No seu primeiro discurso do Estado da União, Ursula Von der Leyen subiu o tom de voz para puxar as orelhas a Boris Johnson, citando Thatcher para lembrar que os britânicos “não rasgam acordos“. Avisando que “o povo europeu ainda está a sofrer com a pandemia”, a presidente da Comissão Europeia, exige mais poder para Bruxelas na área da saúde. Anunciou ainda que irá propor em breve um “quadro de salários mínimos” que permita a todos os europeus acederem a um salário mínimo. Quer valorizar a relação com os EUA, seja com Trump ou Biden, embora lembre que não tem concordado muito com a Casa Branca.

Sobre a Bielorrússia, Von der Leyen avisou Lukashenko que a União Europeia está do lado do povo que pacificamente protesta e aproveitou para deixar claro que não quer nada com a Rússia de Putin, que tem um “padrão” que jamais será aceite por Bruxelas. O discurso durou cerca de uma hora e meia, numa intervenção em que Von der Leyen lembrou que a pandemia mostrou as fragilidades da União Europeia, mas que dessa fragilidade surgiu uma nova vitalidade europeia.

Leia aqui em cinco pontos, alguns dos destaques do primeiro discurso do Estado da União de Ursula Von der Leyen:

Vem aí proposta para que salário mínimo exista em toda a UE

A presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, revelou esta quarta-feira no discurso da União Europeia que o colégio de comissários que lidera vai fazer em breve uma proposta de um “quadro de salários mínimos” em todo o espaço europeu. A presidente da comissão defendeu que a “dignidade do trabalho deve ser consagrada no espaço europeu”, mas que “para muitas pessoas, o trabalho não compensa”. Von der Leyen é defensora do salário mínimo em todos os países (há seis países onde não existe) e menos discrepâncias num valor que, no espaço europeu, vai desde 312 euros por mês na Bulgária até 2.142 euros no Luxemburgo.

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Ursula Von der Leyen advertiu que “o dumping salarial é uma realidade que destrói a dignidade do trabalho, penaliza o empresário que paga salários decentes e distorce a concorrência leal no mercado único”. É por isso que “todos devem ter acesso ao salários mínimos”, seja por via da “concertação social” seja por via da imposição de um salário mínimo legal.

Isto não significa, porém, um salário mínimo uniformizado em todo o espaço europeu, mas um apoio aos Estados-membros para que todos tenham um salário mínimo do país o mais digno possível. Até porque, lembra Von der Leyen, “em muitos Estados-Membros vê-se que um salário mínimo bem negociado [entre patrões, governo e sindicatos] garante empregos e cria justiça — tanto para os trabalhadores como para as empresas que realmente os valorizam”. E concluiu: “O salário mínimo funciona. É hora de o trabalho ser remunerado.”

Brexit. Avisos a Boris, com ajuda de Thatcher: Acordos são para cumprir

Ursula Von der Leyen diz que é tempo de reforçar laços no Canal da Mancha, numa referência às relações entre União Europeia e Reino Unido. Lembrou, com nostalgia, o momento em que o Parlamento Europeu se despediu dos britânicos cantando o Auld Lang Syne no hemiciclo no início do ano.

A presidente da UE admite que as “negociações são sempre difíceis”, mas é menos compreensível com o facto de as partes não cumprirem o acordo. Numa altura em que Boris Johnson tenta passar por cima de algumas alíneas do acordo para o Brexit, Von der Leyen lembrou Margaret Thatcher: “O Reino Unido não rasga tratados. Seria mau para o Reino Unido, mau para as relações com o resto do mundo e mau para qualquer futuro tratado de comércio”. E acrescentou: “Isso era verdade naquela época e é verdade hoje (…) A confiança é a base de qualquer boa parceria.”

Von der Leyen não está disposta a recuar e lembra que o acordo de Brexit “levou três anos para ser negociado” e todos trabalharam de forma “incansável nele, linha por linha, palavra por palavra”. Lembra que Londres e Bruxelas conseguiram um acordo final que “garante os direitos dos nossos cidadãos, interesses financeiros, a
integridade do Mercado Único – e, principalmente, o Acordo da Sexta-feira Santa”, que foi o que todos concordaram que era “a melhor e única maneira de garantir a paz na ilha da Irlanda.” E, por isso, nem um passo atrás: “Nunca vamos recuar nisso. Este acordo foi ratificado por esta câmara [Parlamento Europeu] e pela Câmara dos Comuns”. O sinal de Bruxelas é claro: se Boris rasgar o tratado está a violar o direito internacional.

Pandemia ainda faz sofrer. Mais poder para Bruxelas na área da saúde

Ursula Von der Leyen começou aquele que é o seu primeiro discurso do Estado da União a falar da forma como o novo coronavírus marcou a vida europeia. “Um vírus milhares de vezes mais pequeno que um grão de areia mostra quão frágil pode ser a nossa vida”, disse. Ursula Von der Leyen destacou também que enviou uma carta de intenções ao presidente do Parlamento Europeu e à chanceler alemã, Angela Merkel, que preside ao Conselho neste semestre, com as prioridades da União, mas onde deixou o aviso: “O povo da Europa ainda está a sofrer”.

Von der Leyen diz que este é o momento de “criar uma União Europeia da Saúde mais forte”, propondo o aumento dos fundos para o programa EU Health. Von der Leyen lembra ainda que esta é uma “crise global”, que exige “lições globais”. É por isso que “em conjunto com o primeiro-ministro [Giuseppe] Conte e a presidência italiana do G20” vai no próximo ano promover uma cimeira global da Saúde.

O assunto da saúde também é algo que Von der Leyen quer discutir na conferência sobre o Futuro da Europa, uma vez que “está agora mais claro do que nunca [com a pandemia] que devemos discutir a questão das competências da saúde”. A presidente da comissão europeia quer que Bruxelas tenha mais poder na definição de políticas na área da saúde, algo que atualmente depende muito de decisões individuais dos Estados-membros.

A presidente da comissão europeia defendeu ainda que é preciso “reforçar e dar mais poder à Agência Europeia do Medicamento e ao Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças.” Simultaneamente, Von der Leyen anuncia que a Comissão vai  criar uma “BARDA europeia, uma agência para investigação avançada no campo da biomedicina.”

O povo da Bielorrúsia, a rival China e “valorizar” aliança com os EUA

Ursula von der Leyen fez um mapa daquilo que será a política externa da União Europeia. Sobre a vizinha Bielorrúsia, a presidente da Comissão Europeia quis dizer “alto e bom som: a União Europeia está do lado do povo da Bielorrússia”. Que é a mesma coisa que dizer que está contra Aleksandr Lukashenko.

A presidente da comissão europeia disse que fica comovida com “a imensa coragem daqueles que se reúnem pacificamente na Praça da Independência” ou com as marchas de “mulheres destemidas”. Von der Leyen diz que as eleições que levaram os bielorrusos às ruas “não foram livres nem justas” e que “a resposta brutal pelo governo desde então tem sido vergonhoso”.

Von der Leyen aproveitou a boleia para cortar cada vez mais as relações com Vladimir Putin, que é o maior apoiante de Lukashenko. “Aos que defendem laços mais estreitos com a Rússia, digo que o envenenamento de Alexei Navalny com um agente químico avançado não é um caso único. Vimos o mesmo padrão na Geórgia e na Ucrânia, na Síria e Salisbury — e na interferência eleitoral em todo o mundo.” Para von der Leyen estes não são casos, mas antes um “padrão” russo que a Europa não pode aceitar.

No discurso houve algumas indiretas a Donald Trump, dizendo que nunca a UE irá optar por um discurso “egoísta” que seja “Europe first”, numa clara alusão ao slogan America First e a um certo egoísmo e unilateralismo de Trump nas relações com os outros países. Von der Leyen defende, no entanto, um aprofundamento das relações com Washington: “Nem sempre concordamos com as decisões da Casa Branca, mas iremos sempre valorizar a relação transatlântica”. E sugere que tanto irá trabalhar com Donald Trump como com Joe Biden: “Aconteça o que acontecer ainda este ano, estamos prontos para construir uma nova agenda transatlântica”. Para Von der Leyen são necessários “novos começos com velhos amigos”.

A relação diplomática com Pequim também teve direito a referência no discurso. Von der Leyen define a China como “um parceiro de negócios, um competidor económico e um rival sistémico”. A presidente da Comissão Europeia acrescentou ainda que a “relação entre a União Europeia e a China é simultaneamente uma das mais importantes do ponto de vista estratégico, mas também das mais desafiadoras.”

“Europa evitou desemprego em massa” com programa SURE

Von der Leyen elogiou os membros do Parlamento Europeu pela forma como criaram em conjunto com a Comissão o programa SURE, que permitiu financiamento para que programas de lay off pudessem ser suportados pelos Estados-membros e manter empregos. “Se a Europa evitou o desemprego em massa, como aconteceu noutros lugares, é porque milhões aproveitaram estes apoios”, lembrou Von der Leyen, que elogiou mais uma vez o facto de o Parlamento e a Comissão terem feito tudo em “tempo recorde”.

A presidente da Comissão Europeia quis ainda deixar claro que “este não é o momento de retirar apoios” e baixar a guarda, uma vez que, tanto a nível da economia como da saúde, ainda se sentem e vão continuar a sentir os efeitos da pandemia de Covid-19.