“Nós, na FDA, não permitimos que a política interfira nas nossas decisões científicas. Por acaso estamos numa época política, mas a FDA vai continuar a basear-se nos dados”, escreveu Stephen Hahn, comissário da FDA (agência norte-americana do medicamento). As declarações fazem parte de uma série de publicações no Twitter, em resposta às críticas que o médico tem recebido desde domingo, quando anunciou, juntamente com Donald Trump, a possibilidade de uso de plasma em doentes com Covid-19. A Organização Mundial de Saúde disse que a evidência que o plasma convalescente resulte é fraca.
Trump descreveu o tratamento com plasma convalescente (a parte líquida do sangue de doentes que tiveram a doença Covid-19, e conseguiram recuperar, com os respetivos anticorpos) como “seguro e muito eficaz”, Hahn como tendo “uma eficácia promissora”. Mas o comissário atrapalhou-se quando confrontado por um jornalista e respondeu que eram “nuances de linguagem”. Pior mesmo foi quando o comissário usou um exemplo: “Diria que, se é uma das 35 pessoas em 100 cujos dados mostram que sobrevive como resultado disto [do tratamento com plasma], acho que é muito significativo para a pessoa e a família”.
Trump, Hahn e Alex Michael Azar II, secretário da Saúde e Serviços Humanos, todos usaram a mesma estatística: o plasma convalescente reduz a mortalidade dos doentes com Covid-19 em 35%. O problema é que não existem dados que apoiem esta afirmação, refere o STAT News. “Se sei de onde os 35% apareceram? Não”, disse Arturo Casadevall, investigador na Universidade de Johns Hopkins e um dos autores do estudo com o plasma convalescente na Mayo Clinic, citado pelo jornal The New York Times.
O investigador acrescentou que a FDA terá feito a sua própria análise com os dados que recebeu, eventualmente usando apenas uma parte dos dados com 3.000 doentes divididos em dois grupos: o que receberam plasma com um elevado nível de anticorpos, e o que recebeu plasma com baixos níveis. Ao fim de sete dias, 8,9% dos que receberam plasma com níveis elevados de anticorpos tinham morrido, contra 13,7% dos que receberam plasma com níveis baixos. A Science Magazine fez as contas: isto de facto dá uma diferença relativa de 35%, mas a diferença absoluta é 4,8%, logo 4,8 vidas salvas por 100 pessoas doentes — bem diferente dos anunciados 35.
A Mayo Clinic recebeu autorização para alargar o uso de plasma convalescente num programa especial da FDA e acabou por analisar se havia diferenças na mortalidade de doentes tratados nos primeiros três dias ou após o quarto. O estudo conduzido pela Mayo Clinic e financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) verificou que quando o tratamento era mais precoce reduzia a taxa de mortalidade nos doentes com menos de 80 anos não ventilados, numa diferença pequena mas considerada estatisticamente significativa.
O que isto pode querer dizer em termos clínicos é que ainda não se sabe, isto porque o estudo não foi conduzido como um verdadeiro ensaio clínico — nem era esse o objetivo: os doentes não foram escolhidos ao acaso e não havia nenhum grupo controlo (doentes que estivessem a receber um placebo ou um tratamento diferente) para se fazer a comparação.
A falta de ensaios clínicos randomizados (em que os doentes são divididos entre o grupo que recebe o tratamento e o grupo controlo ao acaso) e a quantidade de estudos que não usaram métodos fiáveis para medir os resultados fez com que a revisão dos artigos pela Cochrane (uma rede que avalia a evidência científica na área da saúde) não chegasse a nenhuma conclusão, nem sobre a eficácia dos plasma convalescente em doentes com Covid-19, nem nos potenciais efeitos adversos graves.
“Não temos certeza se o plasma convalescente é benéfico para pessoas internadas no hospital com Covid-19”, escrevem os autores da revisão sistemática. “Há apenas evidências de certeza muito baixa para a segurança do plasma convalescente para Covid-19.”
Esta segunda-feira, Soumya Swaminathan, cientista-chefe da OMS, reforçou esta ideia: “Os resultados, em alguns caso, apontam para algum benefício, mas não são conclusivos. Neste momento, a evidência é ainda de qualidade muito baixa”.
Os dados da Mayo Clinic, mesmo com 35 mil doentes envolvidos, não eram ainda suficientemente fortes para que a FDA pudesse emitir uma autorização de uso de emergência. Pelo menos foi isso que defenderam alguns dos especialistas do NIH, incluindo Anthony Fauci, conselheiro de Donald Trump para a pandemia de Covid-19, noticiou o jornal The New York Times. O alegado atraso nesta autorização foi criticado por Trump afirmando que era uma decisão política para que só houvesse autorização depois das eleições.
Embora a opção de administrar o plasma de doentes com Covid-19 que recuperaram da infeção e contenham anticorpos para neutralizar o vírus pareça atraente, esta autorização de uso de emergência, infelizmente, não é baseada em fundamentos científicos comprovados e é até perigosa”, disse Gaetan Burgio, investigador na Universidade Nacional Australiana.
A autorização de uso de emergência foi finalmente emitida este domingo e anunciada com pompa e circunstância pelo Presidente dos Estados Unidos. Os excessivos agradecimentos ao Presidente, a cautela nas respostas dadas aos jornalistas e o entusiasmo no anúncio dos resultados do uso de plasma de doentes com Covid-19 recuperados marcaram as intervenções de Stephen Hahn. Um dia depois, no entanto, assumia que algumas críticas faziam sentido: “Fui criticado pelos comentários que fiz no domingo à noite sobre os benefícios do plasma convalescente. A crítica é inteiramente justificada. O que deveria ter dito melhor é que os dados mostram uma redução do risco relativo, não uma redução do risco absoluto“.
Media coverage of FDA’s decision to issue emergency authorization for convalescent plasma has questioned whether this was a politically motivated decision. The decision was made by FDA career scientists based on data submitted a few weeks ago.
— Dr. Stephen M. Hahn (@SteveFDA) August 25, 2020
Os especialistas da FDA, citados pelo STAT News, estão preocupados que Hahn esteja a navegar às cegas, sujeito às pressões de Donald Trump, isto porque tanto ele como o núcleo de assessores mais próximos não têm qualquer experiência na agência — muito menos com uma agenda política, científica e de saúde pública tão forte como a que se vive presentemente. O comissário nega a influência política, mas a pressão é pública. Num tweet, em que identificou o comissário, Donald Trump acusou a FDA de estar deliberadamente a atrasar os ensaios clínicos com as vacinas contra o SARS-CoV-2, alegadamente para o prejudicar nas eleições — sem apresentar, no entanto, nenhuma prova para esta alegação.
Na conferência de imprensa, Trump voltou a falar das alegadas pessoas que estão a tentar boicotar o avanço dos tratamentos e vacinas. “Temos algumas respostas incríveis [contra a Covid-19] e não vamos deixar que sejam retidas”
Uma dessas resposta é precisamente o uso de plasma convalescente. O anúncio da autorização de uso de emergência surge precisamente na véspera da convenção republicana que formalizaria a sua candidatura a um novo mandato. Aprovar medicamentos e vacinas contra a Covid-19 antes das eleições são a oportunidade de Trump poder dizer que está a fazer tudo para controlar a pandemia.