“Todos nós concordamos que a sua teoria é maluca. A questão que nos divide é se será maluca o suficiente para haver uma hipótese de estar correta.” Conta-se que esta frase terá sido dita na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, nos anos 1950, pelo eminente físico Niels Bohr, em resposta a uma apresentação sobre partículas elementares feita pelo austríaco Wolfgang Pauli – outro físico não menos eminente na época. Verdade ou mito, ela revela uma das mais importantes aprendizagens da ciência no século XX, muito feita à custa da física de partículas: a certeza de que estamos mergulhados em profundas incertezas.

As primeiras décadas do século XX trouxeram uma rápida sucessão de descobertas e, com elas, uma resposta relativamente simples à pergunta “De que é feito o Universo?”: a matéria é constituída por átomos, cujos núcleos são constituídos por protões, e com electrões que os orbitam graças à força electromagnética. Mas parecia faltar alguma coisa. E faltava mesmo: descobriram-se outras partículas elementares – os positrões, os muões, os taus, os vários neutrinos e quarks – bem como as partículas associadas às forças fundamentais: além dos fotões, os bosões W e Z, responsáveis pelos fenómenos de radioactividade, e os gluões, que mantêm o núcleo atómico como um só. Por fim, em 2012, com grande alegria, descobriu-se a peça que faltava, o famoso bosão de Higgs. Mas acontece que, mesmo assim, não chega. Continua a faltar alguma coisa.

O modelo-padrão – a teoria fundamental desta área, que está para a física como a tabela periódica está para a química – foi desenvolvido até meados de 1970 e ficou completo com a descoberta do bosão de Higgs, em 2012. Mas ele não consegue explicar tudo. Em primeiro lugar porque não descreve a gravidade. Mas esse não é o único problema que apresenta.

O que é a matéria escura [conceito motivado por várias observações experimentais astronómicas, como a velocidade de rotação das galáxias]? E onde foi parar toda a antimatéria [que se supõe ter sido criada em igual quantidade à matéria aquando do Big Bang]? Estas são questões que não têm explicação à luz do modelo-padrão”, explica Inês Ochoa. “Com a descoberta do bosão de Higgs, o modelo faz um ótimo trabalho a explicar o que se consegue observar até às energias com que trabalhamos atualmente. O problema é o seguinte: ele explica uma porção embaraçosamente pequena do universo: cerca de 5%.”

A cientista de 33 anos anda à procura das peças que faltam. Concluiu a licenciatura e mestrado em Física na Universidade de Coimbra, seguiu para o doutoramento na University College London e, em 2015, partiu para Nova Iorque onde durante cinco anos trabalhou como investigadora na Universidade de Columbia. Desde julho está associada ao Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), em Lisboa.

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A “nova física” que Inês Ochoa procura poderá passar pela descoberta de novas partículas elementares, mas a última foi descoberta em 2012

As passagens por Coimbra, Londres, Nova Iorque e Lisboa têm uma coisa em comum: a colaboração na experiência ATLAS, um dos detetores do Grande Colisor de Hadrões (LHC), o maior e mais potente acelerador de partículas do mundo, com 27 quilómetros de circunferência, que se situa cerca de cem metros abaixo do solo na comuna de Meyrin, na Suíça, onde está a sede da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN).

Com 46 metros de comprimento, 25 de altura e sete mil toneladas, o ATLAS é um dos quatro detetores – os locais onde as colisões são detetadas – do LHC. Em conjunto com outro dos detetores, o CMS, é utilizado para investigar o bosão de Higgs ou, como ficou conhecido, a “Partícula de Deus”.

A designação é pouco apreciada pelos físicos, mas é o título de um livro do físico e Prémio Nobel norte-americano Leon Max Lederman. A obra foi publicada em 1993, numa altura em que faltavam ainda vinte anos para descobrir este bosão, mas já se andava há trinta a procurá-lo. O título original de Lederman era The Goddamn Particle (A Maldita Partícula), numa alusão clara à dificuldade em encontrá-la. Acontece que o editor achou que “Goddamn” podia ferir suscetibilidades. Cortou o “damm” e deixou o “God”, transformando o título na apelativa expressão “A Partícula de Deus” (The God Particle).

A história também deixa entrever algo menos óbvio: o bosão de Higgs – a partícula que confere massa às outras partículas – descoberto no CERN, em 2012, já havia sido imaginado quase meio século antes, em 1964. “Até então, os físicos de partículas tinham um problema: com as ferramentas teóricas que tinham, eram incapazes de descrever uma das forças fundamentais, responsável pela radiaoctividade. Os modelos descreviam perfeitamente o fotão, partícula sem massa e que se move à velocidade da luz, mas não havia forma de incorporar partículas com massa, como os bosões W e Z.” Foi o mecanismo de Higgs, teorizado, entre outros, pelo físico teórico britânico com o mesmo nome (Peter Higgs), que estabeleceu que existe o campo de Higgs que interage com as partículas para as dotar de massa.

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O mecanismo de Higgs é tão difícil de perceber que, em 1993, o então Ministro da Ciência do Reino Unido, William Waldegrave, lançou um desafio aos físicos: aquele que arranjasse a melhor analogia para o explicar recebia uma garrafa de champanhe. Foi David Miller, da University College London, que bebeu essa garrafa. Na sua analogia, ele pedia que se imaginasse uma festa ou receção com imensos físicos – e eles representam o campo de Higgs. A entrada de um cientista reputado causa alvoroço e muitos dos físicos dirigem-se a ele para conversar ou pedir opiniões. O conjunto de físicos age como o campo de Higgs, dando “massa” ao cientista reputado, o que faz com que ele fique mais pesado e demore mais tempo a atravessar a sala. Por outro lado, se um cientista jovem e desconhecido entrar na sala, os presentes não lhe dão grande atenção: para ele é mais rápido atravessar o salão de uma ponta à outra, porque os colegas não interagem com ele e não o tornam lento e “pesado”. É isto que acontece com as partículas: o fotão, partícula sem massa, é o jovem cientista desconhecido; o bosão W, massivo, é o cientista aclamado.

A grande complexidade do estudo do mundo das partículas subatómicas (mais pequenas que um núcleo atómico) exige algo gigante que se designa como “Big Science”: ciência que envolve grandes orçamentos, grandes máquinas ou laboratórios e grandes grupos de cientistas. Só as experiências ATLAS e CMS, no CERN, envolvem a colaboração de três mil e quatro mil pessoas, respetivamente.

Aquilo que se procura no CERN é a “nova física”: que não se conhece, que nunca se viu, mas que possa explicar as lacunas que o modelo-padrão tem. Essa nova física poderá passar pela descoberta de novas partículas elementares, mas desde 2012 que nenhuma outra foi descoberta. Isso pode querer dizer que o LHC não tem energia suficiente para as criar – e, por isso, uma das opções em cima da mesa é construir um novo acelerador, desta vez com cem quilómetros de circunferência, que teria sete vezes a energia do atual.

Mas essa não é a única maneira de olhar o problema: o facto de nada ter sido descoberto não quer dizer que nada esteja lá. “A quantidade de dados gerados pelo LHC é enorme. E, se estiver a ocorrer física nova nas colisões, ela não vem com uma etiqueta a dizer que é nova. Temos de pensar como poderá ser o seu aspeto no detetor, que é como uma máquina fotográfica que tira fotos a cada 25 nanosegundos”, explica a cientista.

“Fazer análise de física de partículas é mais difícil do que de encontrar uma agulha num palheiro: é encontrar no palheiro uma palha que tem um comprimento específico”, diz a investigadora de 33 anos

Uma das dificuldades é procurar uma coisa que nunca se viu, a outra é limpar o “ruído” ou “lixo” de fundo que as colisões geram: “Como o acelerador colide protões, que não são partículas fundamentais, o que se vê é uma grande bagunça. Temos de usar algoritmos muito avançados e tirar partido dos avanços em machine learning para perceber se as pistas que as partículas deixam, ao colidir no detetor se parecem com aquilo que a nova física faria ou se estamos ver algo que pode ser explicado através do modelo-padrão.”

É isso que Inês está a tentar fazer com o seu projeto financiado pela Fundação “la Caixa”: apostar na precisão. “Depois de produzido, o bosão de Higgs desintegra-se imediatamente noutras partículas. O decaimento mais frequente é para dois quarks específicos: um par quark anti-quark do tipo b. Mas apesar de frequente, é muito difícil de identificar. O que quero fazer é desenvolver um algoritmo que consiga identificar este decaimento e, assim, identificar os Higgs com mais precisão. Se conseguirmos melhorar essa distinção é como se tivéssemos mais dados: ganhamos nova informação através dos dados que já temos.”

No cenário mais otimista, esta análise com o novo algoritmo pode vir a encontrar uma partícula nova que está nos dados recolhidos e ainda não foi detetada. Se isso não acontecer, servirá pelo menos para eliminar a contaminação e distinguir o Higgs da “bagunça” criada pelas colisões. “O LHC já gerou milhões de Higgs, mas há falsos-positivos e o algoritmo vai ajudar a ter dados mais puros”, explica a cientista. “Fazer análise de física de partículas é mais difícil do que de encontrar uma agulha num palheiro: é encontrar no palheiro uma palha que tem um comprimento específico.” Palha essa que nos pode ajudar a conseguir saber, afinal, de que mais é que o universo é feito.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto de Inês Ochoa, do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP), foi um dos 45 selecionados (nove de Portugal) – entre 575 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. A investigadora recebeu 292.500 euros por três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática. As candidaturas para a edição de 2021 encerraram em outubro e para a edição de 2022 deverão abrir no próximo verão (data a anunciar).