A atriz Joana Manuel denunciou na quinta-feira à noite, através do Facebook, que centenas de livros alegadamente doados à Biblioteca Municipal Municipal de São Lázaro, em Lisboa, foram parar ao lixo, e sugeriu ter havido um comportamento negligente por parte dos responsáveis da biblioteca. O assunto provocou a indignação de dezenas de pessoas que comentaram o post, mas entretanto o bibliotecário principal de São Lázaro garantiu ao Observador que a alegação não corresponde à verdade e classificou-a até como “maledicência”.
A atriz, conhecida pela habitual intervenção cívica, escreveu que os livros descartados se encontravam no ecoponto da Rua Nova do Desterro e fez acompanhar o post de três imagens. Numa primeira fotografia eram visíveis 17 livros salvos, “por um amigo”, da suposta destruição. Nas outras duas, parecia ver-se o interior de um contentor do lixo, onde livros se amontoavam ao lado de detritos.
“A Biblioteca Municipal de São Lázaro, em Arroios, recebeu uma doação de centenas de livros. Os que estão aqui com ar arrumadinho foram salvos pela pessoa que me alertou para isto”, apontou Joana Manuel. “Os restantes tiveram o destino que se vê nas outras fotos. Se alguém tiver uma cana de pesca e uma lanterna, ainda pode passar no ecoponto da Rua Nova do Desterro e tentar a sorte”, ironizou, acrescentando a pergunta: “Alguém me explica como é que isto é possível?”. A atriz aconselhou as pessoas a não doarem livros à “biblioteca mais bonita de Lisboa”, porque “as pessoas lá dentro não parecem estar para se chatear muito com isso”.
O post foi publicado na quinta-feira à noite e 24 horas depois tinha mais de uma centena de comentários e perto de 80 partilhas, com alguns utilizadores a pedirem até a intervenção da vereadora da Cultura ou do presidente da Câmara de Lisboa.
“Vi um dos bibliotecários a regressar da zona dos contentores, com os sacos dos livros vazios”
O Observador chegou à fala com o amigo de Joana Manuel que garante ter testemunhado diretamente o ocorrido. Pedro Soares relatou que se encontrava na biblioteca na quinta à tarde e que presenciou a chegada de vários sacos de supermercado com centenas de livros. “Dois funcionários puseram os sacos no corredor naquele momento, pegaram em alguns livros e fizeram comentários próprios de quem os estava a ver pela primeira vez, o que me leva a concluir que não fizeram nenhuma triagem prévia”, contou. “Estavam enervados, parecia que lhes tinha caído em cima uma tarefa muito aborrecida.”
Por indicação dos bibliotecários, Pedro Soares escolheu alguns e mais tarde levou-os para casa (os que surgem na primeira foto do post de Joana Manuel). “Isto foi uma doação, tire o que quiser”, terá dito uma bibliotecária. Outros foram escolhidos por outros utentes do espaço, enquanto “um bibliotecário pegava em alguns livros com aspeto mais recente e luzidio e os punha numa pilha à parte”, disse a testemunha.
Até ali, não notou nada especialmente fora do comum. “Eles às vezes deixam meia dúzia de livros numa mesa à entrada, para as pessoas levarem”, recordou. Logo a seguir, a história começou a parecer-lhe estranha.
Os livros que nem ele nem as outras pessoas quiseram, principalmente os de aspeto mais envelhecido, foram transportados por um funcionário da biblioteca para junto da porta de entrada, dentro de sacos. Pedro Soares perguntou o que lhes aconteceria. “Vão para cabines de leitura aqui na freguesia”, responderam-lhe, referindo-se às cabines telefónicas transformadas em estantes de livros, como a que se situa frente à entrada do Cemitério do Alto de São João.
“Pouco tempo depois, saí para ir tomar um café e vi um dos bibliotecários a regressar da zona dos contentores, com os sacos dos livros vazios. Mais tarde passei mesmo ao lado do ecoponto do papel e espreitei. Vi o fundo cheio de livros”, afirmou Pedro Soares. “Não posso dizer que o tenha visto enfiar os livros no contentor. Não vi. Mas é altamente improvável que os livros que lá se encontravam não tivessem sido despejados pelo bibliotecário.”
O sucedido acabou por chegar ao conhecimento de Joana Manuel, que decidiu falar do assunto no Facebook. As duas fotos do interior do ecoponto foram por ela captadas na noite de quinta-feira, conforme assumiu ao Observador.
“Nenhum livro da biblioteca foi colocado no lixo”
Contactado pelo Observador, o responsável pela Biblioteca Municipal de São Lázaro, Rui Faustino, mostrou-se muito incomodado com o teor do post e contou que já o tinha lido. “Posso dizer, em consciência, que nenhum livro propriedade da Biblioteca de São Lázaro ou da rede de Bibliotecas de Lisboa foi colocado no lixo”, comentou. “Desafio quem fez a denúncia a provar que aqueles livros das imagens tinham carimbo da Biblioteca de São Lázaro e pertenciam à nossa coleção.”
De acordo com Rui Faustino, estamos perante “maledicência” e “fake news” [notícias falsas]. “As pessoas podem dizer o que quiserem, vivemos em democracia, mas têm de provar as acusações que fazem”, contrapôs o bibliotecário.
Em rigor, Joana Manuel não escreveu que os livros em causa fossem propriedade da Biblioteca de São Lázaro, mas sim que a instituição tinha recebido “uma doação”. A mesma versão foi apresentada por João Soares. Por sua vez, Rui Faustino admitiu que livros doados são aos milhares todas as semanas, sobretudo nos últimos anos, devido à transformação de casas naquela zona da cidade em apartamentos turísticos para arrendamento de curta duração.
“As pessoas fazem obras em casa ou então morre um familiar e querem desfazer-se dos livros. Explicamos sempre aos doadores que tem de ser feita uma triagem. Não temos espaço. Se nos oferecerem a Enciclopédia Luso-Brasileira de há 40 anos e com bolor, não podemos ficar com ela”, explicou o bibliotecário. “Há livros que ficam aqui, outros que são oferecidos gratuitamente aos leitores, através de uma banca aqui na biblioteca ou das cabines de leitura espalhadas pela freguesia. Há outros que não estão em condições, devido ao estado de degradação, por exemplo. Nesse caso, têm de ser descartados. Quem nos oferece, sabe isso.”
Os livros doados só acabam integrados na coleção da Biblioteca de São Lázaro se “tiverem interesse para o público da biblioteca” ou “um valor intrínseco”, detalhou Rui Faustino. Mas se se tratar de obras repetidas, dos quais já existam três ou quatro exemplares, também “não são aceites”.
Considerando-se “chocado” com a situação, o mesmo responsável referiu que “se fosse utente da biblioteca a primeira coisa que teria feito era contactar a biblioteca ou pedir o Livro de Reclamações, antes de ir para o Facebook publicar coisas ou pedir a outros que publiquem”. “Mostrem as provas do que afirmam”, repetiu.
“Somos uma biblioteca pública, não somos um museu”
Perante as fotos do post, a bibliotecária Joaquina Pereira, funcionária da mesma biblioteca, disse reconhecer os livros descritos por Joana Manuel como tendo “um ar arrumadinho” — aqueles que João Soares guardou para si.
“Foram generosamente oferecidos a uma pessoa do sexo masculino, lembro-me bem Tinham sido doados, sim, mas a biblioteca não podia ficar com eles, porque têm 30, 40, 50 anos, e ofereceu-os à pessoa. E agora vem alguém dizer que ele salvou os livros? Não salvou, nós é que os oferecemos à pessoa. É um procedimento comum, é o mínimo bom senso”, argumentou Joaquina Pereira. “Somos uma biblioteca pública, não somos um museu, nem um arquivo, nem uma hemeroteca. Todas as bibliotecas de Lisboa têm critério rígidos quanto à aceitação de doações.”
Segundo Pedro Soares, o episódio levanta várias perguntas. “Será que estas práticas estão generalizadas nas bibliotecas de Lisboa? Haverá uma falta de recursos tão grande que os funcionários não consigam lidar com doações e tenham de se desfazer delas?”, questionou-se.
A Biblioteca de São Lázaro situa-se junto a uma escola do ensino básico, perto do Campo Mártires da Pátria. É a mais antiga biblioteca de Lisboa, conhecida pelo salão nobre do século XIX, que é sala de leitura, com mobiliário de época e disposição em hexágono. Foi fundada em 1883 e até 1938 chamou-se Biblioteca Central. Hoje integra a Rede de Bibliotecas de Lisboa, geridas pela autarquia e pelas juntas de freguesia.
O Observador contactou ao fim da tarde de sexta-feira o gabinete da vereadora da Cultura de Lisboa, Catarina Vaz Pinto, e não obteve resposta imediata.