O ex-diretor do Museu da Presidência entrou pela porta da frente do Campus da Justiça, em Lisboa, acompanhado pelo advogado a quem delegou a palavra para falar aos jornalistas. E só na sala de audiências, perante o coletivo de juízes, quebrou o silêncio. Mas não foi fácil. Ao longo de um dia inteiro, Diogo Gaspar foi várias vezes interrompido pelo presidente do coletivo de juízes que manifestou muitas vezes dúvidas em relação à sua defesa. É acusado de abuso de poder, participação económica em negócio, peculato, falsificação e branqueamento num processo que envolve três outros arguidos: José Dias, Paulo Duarte e Vítor Santos.

Nesta que foi a primeira sessão, e em que o tribunal decidiu esclarecer um a um os 263 pontos da acusação, conseguiu chegar-se ao 70.º. Aquele em que o Ministério Público acusa Diogo Gaspar de ter comprado mais de uma centena de peças do Palácio da Cidadela de Cascais, e que tinham sido dadas anteriormente dadas para abate. Todas estas peças tinham sido por ele selecionadas como não tendo valor para integrar o espólio do museu.

Na tentativa de derrubar a acusação, o ex-diretor do museu explicou que, de facto, adquiriu “vinte e poucas peças por 2 mil euros” a Vítor Santos, também arguido no processo. E considerou normal ter sido Vítor, que conhecera em 2000, a dar a melhor proposta de aquisição daquele material em 2009 (3.500 euros), material que depois foi parar à sua casa. Uma proposta que incluía o transporte do material não vendido para o Palácio da Ajuda, em Lisboa.

Segundo a acusação, em junho de 2009, Diogo Gaspar foi incumbido de transferir o mobiliário do Palácio da Cidadela de Cascais para outro local para as obras de reabilitação naquele espaço. Assim teria que fazer uma listagem dos bens, do que devia ser guardado noutro local, do que podia ser vendido e do que eventualmente podia ser abatido por ser de baixo valor. Na perspetiva do Ministério Público, o arguido terá então aproveitado um plano para se apoderar de alguns desses bens, contratando Vítor Santos para adquiri-los, para depois os recuperar.

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A versão apresentada em tribunal foi, no entanto, outra. Diogo Gaspar disse que todo o processo começou muito antes, ainda no tempo em que Jorge Sampaio chegou à Presidência da República, numa altura em que se pensava vender o palácio da Cidadela de Cascais. “Fui eu com o chefe da casa civil da altura e com o presidente da câmara que lutámos para o palácio não ser alienado”, disse.

Depois de encontrado um financiamento, era preciso fazer obras. E para avançar com a reabilitação tinha que se desenhar o palácio. Sentado de frente para o juiz e com o despacho de acusação nas mãos a servir de guia, o ex-diretor diz que foi por indicação da então diretora dos serviços administrativos e financeiros que tomou todas as decisões seguintes — e recusou terem sido decisões suas. Foi sob sua orientação que assinou um documento que consta no processo e que fez um inventários dos bens a permanecerem na Presidência ou a seguirem um destino diferente e a dizer que a melhor proposta foi efetivamente a de Vítor — que já fazia outros trabalhos para o Estado.

“Isto também pode significar que ele era o seu testa de ferro”, atirou o juiz. “Não é verdade, tudo o que se passou, passou-se comigo, com a Graça Ferreira [a tal diretora dos serviços financeiros] e o secretário-geral”, garantiu, acrescentando que antes do processo ele até chegou a sugerir que os bens fossem vendidos em leilão.

A explicação de como acabou por comprar bens que antes considerava não terem valor deverá ficar para a próxima sessão no próximo dia 15 de outubro às 9h30.

Manhã arrancou com duelo entre juiz e defesa do arguido

Assim que o ex-diretor do Museu da Presidência se aproximou do microfone para começar a defesa, logo pela manhã, o juiz fez várias recomendações. “Pode parar quando sentir  cansaço, ou se quiser beber água”, disse Luís Ribeiro, num tom sereno de quem compreende o que está a passar. Mas pouco depois de Diogo Gaspar descrever como todo o processo “foi uma cabala” montada contra a sua carreira que considera exemplar e contra o museu, o magistrado travou a fundo. “Trazer um texto previamente planeado não é defesa”, argumentou num tom bem diferente do inicial.

O advogado do ex-diretor acabou por intervir e explicar que seria bom o seu cliente contextualizar as suas funções no museu para se entender o resto da sua defesa, mas as suas palavras não demoveram o juiz.“Não vai passar uma manhã a enquadrar a matéria da defesa para depois passar a acusação. Não começamos pelo fim”, disparou.

O advogado Raul Soares da Veiga decidiu então fazer um requerimento, considerando ser um “direito inalienável da defesa” que o seu a arguido fizesse a sua exposição. Mas o juiz, e com o Ministério Público do seu lado, decidiu manter o seu método. E confrontar o arguido com a acusação.

O arguido não se poupou aos elogios. Perante o coletivo de juízes disse que antes da sua detenção “era considerado no país um dos melhores museólogos”, que falava diretamente com Jorge Sampaio, quase diretamente com Cavaco e que com Mário Soares teve uma relação mais indireta. Foi outro dos momentos em que o juiz lhe cortou a palavra. A certa altura falou mesmo nas condecorações que recebeu dos presidentes Cavaco Silva e Jorge Sampaio, e que estiveram na origem do nome da Operação da PJ “Cavaleiro” que culminou na sua detenção, em 2016.

“Ganhei honestamente o meu dinheiro. Nunca ganhei um cêntimo que não fosse meu”, garantiu.

Ex-diretor do Museu da Presidência vai ser julgado

Acusado de contratar “amigos íntimos” como colaboradores

A venda dos bens do palácio da Cidadela de Cascais é apenas um dos negócios suspeitos imputados ao ex-diretor do Museu da Presidência. O Ministério Público acusa-o também de ter contratado “amigos íntimos”, sempre do sexo masculino, como colaboradores. Um deles, José Dias, foi contratado para fazer trabalhos gráficos, apesar de haver um funcionário no museu com essa função.

O Ministério Público acusa-o de, entre 2004 e 2016, utilizou a sua posição, funções e atribuições e para obter vantagens patrimoniais e não patrimoniais indevidas, em seu benefício e de terceiros. No entanto, nesta sessão de quinta-feira, a procuradora que representa o Ministério Público nesta fase de julgamento, Ana Cristina Vicente, não lhe colocou uma única questão. Manhã e tarde foram conduzidas apenas pelo juiz presidente, com uma ou outra intervenção do advogado de defesa de Diogo Gaspar — que lhe pediu a certa altura para ter cuidado nas palavras que usava para se exprimir.