Socióloga e investigadora principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Luísa Schmidt considera que “os projetos de sustentabilidade são escolas de mudança” e por isso defende que os governos e as autarquias devem envolver os cidadãos nas iniciativas ambientais, pois é nesse envolvimento que está a chave do êxito.
Nesta entrevista à pioneira da Sociologia do Ambiente em Portugal, e autora de centenas de publicações científicas e de divulgação, fica também claro que “é importantíssimo investir cada vez mais na mobilidade elétrica limpa”. Luísa Schmidt entende que a adesão dos cidadãos a automóveis elétricos vai estar dependente num futuro próximo do desenvolvimento tecnológico da indústria automóvel, no sentido de conseguir carros a preços mais reduzidos e com maior autonomia de baterias. Afirma ainda: “É preciso criar mais postos de abastecimento, se não, não vai haverá possibilidade de dar vazão ao que pode ser o paradigma do transporte elétrico eficiente.”
Os poderes públicos estão empenhados na sustentabilidade?
A questão da sustentabilidade já vem de longe, como sabemos. Sobretudo, foi muito trabalhada no Relatório Brundtland em 1987, quando se estabelece a própria definição de desenvolvimento sustentável – segundo a qual, temos de satisfazer as necessidades do presente, sem comprometer a satisfação das necessidades das gerações futuras. São muito importantes as quatro dimensões da sustentabilidade: uma economia viva e mais inteligente, regeneração e gestão ambiental, coesão social e novas formas de governança, em que as pessoas participem cada vez mais nas decisões. O que é que vemos em relação aos sucessivos poderes, e aos atuais, em Portugal? Não há uma grande tradição de participação, porque a nossa democracia, como sabemos, é mais recente do que a de outros países europeus. Não criámos hábitos de participação que implicam, por um lado, acesso à informação e portanto abertura e transparência por parte das instituições e, por outro lado, uma atitude mais participativa por parte dos cidadãos. Tem havido um esforço grande por parte de muitas autarquias para conseguir um desenvolvimento mais sustentável no sentido da conciliação integração das quatro dimensões que referi. Dou um exemplo: tive ocasião de colaborar num projecto que envolveu 26 autarquias, chamado Climadapt.Local e financiado pelo fundo competitivo EEAGrants [projeto com coordenação do professor universitário Filipe Duarte Santos e que envolveu a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e o Instituto de Ciências Sociais, entre outros], que decorreu entre 2015 e 2017. O objectivo foi elaborarestratégias de adaptação às alterações climáticas em 26 municípios portugueses envolvendo fortes mecanismos participativos. A adaptação vai ser sempre fundamental porque, mesmo que parassem agora todas as emissões de gases com efeito de estufa, já teremos de nos adaptar aos impactos das alterações climáticas, porque eles estão aí. Basta pensar, entre outras coisas, no nível dos oceanos, que continua a subir. Portugal, sendo uma faixa costeira, vai sofrer esses impactos, sem dúvida mesmo nos cenários mais optimistas. Ora, neste projecto, as 26 autarquias tiveram de e envolver os “stakeholders” ou agentes locais, nas estratégias de adaptação às alterações climáticas e isso criou dinâmicas muito interessantes. É apenas um exemplo – e já exista em outros – que mostra a importância de fornecer informação e de comunicar ciência para levar a que as pessoas participem. É preciso fazer mais? Sem dúvida alguma. Não podemos continuar a conviver com decisões sobre a nossa vida, que têm implicações diretas no nosso dia-a-dia, como agora os fundos do Pacto Ecológico Europeu que irão chegar ao país,, sem que as pessoas saibam como vão ser aplicados e em muitos casos sejam ouvidas num processo bottom-up. Se não se ouvir as pessoas e não se comunicar o conhecimento e as medidas necessárias, as políticas públicas não terão sucesso. Democracia participativa é chamar as pessoas, envolvê-las, fazê-las participar em decisões e dessa forma responsabilizá-las também.
Além desse exemplo que deu, o que é que destaca como mais relevante nos últimos anos ao nível da ecologia e sustentabilidade em Portugal, sejam políticas ou iniciativas de organizações ?
Vou sempre dar à escaola local por ser mais fácil para desencadear novos processos. Por exemplo, as biorregiões, que existem a nível mundial. Em Portugal, temos como exemplos pioneiros Idanha-a-Nova ou São Pedro do Sul, mas também os municípios da Margem Esquerda do Guadiana. Dentro da área de influência da sua região, procuram tudoarticulam agricultura de proximidade, turismo e cultura, e outras actividades económicas numa estratégia conjunta para a valorização e gestão sustentável dos recursos endógenos, apoiando e estimulando todas as atividades sustentáveis que os cidadãos que lá vivem, ou lá vão, produzem e fazem. A ideia é esta: criar e apoiar o florescimento de mais projetos de sustentabilidade. Poderia também falar das Eco Aldeias, que também é uma rede internacional e de que Portugal faz parte com mais de 250 Eco Aldeias, que quase se tornam autossustentáveis – não totalmente, porque não é isso que se pretende, mas com maior autonomia e segurança do ponto de vista da produção alimentar e da auto produção de energias limpas. Julgo que com crise do covid-19 ficou claro que temos de criar mais resiliência ao nível local, o que passa pela agricultura de proximidade, com cadeias mais curtas entre produção e consumo, assim como pelo modelo das comunidades energéticas incluindo uma recuperação eficiente dos edifícios, entre outros aspectos.
A escala local dá melhores resultados?
É muito mais fazível, e legível e rápido, começar por aí os projetos de sustentabilidade, e só depois passar para uma escala regional e depois nacional. Da minha experiência o que realmente acaba por ter algum efeito e por fazer a diferença é aquilo que começa à escala local, porque as pessoas entendem melhor e envolvem-se diretamente porque é viável num tempo mais curto. E depois é interessante saber que estes projectos criam rede nacional e muitas vezes internacional. Quando falamos em sustentabilidade, temos de envolver a sociedade civil. Outro exemplo, que recentemente vi, tem que ver com a Câmara Municipal de Loulé, que aliás tem muitos projetos na área da sustentabilidade. Os alunos das escolas foram envolvidos na questão energética e também na questão da mobilidade. Estão a criar índices e indicadores nestas duas áreas, que depois evidenciam a mudança e a diferença. Os alunos medem a eficiência energética das próprias escolas e quando conseguem poupar energia aplicam o dinheiro poupado noutras áreas. Os projetos de sustentabilidade são verdadeiras escolas de mudança, de conhecimento e cidadania. Dou-lhe outro exemplo da importância do nível local. Neste momento numa parceria entre o Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, ao Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e aà Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, vamos começar um projeto financiado pela Fundação La Caixa que se chama ODSlocal. Pretendemos, com as autarquias, o cumprimento, até 2030, dos 17 objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) aprovados pelas Nações Unidas em 2015. Ora, começar pelos municípios criando uma dinâmica dea vascularidade local parece-nos mais eficaz. Muitas vezes, os planos de escala nacional não passam à prática, porque as pessoas não são envolvidas desde o início e às vezes não estão sequer a entender o que está em causa.
Considera que a iniciativa Lisboa Capital Verde Europeia 2020 é um bom exemplo desses projetos locais com consequências de escala nacional?
Houve muitas mudanças interessantes que decorreram do Plano Verde do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles, aprovado em 2007 por unanimidade na Assembleia Municipal de Lisboa. É um plano extremamente completo, com a visão estratégica integrada e criativa que o arquiteto paisagista Ribeiro Telles trouxe para a cidade e que a CML está a pôr em prática. Implica uma estrutura ecológica municipal e já levou à aprovação de uma série de medidas e de obras, embora eu seja muito crítica de algo daquele plano que não tem sido respeitado como é o caso do chamado: o ‘sistema de vistas’ da cidade das 7 colinas que se espraiam até ao rio. Isto, porque ao construir na frente ribeirinha como infelizmente continua a acontecer (agora em Alcântara e Santos por exemplo),está a emparedar-se uma das principais fontes de vida e de bem-estar na cidade de Lisboa que é a relação com o rio, o e que, aliás, também cria o sistema de brisas e a harmonização do clima dentro da cidade.
Está a dizer-nos que Lisboa Capital Verde Europeia 2020 é uma oportunidade para se repensar essas questões que agora apontou como problemas?
É uma ocasião para discutir tudo isto. Se o lema da Capital Verde é “escolher evoluir”, o quetal implica continuar a ‘escolher’ aquilo que já está a ser feito, isto é, o Plano Verde, e até ir mais além – ‘evoluir’ – e, por exemplo, criar mais espaços verdes para usufruto público na cidade. A pandemia tornou evidente o quanto precisamos de espaços de respiração e para melhorar a qualidade de vida na cidade. Lisboa precisa de mais espaços verdes e livres, que se tornam hoje ainda mais necessários, até pelas questões de saúde física e mental. É verdade que nos últimos anos se construíram muitos, se alargaram passeios, se plantaram árvores…, não vamos negar as evidências. Já se melhorou a cidade de Lisboa, mas é preciso continuar, – continuar o Plano Verde, que não está totalmente aplicado e evitar mais erros fatais, alguns dos quais ficam para sempre, como é o caso da construção de edifícios em sítios que vão contra toda a lógica da paisagem, da história e da sanidade da capital, fechando as perspectivas entre o rio e a cidade, obstruindo as colinas e os seus bairros, privilegiando muito poucos e roubando a quase todos a luz, a vista e o rio..
Falemos da mobilidade sustentável. Qual é o papel do Governo, dos cidadãos e da indústria automóvel?
Começando pelo Governo, é importantíssimo investir cada vez mais na mobilidade elétrica limpa. Infelizmente, estivemos muitos anos em Portugal sem investir em comboio e metro, desperdiçamos muitos quadros comunitários europeus sem aplicar o dinheiro na rede ferroviária e na rede de metro nas grandes cidades e suas áreas metropolitanas. O que aconteceu desde 1986, quando entrámos na União Europeia, foi atéé a desativação de centenas de quilómetros de linhas férreas, em vez de as melhorarmos e estendermos como deveria ster sido. Tem de haver transporte rápido, não sei se é o TGV se outras tecnologias que já existem de comboios rápidos, porque não podemos ficar desligados do resto da Europa acantonados nesta periferia. Em suma, pPrecisamos de transportes elétricos e eficientes. Por outro lado, jJá que vamos entrar cada vez mais no paradigma da mobilidade elétrica privada, é preciso também criar postos de abastecimento em vários sítios, não só naqueles que já existem, mas também nos centros comerciais – alguns já têm –, nos condomínios e prédios, nas estações de serviço. Se não, não vai haver possibilidade de dar vazão ao que pode ser o paradigma do transporte elétrico eficiente. Se os cidadão tiverem transportes mais eficientes, utilizarão menos o automóvel individual. E também não se pode continuar a permitir o êxodo da cidade de Lisboa por parte dos seus residentes. Nos últimos anos houve uma sangria dos bairros mais antigos de Lisboa:, as pessoas saíram porque não tiveram possibilidade de pagar rendas demasiado elevadas e foram para os subúrbios. Como não temos transportes suburbanos eficientes acabam as maioria das vezes por ter de utilizar os automóveis. É preciso criar políticas públicas de habitação e também de transportes para que as pessoas contribuam para uma mobilidade mais limpa. A maneira como as pessoas têm aderido aos modos de transportes suaves tem sido importante e até surpreendente pela quantidade, mas nem toda a gente pode andar de bicicleta ou de trotinete. Finalmente, as empresas. Julgo que tem havido uma adesão, sobretudo das pessoas com mais posses económicas, ao automóvel elétrico. Era muito importante construir automóveis [elétricos] mais acessíveis. Há dois problemas: o preço e a autonomia, é essa a razão por que as pessoas não compram mais automóveis elétricos, dizem os inquéritos que fazemos. É preciso que a indústria consiga criar automóveis com baterias de maior autonomia e acessíveis para a classe média. Estou convencida de que isso vai acontecer a muito breve prazo. Se a indústria o fizer, julgo que a adesão será com certeza muito mais elevada.
Pensa que a consciência ecológica é uma moda? Que pontos positivos pode isso ter?
Gosto mais de falar de sensibilidade e de conhecimento ecológico e ambiental. Cada vez mais a ciência diz-nos que não podemos continuar a viver num sistema que está a sobreutilizar recursos e a gerar níveis de poluição tão elevados que provocam as alterações climáticas e os seus impactos. Ou seja, estamos perante uma crise ambiental global em descontrolo compulsivo que passa pela degradação dos oceanos, da biodiversidade, das florestas, dos recursos em geral, escassez de água e todo o restante rol de consequências provocadas pelos impactos das alterações climáticas. Isso tem levado a uma maior atenção e preocupação das populações – e sobretudo dos mais jovens – com os problemas ambientais. O que está em causa é uma questão de sobrevivência muito pragmática: as gerações mais novas estão a ver que lhes vamos deixar um mundo demasiado poluído, sem recursos suficientes, em extrema degradação. e, por isso querem mudanças. Há novos movimentos a aparecer por todo o lado e em todo o mundo, e não só dose mais novos, mas eles são particularmente relevantes porque são os muito audíveis e vão ser os decisores daqui por pouco tempo. O movimento da greve climática ‘Fridays for the Future’ é dos fenómenos políticos mais curiosos e interessantes a que se assistiu ultimamente, e desafia os poderes políticos e institucionais a todos os níveis, aliás, os políticos e a sociedade em geral tende a ouvi-los, o que é saudável e muito importante.
Mas há outros grupos de outras mudanças e movimentações sociais que estão a emergir. Há pouco falei das biorregiões e do modo como muitas gente decide ter uma vida mais ligada à natureza. São os “novos rurais”. As pessoas não querem abdicar de muitos dos confortos que a nossa sociedade faculta, mas podem enveredar poquerer aquilo a que em 1987 a senhora Brundtland designava “modéstia sofisticada”: menos consumismo viciado e cultura de descarte, mais cultura de consumo sofisticado e de bem-estar.Também há, por exemplo, a Rede ‘Cuidar da Casa Comum’ que promove a Ecologia Integral proposta pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Si. Sente-se que há uma tendência para estilos de vida um pouco diferentes e para se dar mais atenção à sustentabilidade, ou seja, conciliar um modelo tecnologicamente interessante e eficiente com menos desigualdades sociais e menor pressão sobre os recursos. Se inventariarmos este movimentos, vemos não é só uma questão de moda – também é –, mas uma necessidade urgente, uma questão de inteligência, para todos vivermos melhor e podermos continuar por aqui, no único Planeta que temos. Sente-se já a emergência destes movimentos em muitas partes do mundo, e não é só no mundo ocidental desenvolvido, é também em muitos outros países em desenvolvimento. São movimentos sociais improváveis há uns anos e que, hoje, com as redes sociais, conseguem ligar pessoas que não se comunicariam nunca. A sociedade está a mover-se no sentido de uma maior sustentabilidade, o que assinala uma nova vitalidade e disposição colectiva para a mudança, para várias mudanças que já estão em curso. São tendências, mas têm o seu significado.
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