“O Voltaire de Central Park West” e “O homem mais engraçado de Nova Iorque”, era o que os amigos de Herman J. “Mank” Mankiewicz lhe chamavam. Irmão mais velho do grande realizador Joseph L. Mankiewicz (“A Condessa Descalça”, “Cleópatra”, “Bruscamente no Verão Passado”), jornalista, crítico e argumentista tão indisciplinado como sobredotado, cínico emérito e espirituoso cintilante, alcoólico suicida e jogador compulsivo, Mank, de entre as muitas coisas que escreveu em Hollywood entre os anos 20 e 40, deixou duas que entraram para a grande e a pequena história do cinema. O argumento de “O Mundo a Seus Pés” (1941), de Orson Welles, e um citadíssimo telegrama enviado ao seu amigo e colega Ben Hecht: “Aceitas 300 dólares por semana para trabalhar para a Paramount? Todas as despesas pagas. Há milhões para serem ganhos aqui e a tua única concorrência são idiotas. Não espalhes isto”.

Tal como muitos dos seus brilhantes colegas argumentistas da época, alguns dos quais, como o citado Ben Hecht, ele tinha “importado” de Nova Iorque e da famosa Mesa Redonda do Hotel Algonquin, a que pertencera, Mank tinha um profundo desprezo pelos estúdios que lhe pagavam regiamente, e pelo próprio cinema. Sentia-se inferiorizado, subaproveitado, profundamente frustrado pelos ignorantes patrões dos grandes estúdios para que escrevia, pela banalidade estereotipada e comercial da maioria da produção, e pelo filistinismo militante de Hollywood em geral. Um amargo poema que escreveu sobre este tema acaba assim: “Sim, roubo-vos as carteiras todos os dias / Mas vocês, sacanas, partem-me o coração.”  

[Veja o “trailer” de “Mank”:]

Em “Mank”, que se estreia hoje na Netflix e foi escrito pelo seu falecido pai Jack Fincher (desde 1997 que o filme esperava financiamento), David Fincher labuta sobre os mitos e as realidades da figura de Herman Mankiewickz, da Hollywood onde ele viveu e trabalhou, e da sua colaboração com Orson Welles em “O Mundo a Seus Pés”, filmando num preto e branco que é afinal um subtilíssima gama de cinzentos obtida por meios digitais, e numa constante jiga-joga cronológica, tal como aquele. Tutelada pelo diretor de fotografia Erik Messerschmidt, a personalidade visual semi-fantasmagórica de “Mank” está assombrosamente próxima da das fitas desses tempos e homenageia o estilo de Orson Welles sem resvalar para o “pastiche” alambicado.

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[Veja uma entrevista com Gary Oldman:]

Apesar da portentosa interpretação de Gary Oldman num Mank lúcido e mordaz, mas também fraco e autodestrutivo, as partes de “Mank” que o mostram em execração alcoolizada, sardónica, melancólica e também algo snobe, contra a Hollywood plutocrata, vulgar, anti-intelectual, e politicamente tenebrosa (Fincher demora-se longa e demonstrativamente numa eleição para governador da Califórnia que opôs o candidato republicano ao escritor esquerdista Upton Sinclair, vítima de patifarias dos estúdios para o desacreditar), chovem no molhado do filme auto-flagelador sobre a Meca do Cinema passado no seu interior. E perpetuam vários dos seus lugares-comuns e mitos, desmentidos pelas muitas fitas clássicas e pela abundância de talentos superlativos que as criaram, mesmo com todos os defeitos, insuficiências e zonas negras da indústria cinematográfica americana.

[Veja uma entrevista com Amanda Seyfried:]

Vá lá que Fincher pai e filho não omitem os demónios pessoais, a tendência auto-sabotadora e as contradições de Mank. Ver a cena durante o jantar na mansão de William Randoph Hearst, de quem o argumentista era amigo de longa data e convidado regular, e que acabou por trair, e à sua grande amiga e mulher daquele, Marion Davies, com a narrativa de “O Mundo a Seus Pés”. O que há de mais suculento de “Mank” diz respeito às circunstâncias da escrita do argumento de “O Mundo a Seus Pés” e à longa polémica da sua real autoria, que tem feito correr rios de tinta e dado à estampa muitos livros ao longo das décadas, e gerado duas escolas: a que postula que Mankiewicz é o verdadeiro autor de “O Mundo a Seus Pés”, e a que defende que é Welles, sem menosprezar a importância do contributo daquele. 

[Veja momentos da rodagem:]

O filme apanha Mank em 1940, tendo queimado já todas as pontes com os grandes estúdios em que trabalhou e era tolerado apesar da bebida, do jogo, do comportamento errático e da espirituosidade insolente, e visto pelo meio do cinema como estando acabado de vez. Tem uma perna engessada devido a um acidente de automóvel e está confinado à cama de um rancho-pousada situado a um par de horas de Los Angeles, assistido por uma secretária e uma massagista, rigorosamente proibido de beber e incumbido por Welles com a missão de escrever o argumento do seu filme de estreia em Hollywood, apresentado como a última grande oportunidade para Mankiewicz mostrar o seu valor e deixar uma prova indelével do seu génio para a posteridade.

Mank é visitado e supervisionado por John Houseman (Patrick Troughton), o parceiro teatral de Welles, e por este (Tom Burke). Com a ajuda do imperial Gary Oldman, David Fincher põe-se do lado daqueles que atribuem a autoria de “O Mundo a Seus Pés” a Herman Mankiewicz, ideia originalmente defendida por Pauline Kael no seu artigo de 1971 “Raising Kane”, publicado na “New Yorker” (na qual Mank também escreveu e de que foi despedido por ser “incapaz de trabalhar numa estrutura organizada”). E que foi rebatida com firmeza, entre outros, por Robert Carringer em “The Making of Citizen Kane” (1985), onde este mostra, com a ajuda de documentos dos arquivos da RKO, como Orson Welles retrabalhou longamente em novas versões o argumento original de Mank e o filmou de forma inovadora. Rodado por qualquer outro que não ele, “O Mundo a Seus Pés” não seria o filme que é.

[Veja um filme sobre a controvérsia da autoria de “O Mundo a Seus Pés”:]

Welles, aliás, nunca disse que “O Mundo a Seus Pés” era de sua exclusiva criação e partilhou com Mank o crédito do argumento na ficha técnica, e o Óscar de Melhor Argumento que a fita ganhou — e que nenhum dos dois foi receber. Mas é mérito de David Fincher que consiga aqui dramatizar e defender com consistência o caso e a contribuição de Mank. No elenco há ainda a referir Arliss Howard num Louis B. Meyer em jeito de caricatura odiosa, Charles Dance num William Randolph Hearst surpreendentemente simpático, Ferdinand Kingsley num Irving Thalberg injustamente sinistro e Amanda Seyfried numa Marion Davies muito próxima da original, menos a gaguez que a afetava fora do palco e dos “sets” de filmagem.

“Mank” não é o filme esplendoroso, acidamente melancólico e historicamente preciso (os factos reais que recria, por um lado, e as liberdades que toma, pelo outro, davam para um segundo e longo artigo) que poderíamos esperar de um realizador com o arcaboiço de David Fincher. Mas tem matéria, arte e pano para mangas de discussão suficientes para absorver quer o espectador curioso, quer o cinéfilo entusiástico.

“Mank” estreia-se na Netflix hoje, dia 4 de Dezembro