Ihor Homeniuk não falava inglês, nem francês, nem espanhol. Não falava as línguas que falava o inspetor do SEF com quem teve o primeiro contacto, quando chegou ao aeroporto de Lisboa por volta das 11h00 de 10 de março de 2020. Por isso, a solução foi o Google Tradutor. Foi assim que Augusto Costa, que estava na primeira linha a avaliar os passageiros que chegavam, fez a primeira entrevista ao cidadão ucraniano. “Há milhares de passageiros que chegam e não falam a nossa língua. Utilizei a ferramenta do Google Tradutor“, disse ao tribunal, ouvido como testemunha naquela que é a quarta sessão do julgamento do homicídio de Ihor Homeniuk.

O cidadão aterrou em Lisboa num voo de Istambul, onde tinha chegado, vindo da Ucrânia, o seu país —  “um voo considerado de risco”, explicou Augusto Costa, adiantando que a sua nacionalidade também era de “risco”. “Estas rotas trazem muito tráfico de seres humanos, falsificação de documentos“, detalhou.

Ihor explicou ao inspetor que vinha trabalhar. Foi pelo menos o que depreendeu já que nunca foi chamado um intérprete: “A única palavra que disse foi traktor” — que o inspetor entendeu como sendo “trabalho”. Ihor tinha apenas consigo 300 euros, o bilhete de vinda e o passaporte biométrico. Acabou por ser reconduzido para a segunda entrevista.

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Cerca de 1.200 euros por mês como tratorista. Ihor disse que vinha trabalhar durante um ano, mas não tinha visto

Na segunda linha, encontrou o inspetor Rui Tártaro, apoiado por uma inspetora que falava russo. Também ele foi ouvido esta terça-feira em tribunal: explicou que a entrevista “correu como qualquer outra”, de forma “calma” e tranquila”. “Já fiz milhares de entrevistas: esta não teve nada de especial”, disse, acrescentando: “[Ihor] explicou onde ia trabalhar e o que ia receber. Iria trabalhar na empresa de um amigo, que tinha várias valências: construção civil e agricultura”, detalhou. O cidadão explicou que Ihor lhe disse que vinha receber 1.200 euros por mês, durante um ano.

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De acordo com o relatório da entrevista realizada, que consta no processo, o ucraniano explicou que ia trabalhar como tratorista numa empresa agrícola, existindo também a possibilidade de trabalhar na construção civil, numa empresa onde também trabalhava o seu cunhado. Que tinha conseguido esse trabalho através de um amigo, Petro, que lhe ia também dar alojamento. E que ia assinar o contrato no dia seguinte.

Mas Rui Tártaro acabou por elaborar uma proposta de recusa de entrada em Portugal, que consta no processo, por Ihor não ter um visto adequado às finalidades da deslocação pretendida: visto de residência para exercício de atividade profissional subordinada. Em tribunal, adiantou que Ihor ficou “calmo” quando lhe foi comunicada a decisão de recusa de entrada no país. “No momento em que assinou, a mão tremia. Perguntei se estava bem, ele disse que sim”, acrescentou.

Questionado pelo advogado da viúva de Ihor, José Gaspar Schwalbach, sobre se o passageiro tinha dito que vinha acompanhado de dois colegas, Rui Tártaro admitiu que não se “recordava disso”, mas foi “consultar o processo há poucos dias” e de facto essa informação estava lá. De acordo com o relatório da entrevista realizada, que consta no processo, o ucraniano explicou que estava a viajar com dois amigos, que já tinham passado a fronteira.

A Procuradora da República quis saber se o ucraniano não podia entrar com visto turístico, mas Augusto Costa explicou que não uma vez que, segundo está previsto na lei, “os passageiros devem fazer prova das suas intenções” e Ihor não tinha qualquer roteiro turístico ou bilhete de regresso. “Como inspetor, não o poderia deixar entrar como turista“, explicou.

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Ihor esperou cinco horas pela entrevista. Inspetor diz que “volume de trabalho é avassalador” — fez quatro entrevistas nesse dia

O juiz-presidente, Rui Coelho, questionou o inspetor sobre se era normal os passageiros esperarem tantas horas para a segunda entrevista — Ihor desembarcou por volta das 11h00 e só foi entrevistado na segunda linha cerca das 18h30. O inspetor Rui Tártaro justificou-se com o facto de o “volume de trabalho” ser “avassalador”, embora tenha feito quatro entrevistas no seu turno, das 15h00 às 23h00.

— Quantas entrevistas faz por dia? — questionou o magistrado.

— Nesse dia fiz quatro, que deram quatro recusas de entrada — respondeu.

A proposta de recusa de entrada foi assim enviada ao inspetor-coordenador Paulo Reis que, por volta das 20h00 da noite a assinou. “Tomei a decisão“, disse ouvido como testemunha, apontado que não teve “contacto com o passageiro” — o que é, garante, normal.

Logo depois, a companhia aérea foi informada de que tinha sido recusada a entrada em território nacional e que o cidadão deveria embarcar no mais curto espaço de tempo possível. Na notificação enviada e assinada por Rui Tártaro, que consta do processo, é dada a indicação de que Ihor estava “calmo”, “colaborante” e que não se opunha “à decisão de retorno ao país de origem”. Mas Ihor Homeniuk acabaria por recusar duas vezes entrar no avião e acabou por ser levado para a sala dos Médicos do Mundo, no Centro de Instalação Temporária (CIT) onde acabaria por morrer — segundo a acusação por ter sido agredido brutalmente por três inspetores do SEF.

O inspetor Duarte Laja também responde por um crime de homicídio

Antes disso, por volta das 21h30 de dia 10 de março, numa altura em que estava a ser encaminhado para o CIT, Ihor acabaria por sofrer o que os inspetores descrevem como ataque epilético. Esta terça-feira foram também ouvidos esses inspetores que assistiram o cidadão e que estiveram com ele no hospital. “Prestei assistência e percebi que estava rígido no chão a espumar da boca. Havia algum sangue”, contou o inspetor Jorge Pereira. Já Rui Teixeira, que também se encontrava ali, admitiu mesmo que ficou “com a sensação de que ia falecer a qualquer momento”. Um dos inspetores que acompanhou o cidadão ao Hospital Santa Maria, Fernando Mesquita, contou que o encontrou deitado numa maca a “tremer”.

Chorava bastante — um choro desesperante. Fiquei bastante preocupado porque ele era da minha idade e estava a chorar assim”, contou.

Fernando Mesquita contou ainda que, face a esse cenário, ligou a sua colega que sabia falar russo. Segundo explicou ao tribunal, Ihor ter-lhe-á dito que já antes tinha tido um “ataque” deste género, em Paris. Só às 12h00 do dia seguinte é que teve alta hospitalar e foi reconduzido ao CIT. Às 18h25 desse dia deveria embarcar, mas recusou — o mesmo fez com o voo das 23h55 desse dia.

Esta é quarta sessão do julgamento do homicídio de Ihor Homeniuk — o julgamento retoma esta quarta-feira com a audição de mais testemunhas, desta vez vigilantes do CIT do Aeroporto de Lisboa onde o ucraniano permaneceu durante largas horas. Logo na primeira foram ouvidos os três inspetores do SEF que, quase um ano depois do alegado homicídio, quebraram o silêncio: disseram que, quando foram à sala onde o cidadão ucraniano estava, já o encontraram amarrado e com marcas de agressões. E algemaram-no para sua segurança.

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Ihor Homenyuk morreu a 12 de março no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, dois dias depois de ter desembarcado, com um visto de turista, vindo da Turquia. De acordo com a acusação, o SEF terá impedido a entrada do cidadão ucraniano e decidido que teria de regressar ao seu país no voo seguinte. As autoridades terão tentado por duas vezes colocar o homem de 40 anos no avião, mas este terá reagido mal. Terá então sido levado pelo SEF para uma sala de assistência médica nas instalações do aeroporto, isolado dos restantes passageiros, onde terá sido amarrado e agredido violentamente por três inspetores do SEF, acabando por morrer.

Apesar de no relatório o SEF ter descrito o óbito como natural, o médico-legista que autopsiou o corpo não teve dúvidas de que tinha havido um crime, alertando imediatamente a PJ, que acabaria também por receber uma denúncia anónima que referia que Ihor Homenyuk tinha ficado “todo amassado na cara e com escoriações nos braços”.

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Os inspetores Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja foram detidos no final de março e encontram-se em prisão domiciliária por causa da pandemia de Covid-19. Foram acusados no final de setembro e respondem, cada um, por um crime de homicídio qualificado em coautoria. Duarte Laja e Luís Silva respondem ainda por um crime de posse de arma proibida.