Das 15 às 17h, membros do Governo e deputados estiveram reunidos para debater o Plano de Recuperação e Resiliência no Parlamento. Mas o debate público — o primeiro sobre o tema — teve muito pouco de debate. Depois do fim dos quinzenais, o primeiro-ministro quis fintar todas as críticas e propor ele mesmo um debate antes de começar o novo modelo bimensal (com uma grelha de tempos própria), mas afinal não houve mesmo grande discussão de ideias nem respostas de António Costa, que ficaram condensadas em oito minutos de respostas do primeiro-ministro um debate de 117 minutos (quase duas horas).

Nem deu para aquecer a retórica parlamentar. António Costa interveio primeiro e foi preciso todas as bancadas intervirem, algumas delas até foram a uma segunda ronda, para o primeiro-ministro pedir a palavra para “uma intervenção”, como anunciava o Presidente da Assembleia da República. Mas Costa dizia que não, que o que queria era responder às perguntas/provocações/críticas que tinha registado até aí. Não que tivesse deixado muitos minutos para isso: tinha apenas 12 e ainda queria que uma ministra interviesse. Assim, só aproveitou parte para disparar em rajada respostas mais diretas aos adversários políticos, a primeira delas, curiosamente, para criticar Rui Rio que acusou de não trazer propostas a este… debate.

Os quinzenais acabaram. Mas nem quem propôs a mudança concordou

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O deputado único do Iniciativa Liberal, por exemplo, nem tinha ainda falado no plenário quando Costa deu, finalmente, respostas aos deputados. Catarina Martins não deixou passar em branco e fez questão de lamentar o modelo de debate em que não há sequer “pergunta-resposta”, sublinhando que foi o “PS e o PSD que se associaram para diminuir o escrutínio parlamentar” quando puseram fim aos debates quinzenais. O debate pedido pelo socialista acabou assim por ser pouco produtivo em explicações públicas sobre o esboço que já fez do Plano que vai ter de entregar a 15 de outubro em Bruxelas e do qual ainda não se sabe mais do que alguns valores em bloco para as áreas prioritárias. Então o que foi o primeiro-ministro fazer ao Parlamento? Tentar uma resposta (com pouco efeito) às críticas ao fim dos quinzenais — que o Presidente da República contornou sem deixar de intervir –, vincar o que o separa do PSD (foi Rio que começou a contenda) e acalmar os seus parceiros de eleição de quem precisa obrigatoriamente para o Orçamento do Estado para 2021.

Sócrates e Passos chamados à receção. Costa e Rio cada vez mais distantes

Costa vai dizendo e repetindo que quer “contar com todos” e que os “consensos” são importantes na definição do plano estratégico para os próximos 10 anos, até porque nos próximos 10 anos cabem três governos diferentes, e nunca se sabe quem estará ao comando das operações. Mas a verdade é que tanto António Costa como Rui Rio passaram mais tempo do debate a atacar-se mutuamente olhando para trás do que a procurarem entendimentos olhando para a década que aí vem. Se dúvidas havia de que os dois não estão virados para entendimentos (depois de se terem aproximado no auge da crise pandémica com o PSD a viabilizar o orçamento suplementar), este regresso à arena parlamentar tirou todas as teimas. Ou pelo menos foi essa a mensagem que ambos quiseram passar.

Rui Rio foi o primeiro a intervir, depois de uma curta apresentação do Plano de Recuperação por parte de António Costa, e foi claro no que ao desentendimento diz respeito: nada é bom no Plano desde logo porque a prioridade devia ser dada às empresas e não ao Estado, porque “são as empresas que criam emprego e que transformam a competitividade global da economia portuguesa”. Nem sequer a previsão de aumento do salário mínimo nacional que o Governo espera prosseguir é boa — e Rio até teria tendência a defender o aumento do salário mínimo, e até admite que “não dá votos” dizer que o salário mínimo não deve aumentar. É que aumentar o salário mínimo agora, numa altura em que a inflação é nula e o desemprego galopante, pode ser contraproducente para as empresas por agravar os custos. E foi aí que veio o primeiro fantasma do passado: José Sócrates.

“Faz-me lembrar quando o Governo de José Sócrates aumentou os salários dos funcionários públicos em 2,9% sem ter condições para o fazer, para logo a seguir cortar os salários”, disse. E sentou-se.

Costa até podia estar prontinho para se levantar e responder, ali no seu lugar na bancada do Governo, como acontecia nos debates quinzenais. Mas ficaria em silêncio por longos minutos. Uma hora, mais precisamente. O PS ainda ensaiou uma resposta a Rio, criticando o facto de ter levado a debate o “papão” de 2015 à falta de melhores argumentos, mas seria Jerónimo de Sousa quem, ironicamente, faria a defesa do Governo nesta matéria de salário mínimo ao criticar Rio por defender os interesses “do grande capital à espera de encher os bolsos à custa dos trabalhadores”.

Ainda nem todos os partidos tinham intervindo (as intervenções eram por ordem de inscrição e o IL, por exemplo, ainda nem se tinha inscrito), quando, ao fim de uma hora, o primeiro-ministro lá pediu a palavra — e Ferro Rodrigues deu achando que era para “uma intervenção”. Mas Costa queria mesmo era responder às perguntas, que tinha anotado num papel, e assim fez, saindo as respostas disparadas porque não tinha tempo para falar. Gastou 8 de 12 minutos, deixando 4 para a ministra Mariana Vieira da Silva. Mas foi mesmo com Rui Rio que se deteve mais tempo e eis que chegou o segundo fantasma do passado: Pedro Passos Coelho.

Primeiro, Costa atacou Rio por não ter levado a debate “uma única ideia ou proposta” para um programa que tem tamanha “importância estratégica para o país”. Depois, a “única ideia que levou” foi o não-aumento do salário mínimo. Pretexto ideal para lembrar a Rio que o seu “antecessor”, Passos Coelho, dizia “que o aumento do salário mínimo destruiria a economia”. “O que demonstrámos ao seu antecessor – e que lhe iremos demonstrar porque certamente estará cá – é que o reforço do rendimento das famílias é essencial” para a recuperação da economia. E ainda defendeu que o Plano de Recuperação não é para “as empresas que contam os cêntimos no aumento do salário mínimo nacional”, mas sim para as empresas do futuro e para as pessoas que contam os cêntimos. Dito isto, Costa manteve o que a esquerda queria ouvir: vai prosseguir a trajetória de aumento do salário mínimo. Não vai mudar nada.

Costa “disciplinado” e sensível à “insegurança” da esquerda

“Disciplinado” com o PCP e atento à “insegurança” do Bloco de Esquerda. Perante a esquerda e em plenas negociações (sempre sensíveis) do Orçamento do Estado, o primeiro-ministro apareceu com pés de lã para os seus parceiros dos últimos quatro anos. E sem levantar aquele desafio melindroso que deixou da última vez que esteve ali naquela mesma tribuna: para um “entendimento sólido e duradouro”. A resposta a isso já a conheceu nos últimos dias e não vale a pena tocar num “irritante” desta natureza nesta altura. Assim, Costa ficou pela parte que os pode unir em mais um Orçamento. E os seus parceiros também foi para aí que apontaram agulhas.

Costa insiste que bom programa é o que “conta com todos” e está “perplexo” por Rio não ter dado uma ideia

“Retive mais uma vez, c0mo tenho feito disciplinadamente desde a sua intervenção no encerramento da Festa do Avante, as múltiplas preocupações que revela e terão expressão no próximo Orçamento do Estado e às quais procuraremos responder na apreciação conjunta que temos em curso”. A frase de Costa foi feita à medida dos ouvidos comunistas, que não gostam de ouvir falar em acordo para aprovações, mas antes de “apreciações conjuntas”, nem de aprovações garantidas mas antes de trabalhos em curso, e que enviaram o seu longo caderno de encargos a partir da Quinta da Atalaia, logo no início de setembro.

Para o Orçamento, tudo certo, quis o socialista que os comunistas ficassem desde já a saber. Já quanto ao Plano de Recuperação, nada de falar de acordos longos, mas apenas vender a “oportunidade única de não fazer o que a União Europeia nos impõe, mas aquilo que queremos fazer”. Que Ursula von der Leyen não oiça o primeiro-ministro que tem jurado cumprir com tudo o que Bruxelas exigir. Mas ao PCP deixou esta cenoura à frente do nariz, de o país poder guiar uma mão cheia de fundos nos próximos dez anos, e até apontou em concreto os 6,6 mil milhões “para responder às necessidades sociais concretas do nosso povo”. Nem um comentário sobre os “compromissos abstratos de concretização duvidosa” que Jerónimo de Sousa atirou no seu discurso em direção ao desafio de julho.

O BE apareceu pouco convicto, com insatisfações sobre o número de médicos em funções no SNS que Catarina Martins garante terem vindo a diminuir (6oo a menos) desde que a pandemia começou. António Costa fintou a crítica e apontou para os “mais 691” médicos que o país tem quando comparado com o início do ano. Também se mostrou pouco convencido do que não vê no plano sobre combate à precariedade e valorização salarial e impaciente quando às negociações do Orçamento: “Nada se sabe” a duas semanas. “O tempo é curto, precisamos sim de discutir o longo prazo mas para o fazer temos de resolver as urgências e trabalhar para resolver os problemas do país”.

Mas também com o Bloco António Costa mostrou sensibilidade para a “insegura” Catarina Martins a quem garantiu que a aprovação final do Plano está resolvida. “O Programa não está adiado. Só espero que o Parlamento Europeu o voto favoravelmente e os eleitos do BE contribuam para a aprovação”. E mais nada.

Direita do hemiciclo e o incómodo com o Estado

À direita, a preocupação maior é com o modelo de gestão dos fundos que estão para vir. De cima para baixo, ou seja, do Estado para quem o Estado entender. E da forma errada, disse João Cotrim Figueiredo do Iniciativa Liberal, que considera que estão a repetir-se erros do passado ao insistir em medidas quando ao país “falta desenvolvimento económico”. André Ventura, do Chega, pediu para saber que novos impostos europeus vão financiar o plano e o CDS quer “menos impostos cirúrgicos” e que o Governo continue a apoiar a apoiar as empresas e famílias. Não reter por antecipação tem “execução rápida”, defendeu Cecília Meireles.

Telmo Correia, o líder parlamentar do CDS, sintetizou assim a ideia que mais se repetia daquele lado do hemiciclo: “Se o modelo económico é de mais Estado e mais consumo público, enquanto devíamos ter mais iniciativa privada, mais empresas e uma economia exportadora, então dificilmente vamos aderir, ainda que possamos dar contributos”.