribunal de Contas é o Novo Banco, cujas necessidades de capital cobertas pelo mecanismo de capital contingente têm sido a principal razão para o aumento dos empréstimos do Estado ao Fundo de Resolução. Em 2020, numa operação muito polémica realizada já no quadro dos efeitos da pandemia, o Estado emprestou mais 850 milhões de euros para financiar a transferência de 1.035 milhões de euros efetuada pelo Fundo para o Novo Banco. Aliás, como destaca o Tribunal de Contas, foi “foi dívida contraída pelo Estado que, na prática, financiou 72% do recurso ao mecanismo de capital contingente” por parte do Novo Banco no valor de 2.976 milhões de euros (faltam 914 milhões de euros).

Neste quadro, o Tribunal reporta-se ainda ao comunicado dos resultados do primeiro trimestre do Novo Banco no qual se alerta para o impacto do “abrandamento da atividade bancária” e da volatilidade dos mercado no agravamento de custos, no reforço das provisões para riscos de crédito — cuja materialização estará a ser adiada pelo efeito das moratórias concedidas a famílias e empresas — , vem como prejuízos em operações. Fatores que estão a penalizar os rácios de capital, o que deverá como aliás já reconheceu o presidente da instituição António Ramalho, reforçar o cenário de recurso aos fundos ainda disponíveis no mecanismo de proteção acordado no contrato de venda assinado em 2017.

Tendo como pano de fundo uma crise económica mundial e nacional sem precedentes na sua dimensão, e os seus impacto no sistema bancário, o Tribunal de Contas reflete sobre a capacidade de resposta do modelo europeu de resolução, citando o professor de banca e finanças, Thorsten Beck. Segundo um estudo deste autor, o sistema de resolução bancária foi concebido para “falências bancárias idiossincráticas e não para crises bancárias sistémicas”, que poderão exigir uma estrutura diferente, bem como isenções para operações de ajuda.