Era para ter sido no dia 24 de outubro, depois no dia 31 e agora será finalmente este sábado, dia 7. O PS anda há meses a engolir em seco antes de falar no tema que não pode falar — as presidenciais de janeiro — e vai fazê-lo finalmente este sábado numa reunião da Comissão Nacional. Mas não nos moldes em que estava previsto: a reunião, afinal, vai ser online, com os conselheiros descentralizados pelas várias federações distritais, a intervir via Zoom, e com hora marcada para acabar já que António Costa vai reunir ao fim da tarde o Conselho de Ministros para aprovar medidas para o Estado de Emergência: a pandemia não pode esperar.
O desfecho não será nem surpreendente nem pacífico: Costa deverá propor ao secretariado nacional, que se reúne antes, um texto com a posição do PS sobre o tema, que tudo indica que deverá passar por uma não-posição, e esse mesmo texto é depois remetido à Comissão Política e ao Conselho Nacional, para deliberação. Várias fontes socialistas ouvidas pelo Observador não têm dúvidas de que o conteúdo do texto penderá para a liberdade total de voto, sem ficar expressa qualquer orientação do partido. Ou seja, o PS não vai apoiar nenhum candidato presidencial — nem sequer a candidata que é militante socialista, Ana Gomes. E é isto que não é pacífico.
Pedro Nuno Santos já fez duas declarações públicas no sentido contrário ao de António Costa — que, em maio, estendeu o tapete à recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa –, por isso a expectativa está alta em torno da intervenção do ministro das Infraestruturas. “Vamos ver o que ele diz”, nota uma das fontes mostrando-se expectante de que um nome de peso como o de Pedro Nuno saia em defesa do apoio a Ana Gomes, e que o faça com estrondo. Ao Observador, o ministro esconde o jogo e guarda tudo para a reunião de sábado.
Mas colada à pele tem a declaração que fez em entrevista à RTP, antes de Ana Gomes anunciar a candidatura, em que disse que preferia votar no candidato do BE ou do PCP do que em Marcelo Rebelo de Sousa; e a declaração que fez aos jornalistas, em setembro, em reação ao facto de Augusto Santos Silva ter dito que Ana Gomes era uma boa candidata mas não uma boa candidata para o PS. A resposta de Pedro Nuno, nessa altura, foi contundente: “As pessoas não servem para o PS fazer umas coisas de vez em quando, para serem eurodeputados, para serem candidatos a câmaras municipais, membros do secretariado nacional e depois de um momento para o outro passarem a ser vilipendiados por que não lhes dá jeito”.
As contas de cabeça de um PS dividido
Ao que o Observador apurou, a convocatória para os conselheiros nacionais não refere qualquer “caráter deliberativo”, limitando-se a dizer, na ordem de trabalhos, que será feita uma “análise da situação política e sobre as presidenciais”, o que levou alguns socialistas a duvidar de que a posição da direção do PS sobre o tema fosse sujeita a votos. “Uma vez que a orientação será não ter orientação nenhuma, pode não ser votado”, sugeria uma fonte. Mas a votação deverá mesmo acontecer, segundo apurou o Observador junto da direção do partido. Assim como deverá ser votada uma proposta para a realização de primárias para a escolha do candidato presidencial, apresentada pelo conselheiro Daniel Adrião e mais 21 subscritores, que tem chumbo condenado à partida.
As votações serão feitas mesmo que sejam de braço no ar através de um computador, onde nem todos se veem uns aos outros, o que causa algum desconforto juntos dos conselheiros, que, em todo o caso, entendem que a reunião não possa ser presencial devido à pandemia. A reunião, que era para se realizar no Capitólio, no Parque Mayer, teve de ser alterada devido ao agravamento da pandemia em Portugal e vai realizar-se em várias frentes: de um lado, o núcleo duro da direção (o Secretariado Nacional) estará reunido no Centro da Esquerda, no Largo do Rato, em Lisboa; do outro, os restantes dirigentes (são 70 os comissários nacionais) estarão espalhados pelas várias federações distritais a participar remotamente.
Se há 5 anos o PS não declarou apoio formal a nenhum candidato porque tinha dois candidatos da área socialista: Maria de Belém e Sampaio da Nóvoa, agora há quem diga que é diferente: porque não declarar apoio à única candidata que é da área socialista? Porque há Marcelo. Eis os vários dilemas com que os socialistas se confrontam:
Cenário 1: Deixar Marcelo Rebelo de Sousa ganhar
Certo é que o dossiê das presidenciais é um dossiê difícil de gerir para António Costa, que tem evitado ao máximo falar do assunto até não ser possível continuar a adiar mais. Tudo começou em maio, na famosa visita à Autoeuropa, quando , ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa, o primeiro-ministro surpreendeu todos quando lançou a recandidatura do atual Presidente dizendo que não só era provável como desejável que assim fosse, para que os dois pudessem continuar o caminho feito até aqui. Depois disso, silêncio. Costa largou a bomba e pediu que ninguém apanhasse os destroços. Manteve-se em “recato” desde então, focado na pandemia e na crise que tem para gerir, deixando para algumas figuras de peso, como o ministro dos Negócios Estrangeiros, ou até Ferro Rodrigues e o próprio Carlos César, a tarefa de continuar a dar gás a essa tese.
Foi o que fez Santos Silva em setembro, numa entrevista à TVI, onde disse preto no branco que Ana Gomes não era uma candidata para o PS, e foi o que voltou a fazer esta semana, em entrevista à RTP, onde fez elogios a Marcelo Rebelo de Sousa, dizendo que a sua candidatura era “importante” e que o seu papel tinha sido fundamental, em 2015, na estabilização da ‘geringonça’ e na imagem que o país passava lá para fora. Numa altura em que a geringonça está cada vez mais frágil, uma parte do PS parece acreditar que Marcelo vai continuar a ser cooperante, mesmo com o fantasma dos segundos mandatos, em que os Presidentes tendem a ser mais interventivos, a pairar na sombra da história.
Ferro Rodrigues também tem dito que, se as eleições fossem hoje, não “hesitava” em Marcelo Rebelo de Sousa, escudando-se nas sondagens que dizem que a esmagadora maioria dos simpatizantes socialistas apoia Marcelo; e Carlos César, presidente do PS, tem dito que não vê “drama” em deixar Marcelo ganhar: “Tenho uma boa impressão do seu mandato e acho que é a opinião dos eleitores e militantes do PS. Portanto, não vejo grande drama que seja associado ao PS nas próximas eleições presidenciais”, disse na TSF, recusando-se a apoiar um “candidato ou candidata distante das pessoas, rude, divisionista”, numa referência implícita a Ana Gomes.
Cenário 2: Ana Gomes deve ser a candidata do PS
Apesar de a cúpula socialista ter este entendimento, há quem, no PS, diga que não conhece ninguém nas bases do partido, militante, que prefira votar em Marcelo Rebelo de Sousa, que é para todos os efeitos um ex-líder do PSD. “Dizem que ou votam em Ana Gomes, ou noutro candidato da esquerda, ou em branco, ou seja, a alternativa a um candidato do PS não é Marcelo”, diz ao Observador o conselheiro socialista Daniel Adrião, crítico habitual de António Costa, que entende que o PS devia apoiar a única candidata que é da área socialista.
E não entende que o PS faça o mesmo que fez há cinco anos, porque “agora, ao contrário de há cinco anos, não há mais do que um candidato na área do PS”. Daniel Adrião justifica mesmo que os candidatos presidenciais não devem emanar dos partidos, porque as candidaturas são pessoais e individuais, devendo ser os partidos que vão, à posteriori, ao seu encontro. “Foi o que aconteceu com Marcelo Rebelo de Sousa há cinco anos, que avançou e só depois é que o PSD e o CDS decidiram apoiá-lo”, diz ao Observador. O mesmo para Mário Soares ou Manuel Alegre, antigos candidatos apoiados pelo PS: “Nenhum deles foi pedir autorização à direção do partido para avançar, fizeram-no enquanto cidadãos”, argumenta.
Daniel Adrião, de resto, apresentou à Mesa uma proposta para a realização de eleições primárias sobre a escolha do candidato presidencial, escudando-se nos estatutos do partido que permitem a qualquer conselheiro (sem número limite) apresentar uma proposta deste género — mas diz que ainda não obteve resposta de Carlos César. Em todo o caso, vai sujeitar essa proposta a votação na reunião de sábado.
Para já, neste cenário está Francisco Assis (que se posiciona à direita do PS) e pode vir a estar Pedro Nuno Santos e a ala mais à esquerda do partido, a avaliar pelas declarações públicas que tem proferido. A ideia reinante neste cenário é de que PS e PSD não se devem centrar num mesmo candidato sob pena de haver mais abstenção (entre os socialistas que não se reveem em Marcelo), e, consequentemente, isso favorecer os extremos, por peso relativo, favorecendo, neste caso André Ventura.
Cenário 3: Ana Gomes como o mal menor
A medo e à boca pequena, vários foram os socialistas que, nos últimos tempos, foram deixando escapar elogios à antiga eurodeputada socialista. Duarte Cordeiro, que se posiciona na ala esquerda dos jovens turcos (como Pedro Nuno), chegou a dizer, em entrevista ao Observador, que Ana Gomes era “uma candidata natural à Presidência da República” e que tinha um percurso político de “respeito”. O mesmo fez João Paulo Correia, vice-presidente da bancada socialista. E também Sérgio Sousa Pinto, da ala oposta, que disse à Rádio Observador, que a situação para o PS “não é fácil”: “Temos no terreno uma candidata que é uma figura prestigiada da área socialista, que é a doutora Ana Gomes, e por outro lado temos um Presidente da República que manteve com o partido do Governo uma relação cordial e colaborante ao longo de quatro anos e, ainda por cima, tem a sua reeleição assegurada. Portanto, isto cria dificuldades”. Num mundo “ideal”, disse Sérgio Sousa Pinto, o PS teria um candidato “forte que fosse consensual” no partido. Mas não vivemos num mundo ideal.
É, por isso, neste cenário que se fazem contas de cabeça: se Ana Gomes, que apareceu com 17% na última sondagem, for a que tem melhores condições de levar Marcelo a uma segunda volta e de reunir os votos de protesto, para diminuir o peso de André Ventura, então talvez o voto recaia na ex-eurodeputada socialista. Aqui será mais um voto anti-Marcelo, ou anti-Ventura, do que pró-Ana Gomes. Há, mesmo no círculo mais à esquerda do PS, quem diga que tem dúvidas sobre as visões da Constituição e do “Estado de Direito” de Ana Gomes, e não vibre com o perfil, mas o dilema dos socialistas pode chegar a um beco sem saída onde a escolha terá de ser naquele que “custa menos” votar. E aí o voto pode recair em Ana Gomes.
Hoje, passados dois meses da apresentação da candidatura de Ana Gomes, há quem diga que “a esmagadora maioria do partido não acha que o PS deva dar apoio a nenhum candidato”. “Ninguém me diz que acha que o partido deve apoiar um candidato”, diz uma fonte ao Observador, dando como pacífica a ideia de que o PS não deve ter um candidato presidencial, deixando ao critério de cada um onde pôr a “cruzinha”. Até já há socialistas —- Isabel Moreira e Ascenso Simões — que já declararam publicamente que vão votar no candidato do PCP, João Ferreira. Ana Gomes pode reunir o voto útil à esquerda e, mesmo sem o apoio do PS, conseguir mobilizar. Ou conseguir mobilizar precisamente por não ter o apoio declarado do PS. O dilema existe, e o PS já está habituado a dilemas presidenciais.