Tudo estava suspenso até à reunião do Infarmed, na terça-feira, mas subitamente Ana Gomes mudou de ideias. Depois de ter cancelado as ações de campanha de domingo por causa do “agravar da pandemia”, a candidata resolveu ir para a rua — aproveitar o tempo que resta antes do confinamento geral, por um lado, e aproveitar a ausência de Marcelo Rebelo de Sousa para marcar a diferença, por outro. A agenda de campanha chegou às mãos dos jornalistas no domingo pelas 19h:
- Visita ao Centro Saúde de Algueirão-Mem Martins (SINTRA: 10.30 h. Presencial)
- Debate online zoom Ana Gomes com Estudantes de Medicina (ANEM) 19.00 h.
Pelo meio ainda tinha uma entrevista à Antena 1 e uma entrevista ao programa da tarde da TVI, com o apresentador Manuel Luís Goucha. Problema: nem o centro de saúde assinalado era o centro de saúde onde a candidata se encontrava (em vez de visitar o centro de saúde que, àquela hora, estava com uma longa fila de espera, Ana Gomes foi visitar a obra que daqui a uns meses será o novo centro de saúde de Algueirão Mem-Martins), nem o debate online com estudantes de medicina se realizou. E porquê? É aqui que entra a confusão.
Fonte da candidatura justificou o cancelamento por “razões técnicas” atribuídas aos estudantes de Medicina, mas o Observador sabe que a combinação entre a candidatura e a Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) nunca esteve fechada nos moldes em que a campanha a vendeu. Ou seja, o que seria um debate com dirigentes da ANEM e outras associações de estudantes de medicina transmitido em direto na página de Facebook de Ana Gomes, era, afinal, para as associações de estudantes de medicina, apenas uma reunião de trabalho à porta fechada.
Ao Observador, a Associação Nacional de Estudantes de Medicina não quis comentar o cancelamento do evento. Mas o Observador sabe que, esta segunda-feira, a candidatura de Ana Gomes ainda contactou a associação para reiterar o pedido para a conversa ser transmitida em direto nas redes sociais, com a comunicação social (e quem mais quisesse) a assistir. Os estudantes contudo, sempre disseram que apenas aceitariam uma reunião de trabalho com a candidata, não um debate posterior à reunião com transmissão pública. Quando muito, a candidata presidencial poderia depois expor publicamente, nas redes sociais, as conclusões da reunião de trabalho.
Assim sendo, nada feito. Vinte minutos depois da hora marcada para começar a transmissão no Facebook, a candidatura de Ana Gomes responde ao Observador que, afinal, o evento tinha acabado de ser cancelado por razões de cariz tecnológico. E o primeiro dia oficial de campanha de Ana Gomes, que tinha arrancado com a candidata a ocupar o espaço vazio deixado por Marcelo, terminou como começou: em modo para, arranca.
Um centro de saúde em obras que serviu para atacar Marcelo: “Está a desprezar os eleitores”
Ana Gomes chamou-lhe “aproveitar o terreno o mais que puder” antes de o país ser todo fechado em casa. A primeira paragem do dia — depois de uma entrevista nos estúdios da Antena 1 — foi o novo centro de saúde de Algueirão Mem-Martins, em Sintra, que está à espera de ser inaugurado em abril. Seguiu-se um momento mais pessoal, e mediático, com uma ida aos estúdios da TVI para uma entrevista com Manuel Luís Goucha. Foi aí que Ana Gomes falou das dicas que os netos lhe dão, do marido que faleceu há seis meses e que lhe “dá força”, e da necessidade de não faltar à chamada pela “democracia”.
O som das gruas e das perfuradoras na obra substituiu-se à azáfama dos utentes que encontraria se Ana Gomes tivesse ido ao velho centro de saúde de Algueirão Mem-Martins (como estava marcado na agenda), mas serviu de barulho de fundo para as críticas que levava na manga. O destinatário era só um: Marcelo Rebelo de Sousa, que está a “desprezar os eleitores” quando decide não fazer campanha. “O facto de haver candidatos que se abstêm de fazer campanha… e estou a falar de Marcelo Rebelo de Sousa que nem sequer tempos de antena fez… é uma desvalorização da campanha e das eleições e é um menosprezo pelos eleitores”, disse aos jornalistas à chegada às instalações do centro de saúde.
Para segurar o seu suposto segundo lugar na corrida é contra Marcelo que Ana Gomes tem de disparar. É face ao Presidente em funções que tem de vincar as diferenças. E foi isso que fez. “Eu não desvalorizo os eleitores, as campanhas fizeram-se para esclarecer os eleitores, e não podemos perder oportunidades de esclarecer os eleitores”, disse, admitindo que há uma dificuldade acrescida para conjugar essa tarefa com a dimensão das medidas restritivas de proteção sanitária, mas garantindo que não se vai demitir de procurar esclarecer os eleitores que vão ser chamados a votar.
Há duas certezas para Ana Gomes: uma é que vai “respeitar rigorosamente as regras que se aplicam a todos os portugueses”, outra é que irá “utilizar todas as possibilidades para fazer contactos no terreno”, estando ciente de que a partir de quinta-feira — se se confirmar o novo confinamento — esses contactos terão de passar para uma plataforma mais digital. Daí ter aproveitado esta segunda-feira, e os dias que restam até quinta, para ir à rua.
[Ouça aqui a reportagem da Rádio Observador]
“Está a menorizar a eleição”. Ana Gomes arranca campanha com criticas a Marcelo
Mas questionada sobre se, a partir do momento em que for decretado o confinamento, vai reduzir tudo a eventos online, Ana Gomes hesita: “Veremos”. Até porque “os políticos devem estar na rua onde estão os portugueses, incluindo os que estão a trabalhar”, sendo que, mesmo em confinamento, muitos são os que têm de se deslocar para os seus postos de trabalho para a cadeia de distribuição e funcionamento da atividade económica não parar. Daí que a candidata se mantenha com um pé na estrada.
“Não excluo usar as possibilidade de contacto com os portugueses que estarão a trabalhar, no rigoroso cumprimento das regras e não violando o que for determinado pelas autoridades”, disse aos jornalistas antes de visitar a obra do novo centro de saúde.
Ex-vereadora em Sintra joga em casa. Mas não tira Marcelo de vista: “Desequilibrou negociação do Governo com os privados”
Estávamos em 2009 quando Ana Gomes concorreu pelo PS à câmara de Sintra. Ganhou Fernando Seara, do PSD, e a socialista ficou como vereadora na oposição. Mas, ao lado do atual vereador do PS para a área da Saúde e Ação Social, Eduardo Quinta Nova (o presidente Basílio Horta não esteve presente), não se esquece desses tempos. “Este centro de saúde está à espera de ser inaugurado em abril e é um grande projeto que já existia desde o tempo em que fui vereadora aqui em Sintra, que finalmente agora se concretiza nestas instalações da antiga fábrica da Messa”, começa por dizer.
Algueirão Mem-Martins é a “maior freguesia do país”, e o novo centro de saúde, uma mega obra que vai juntar 4 unidades de saúde, espera vir a servir os seus cerca de 70 mil habitantes. Além disso, vai dizendo a candidata enquanto visita as futuras instalações da obra, não só pretende ser uma “belíssima unidade de cuidados primários” (centro de saúde), como também “tem a vantagem de vir a ser articulada com uma outra construção de unidade de cuidados continuados integrados. A ideia é estar pronto em abril. Alguns olhares vão duvidando, mas os responsáveis pela obra estão otimistas: “Se cá voltarem daqui a 15 dias já não conhecem isto”.
Para a semana, dia 18, já vai começar a funcionar, ali num contentor ao lado, uma unidade de atendimento de urgência a doentes respiratórios (Covid ou não Covid), que são avaliados e encaminhados para onde devem continuar a ser seguidos — seja em casa, seja no hospital. O vereador socialista vai puxando a brasa à sua sardinha e explicando que aquela unidade funciona como o SNS 24: é ir ali na presença de algum sintoma e voilà. É feita a avaliação e encaminhado o doente.
Toda a ajuda é pouca. E Ana Gomes há muito que gostaria de ver o Governo a avançar com requisições de privados na saúde, porque “estamos em crise” e, num cenário de crise, é impensável “não usar toda a capacidade instalada”. Mas é preciso fazê-lo a preços “justos”, preços de custo, de mercado, e não a “preços do lucro”. Mas aqui Ana Gomes poupa o Governo e culpa quem? Marcelo Rebelo de Sousa, claro, que em outubro recebeu representantes dos privados em Belém num gesto que a candidata viu como uma forma de “dar palco aos privados”, o que funcionou como “pressão” e “enfraqueceu o Governo e a ministra da Saúde”, que estavam num processo de negociação com os privados para “defender o interesse público”.
Ana Gomes está do lado do governo (neste ponto): não é uma questão de “cegueira ideológica”, como muitos dizem. É sim, uma questão de “pressão favorável aos privados por parte do Presidente da República, que desequilibrou a negociação contra o interesse público”.
Marcelo não vai fazer campanha eleitoral, pelo menos nesta primeira semana, mas vai ficar com as orelhas a arder. Ana Gomes rejeita todas as sondagens que não seja a das urnas, mas tem a estratégia definida: atacar Marcelo, atacar Marcelo, atacar Marcelo. “Se os portugueses querem mais do mesmo, sabem em quem votar, se querem uma Presidente da República diferente, atuante, que vai usar os poderes da Constituição para fazer diferente e para melhorar a governação do país, com respeito pelos cidadãos, pelo funcionamento da justiça e em articulação franca com o governo, então votam Ana Gomes”. Sair à rua também é isso: apelar ao voto.
As saudades, as lágrimas e a estratégia ditada pelos netos
Terceira paragem do dia, contando que a primeira foi nos estúdios da RTP: uma entrevista na TVI com Manuel Luís Goucha. A ideia, de resto, é essa mesmo: dividir a parca campanha de rua, no terreno, com momentos mais mediáticos aproveitando o gás da televisão. Foi o que fez Ana Gomes no intervalo entre a visita à obra do centro de saúde de Algueirão Mem-Martins e uma conferência online com estudantes de medicina. E foi aí que mostrou um lado mais pessoal.
Começou logo no primeiro minuto da entrevista, quando a candidata não conseguiu esconder as lágrimas à pergunta sobre se tinha saudades do embaixador António Franco, o marido de Ana Gomes que faleceu há apenas seis meses. Não só tem saudades, como é a ele que recorre, em pensamento, para “recuperar a força anímica” e a motivação para avançar. “Ele estava muito preocupado com o que iria acontecer à nossa democracia e encorajou-me a avançar”, disse, recordando a conversa que teve com o marido na última semana de vida.
Daí que Ana Gomes diga que tem de “pôr o desgosto numa gaveta”, que será reaberta a certa altura, e continuar o seu caminho. “Ele tinha razão: isto tem de ser feito”, disse, referindo-se à candidatura presidencial e ao combate aos extremismos que ela representa. Ana Gomes recordou a “escola de coragem, aprendizagem e dedicação política” que foram os tempos pré-25 de abril no MRPP, do qual se afastou “logo em 1976” por ter reconhecido tiques de “vivência totalitária” dentro da estrutura, e acusou “aquele senhor” (André Ventura) de ter “tiques de Trump e Le Pen”. Falou dos tempos do “medo”, da ditadura, e falou dos netos — sobretudo daqueles, mais “politizados”, que lhe mandam mensagens com táticas e estratégias para os debates. “Oiço os conselhos deles com muita atenção”, admitiu, dando o exemplo da crítica que lhe fizeram quando disse que não apertaria a mão a Ventura. “Há maneiras e maneiras de cumprimentar”, sugeriu.
Jovens, mulheres, avôs e avós, Ana Gomes quer falar para todos. Seja na rua, em obras de centros de saúde, no Facebook ou no programa da tarde da televisão.
Este artigo foi atualizado ao longo do dia