A ministra da Justiça recusa comentar o processo que tem como arguidos dois jornalistas, que foram alvo de vigilâncias da PSP, e um coordenador da PJ, onde o Ministério Público fez várias buscas. Mas Francisca Van Dunem lembra que cabe ao Conselho Superior do Ministério Público “instaurar inquéritos a magistrados por atos praticados no exercício das suas funções”. Procuradores do Ministério Público, juízes, advogados, presidentes de associações sindicais, quase todos se mantêm em silêncio em relação ao caso, refugiando-se no estatuto ou simplesmente no facto de precisarem de mais informação sobre a polémica.
Em resposta por escrito ao Observador, Francisca Van Dunem disse respeitar “a liberdade de imprensa, em todas as suas dimensões”, mas tem “todavia um dever de reserva relativamente a investigações criminais em curso”. Referia-se ao processo que o Observador noticiou na noite de terça-feira e que dava conta de que dois jornalistas da revista Sábado e do jornal Correio da Manhã tinham sido vigiados e fotografados pela polícia na sequência de um processo por violação do segredo de justiça. Ambos deram em primeira mão a notícia da detenção do assessor jurídico do Benfica e das buscas ao estádio, ainda elas não tinham terminado. O Ministério Público abriu um inquérito à fuga de informação e acabou a fazer buscas nas instalações da Polícia Judiciária acedendo às caixas de e-mail de toda a hierarquia.
Apesar de não comentar o caso, a ministra lembra, porém, que o Ministério Público “é uma magistratura com uma hierarquia própria, que goza de autonomia relativamente ao Governo, nos termos da Constituição e da Lei”. Logo nem ela nem o Governo “têm poder” ou competência para instaurar inquéritos a magistrados “por atos praticados no exercício das suas funções”.
“Essas competências estão atribuídas, pela Constituição e pela Lei aos Conselhos Superiores, que são órgãos constitucionais dotados de independência e de autonomia”, lê-se.
O caso remonta a março de 2018, quando foi noticiada a detenção de Paulo Gonçalves, à data assessor jurídico do Benfica por suspeitas de corrupção. Joana Marques Vidal era nessa altura a Procuradora-Geral da República e só seria substituída por Lucília Gago em setembro desse ano. Ainda assim, segundo o comunicado da PGR, não terá sido informada de que os dois jornalistas, Carlos Rodrigues Lima e Henrique Machado, iriam ser seguidos pela PSP. O relatório dessas vigilâncias só foi entregue em outubro, já Lucília Gago ocupava o seu lugar.
Contactada pelo Observador, a antiga Procuradora-Geral da República disse que, como magistrada, está “sujeita ao dever de reserva”. “Não me posso pronunciar sobre casos concretos”, disse. O mesmo respondeu o então diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, Amadeu Guerra — que aliás chegou a dar informações sobre as entradas e saídas nas instalações do DCIAP a pedido da procuradora Andrea Marques, que não terá especificado o que estava a investigar. Amadeu Guerra diz não ter por hábito comentar casos.
O antigo Procurador-Geral Pinto Monteiro também desconhece o caso concreto, mas lembra que, nos 47 anos que tem como magistrado, agora jubilado, “o segredo de justiça tem sido sempre violado desde o 25 de abril”. “Quem viola? Ninguém viola, mas só pode revelar os segredo de um cofre quem souber o numero do cofre”, defende.
Pinto Monteiro considera que estes casos têm que ser investigados, apesar da dificuldade, e admite mesmo que se façam vigilâncias aos jornalistas, mas desde que sejam bem fundamentas e autorizadas por um juiz — o que não aconteceu neste caso.
“Se houver ordem de um juiz, se a questão estiver legalmente enquadrada, os jornalistas têm de ser sujeitos a elas. Se a liberdade de imprensa não tiver limites, então não há segredo de justiça”, afirma, lembrando que este existe para proteger o processo numa altura em que é prejudicial que seja público.
O presidente da Associação Sindical de Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, também não quis comentar o caso, até porque não lhe conhece pormenores. E nem genericamente quis falar.
Já um dos seus antecessores, o procurador Rui Cardoso, não se inibiu de comentar o caso no Facebook. O magistrado diz ter “por indiscutível” que o segredo de justiça em Portugal tem “uma amplitude injustificada” e que o próprio crime de violação de segredo de justiça tem “consequentemente, uma amplitude que é desconforme à Constituição e à Convenção Europeia dos Direitos Humanos”.
Ainda assim, considera Rui Cardoso, “a responsabilização de magistrados, polícias e jornalistas” pela prática do crime de violação de segredo de justiça “em nada afecta a independência/autonomia dos magistrados, a liberdade de imprensa ou o Estado de Direito” porque “o direito de acesso às fontes de informação pelos jornalistas não abrange os processos em segredo de justiça”. Cardoso diz mesmo que, apesar de os jornalistas não serem obrigados a revelar as suas fontes de informação, tal não impede que se usem “os meios de obtenção de prova/meios de prova legalmente admissíveis” para investigar esse crime.
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E tanto as “‘vigilâncias’ (polícia que segue e observa o que outra pessoa faz, isso fazendo constar em auto) são meios de obtenção de prova, como o acesso à informação coberta pelo sigilo bancário”. Ambos sujeitos “apenas ao critério geral de necessidade, adequação e estrita proporcionalidade” escreve.
O presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses prefere deixar “baixar a fervura” antes de falar. “Queria ter informação mais completa”, disse Manuel Soares ao Observador, lembrando que a própria Cofina já anunciou que vai avançar com um processo por abuso de poder e denegação de justiça, pelo que prefere não comentar.
Também o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Joaquim Piçarra, recusou tecer qualquer comentário ao caso.
Já o bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, disse “olhar com preocupação” para o caso. Ao Observador, apesar de conhecer as circunstâncias do que se passou apenas pela comunicação social, lembrou que, ao fazer uma vigilância a um jornalista, ficam a conhecer-se as suas fontes, cujo contacto está sujeito a sigilo profissional. Mais: esta diligência devia ter sido autorizada por um juiz de instrução, “o juiz das liberdades”.
“Estando em causa um caso que contende com a liberdade de imprensa e cujo contactos com fontes está sujeita a sigilo profissional, seria de desejar que o juiz de instrução tivesse tido intervenção neste caso”, disse.